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Um estudo do Hospital Pediátrico e do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos sublinha que as crianças têm um papel muito importante na propagação da Covid-19, pelo facto de revelarem uma carga viral superior à dos adultos doentes. Este relatório, amplamente divulgado pela comunicação social em Portugal, conduziu a várias conclusões, entre as quais:

  • Apesar de muitas permanecerem assintomáticas, as crianças não são imunes à covid-19
  • Por transportarem maior carga viral, as crianças são mais contagiosas, independentemente da sua suscetibilidade ao desenvolvimento da Covid-19. Ao frequentarem a escola podem espalhar a infeção e levar o vírus para as suas casas

Com a abertura do ano escolar e o aumento do número de infetados no centro de todos os debates em Portugal, e numa altura em que escolas e DGS se preparam para distintos cenários, esta informação fez soar novos alarmes junto da comunidade escolar. Deve este estudo feito junto de 192 crianças ser visto como inquestionável? Reporta informação relevante e inovadora?

Probabilidade de transmissão é baixa

Na verdade, este estudo é apenas mais um entre milhares de estudos e relatórios com conclusões totalmente díspares e muitas vezes não confirmadas. Há muito que as organizações de saúde internacionais sublinharam que as crianças não são imunes à Covid-19. Existem também vários estudos que indicam que, apesar de muitas crianças serem assintomáticas, e de a doença ser bastante benigna nestas idades, estas podem transportar elevadas cargas virais. Ainda assim, não é claro é que essas cargas virais (detetadas) tornem as crianças numa fonte de contaminação muito importante. Porquê? Existem vários factores, nomeadamente o facto de não terem sintomas.

Como a OMS explica:

O vírus da COVID-19 espalha-se principalmente por meio de gotículas de saliva ou secreção nasal quando uma pessoa infectada tosse ou espirra…”.

Sendo assintomáticas, as crianças não têm os sintomas identificados como determinantes para a propagação do vírus – como a tosse, por exemplo, um dos sintomas mais frequentes da doença.

À margem dos estudos, podemos analisar os dados estatísticos que têm sido recolhidos nos últimos meses. Existem inúmeras referências que devem ser exploradas, nomeadamente a experiência dos países que reabriram as escolas logo após o confinamento, ou que nunca as encerraram, ou mesmo o parecer das maiores autoridades de saúde a nível internacional. Serão as crianças assim tão perigosas? O que dizem os números?

O que dizem os números?

Áustria, Bélgica e Alemanha foram apenas alguns dos 22 países que decidiram reabrir as escolas após o confinamento decretado, com políticas de higiene e distanciamento social associadas. No global, não registaram um aumento significativo das infeções após a reabertura, nem reportaram novos surtos de Covid atribuídos às escolas.

Fonte: Insights for Education

A Agência de Saúde Pública sueca e o Instituto Finlandês para a Saúde e Bem-Estar realizaram um estudo que compara as políticas de encerramento das escolas adotadas pela Finlândia e pela Suécia e a incidência de infeções por Covid-19 confirmadas em laboratório entre crianças em idade escolar nos dois países. O relatório mostra que, apesar de a Finlândia ter encerrado as escolas para a maioria das crianças, e de a Suécia ter optado por não encerrar as escolas e ter sido mais afetada pelo surto, em geral, os níveis de infeção em crianças, em ambos os países, foram muito semelhantes.

Tanto a Suécia como a Finlândia tiveram um número muito baixo de crianças Covid-19 positivas – apenas 0,3% do grupo de menores de 19 anos na Finlândia e 0,6% na Suécia. O rastreamento de contactos realizado nas escolas primárias na Finlândia não encontrou evidências significativas de crianças terem infetado outras pessoas.

Um estudo do Centro Nacional de Investigação e Vigilância de Imunização da Austrália analisou os dados recolhidos de 15 escolas primárias e secundárias no estado de New South Wales, entre março e meados de abril. Nessas escolas, nove funcionários e nove alunos com covid-19 estiveram em contacto com centenas de pessoas (especificamente, 735 alunos e 128 funcionários). No entanto, nenhum professor ou funcionário desenvolveu a doença. No global, nenhum estudo exclui as crianças como portadoras e potencial transmissoras do vírus, mas os dados revelam que a probabilidade é baixa.

Abertura das escolas em Portugal

O cenário em Portugal também não é muito diferente. De acordo com as informações disponíveis, não foram registados casos nas creches, infantários e demais espaços educativos e de tempos livres que entretanto reabriram.

  Em conferência de imprensa, Graça Freitas fez questão de referir que no início do ano letivo, o risco não é “zero”, mas admitiu que a percentagem de infetados durante o período em que algumas escolas abriram “foi muito pequena” e todos os casos evoluíram de forma bastante “favorável”.

Para além disto, as próprias entidades de referências neste domínio, como a Organização Mundial de saúde ou o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das doenças (ECDC) referem que a probabilidade de transmissão entre crianças e de crianças para adultos, num ambiente escolar, é baixa.

“O papel das crianças na transmissão ainda não é bem compreendido. Até o momento, foram reportados poucos surtos que envolvem crianças ou escolas. O pequeno número de surtos reportados entre professores ou funcionários associados também sugere que a disseminação de COVID-19 dentro de ambientes educativos pode ser limitada.” – OMS

Numa conferência de imprensa, Hans Kluge, diretor regional da OMS para a Europa, referiu que “o ambiente escolar não é um fator principal na pandemia. Existem cada vez mais publicações que reforçam a evidência de que as crianças têm um papel na transmissão, mas estes está mais vinculado a reuniões sociais”. Apesar disto, o executivo pede cautela e alerta para a interpretação dos números devido à coincidência de três acontecimentos: a reabertura das escolas, a época da gripe e o excesso de mortalidade dos idosos que pode ocorrer no inverno.

Um relatório oficial da ECDC – Covid-19 in children and the role of school settings in Covid-19 transmission – sublinha inclusive que as investigações de casos identificados em ambientes escolares sugerem que:

“… a transmissão de criança para criança nas escolas é incomum e não a principal causa de infeção por SARS-CoV-2 em crianças cujo início da infeção coincide com o período durante o qual estão a frequentar a escola”.

Diz ainda que, apesar de existirem evidências publicadas conflituantes sobre o impacto do encerramento/reabertura das escolas nos níveis de transmissibilidade de Covid-19 na comunidade, evidências registadas após o rastreamento dos contatos em escolas e estudos de vários países da UE sugerem que a reabertura de escolas não foi associada ao aumento dos níveis de propagação da Covid na comunidade.

 “As evidências disponíveis sugerem que a transmissão entre crianças nas escolas é menos eficiente no SARS-CoV-2, comparativamente a outros vírus respiratórios, como a influenza.” – ECDC

“As evidências atualmente disponíveis indicam que as crianças não são os principais veículos de transmissão do SARS-CoV-2 para adultos, num contexto de ambiente escolar. Mesmo perante um caso positivo, e após rastreamento de contactos, nenhum adulto no ambiente escolar foi detetado como positivo para SARS-CoV-2.” – ECDC

Numa revisão publicada em Agosto pelo Pediatrics (Jornal Oficial da Academia Americana de Pediatras) pode ler-se:

“Quase 6 meses após o início da pandemia, as evidências acumuladas e a experiência coletiva indicam que as crianças, especialmente as crianças em idade escolar, são transmissores muito menos importantes da SARS-CoV-2 do que os adultos. Portanto, deve-se considerar seriamente as estratégias que permitem que as escolas permaneçam abertas, mesmo durante os períodos de disseminação do COVID-19”

Hans Kluge, diretor regional da OMS para a Europa, sobre a abertura das escolas (1:00:05)

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