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Faz sentido comparar “a gripe espanhola de 1918” com a epidemia de Covid-19?

Muitos artigos, declarações e vídeos têm vindo a comparar esta pandemia com a pandemia de 1918, popularmente designada de “Gripe espanhola”. Muitas vezes é referido podermos aprender lições acerca de temas como: confinamentos, máscaras ou até “segundas ondas”.

Mas será que faz sentido essa comparação?

Diferenças da época

Muitas diferenças existem entre essa época e agora:

  • Vivíamos nos primórdios da ciência moderna e o nível de conhecimento sobre doenças infeciosas era muito escasso comparado com os dias de hoje. Muitas das medidas eram tomadas de modo intuitivo e sem evidência científica.
  • A capacidade de assistência era incomparavelmente menor (hospitais, médicos, enfermeiros).
  • Os medicamentos e tratamentos eficazes eram escassos. Por exemplo, não existiam sequer antibióticos, um instrumento fundamental para o tratamento das infeções bacterianas em geral e, neste caso, também para as infeções secundárias decorrentes da doença causada pelo vírus. A penicilina apenas foi descoberta dez anos depois (1928).
  • A mobilidade global no mundo de hoje é incomparavelmente superior e o contacto com todo o tipo de agentes infeciosos maior. É, por isso, mais difícil ocorrerem grandes quebras de imunidade em qualquer região do globo.

Contexto histórico

A sua disseminação foi facilitada pela mobilização de grandes massas de população devido à guerra (1ª guerra mundial). Milhares de soldados, muitos feridos ou doentes, propagaram a doença.

Particularidade da evolução da Pandemia

Apesar de ser normal a ocorrência de ondas nas epidemias, a existência de três grandes ondas na “gripe espanhola”, num período de oito a nove meses, foi excecional. Para além do contexto histórico particular, uma das hipóteses que tem sido avançada é a da mutação do vírus.

Diferenças entre os vírus

O SARS-CoV-2 é um coronavírus, enquanto o H1N1 da gripe espanhola é um vírus da família influenza. Apesar de terem muitas semelhanças, nomeadamente na forma de transmissão e no tipo de material genético (RNA), têm também algumas diferenças. Talvez a mais relevante seja o facto dos vírus influenza sofrerem muito mais mutações e assim dificultarem a criação de uma forte imunidade cruzada– com outros vírus da mesma família. Ao contrário do que acontece com os coronavírus.

O principal agente causador das mortes

Ao contrário do que é a perceção geral, a maioria das mortes não terá sido causada pelo vírus. Embora seja comum que mortes de gripe sejam provocadas por infecções secundárias, esta foi a última pandemia em que não existiam antibióticos para as combater. Isso parece ter sido determinante.

De acordo com a investigação a tecidos pulmonares recolhidos na altura e da revisão de informação de 8 398 autópsias existe forte evidência que a grande maioria das mortes resultaram de infecções bacterianas e não do vírus em si.

Dimensão da tragédia

Outra grande diferença é o impacto de ambas as pandemias. Estima-se que a gripe espanhola tenha matado cerca de 50 milhões de pessoa. Considerando a população da altura isso significa que cerca de 3% tenha falecido.

Neste momento, o número oficial de mortes por Covid-19 representa cerca de 0,024% da população.

Para além disso, a gripe espanhola atingiu bastante os jovens e os saudáveis, particularmente os menores de cinco anos e pessoas entre os vinte e os quarenta anos.

No caso da Covid-19, as mortes em jovens são raras, a média de idade normalmente acima dos 80 anos e ocorrem geralmente em pessoas com uma ou várias doenças prévias.

Alguns sugerem mesmo que os dados disponíveis suportam que a epidemia é fortemente acentuada por um efeito sazonal tardio no hemisfério norte e por uma época anterior de gripe ligeira.

Outras pandemias

É surpreendente continuarem a comparar uma pandemia que ocorreu há mais de 100 anos, com diferenças tão evidentes, e da qual temos dados muito poucos fiáveis, com a Covid-19. É que desde a “gripe espanhola” foram declaradas mais três epidemias: a “gripe asiática” de 1957-1958 (H2N2), a “gripe de Hong Kong” de 1968 (H3N2 vírus), e a “gripe A” de 2009 (H1N1pdm09).

A “gripe asiática” vitimou cerca de 0,038% da população mundial da época, a gripe de Hong Kong de 1968 (H3N2 vírus) aproximadamente 0,028%, e a “gripe A” que, acabou ter uma letalidade estimada inferior à da gripe sazonal, poderá ter vitimado apenas 0,005% da população. Atualmente, os registos oficiais de “morte por Covid-19” correspondem a sensivelmente 0,024% da população mundial.

Sobre estas pandemias temos dados muito mais fidedignos e as circunstâncias são muito mais parecidas. Certamente temos mais a aprender com elas do que com a “gripe espanhola”.

Referências:                                     

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Jeffery K. Taubenberger&David M. Morens. 1918 Influenza: the Mother of All Pandemics

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Worldometers. Information. World-population by-year

1918-pandemic. Pandemic resources. CDC (USA)

1957-1958-pandemic. Pandemic resources. CDC (USA)

1968-pandemic. Pandemic resources. CDC (USA)

2009-h1n1-pandemic. Pandemic resources. CDC (USA)

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