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Os danos colaterais de um lockdown

Depois da designada primeira vaga, muitos países garantiram que não iriam recorrer novamente aos lockdowns como estratégica de combate à Covid-19, devido ao forte impacto económico e social desta medida.

Seis meses depois, vários países em todo o mundo voltam a recorrer ao confinamento – total ou parcial – para combater a segunda vaga. Estamos a seguir a ciência?

A opinião sobre os lockdowns não é consensual e tem gerado algumas polémicas ao longo dos últimos meses, nomeadamente porque ambos os “lados” garantem estar a seguir a ciência. Os especialistas parecem estar divididos em dois campos.

Recentemente, milhares de cientistas e peritos de saúde juntaram-se a um movimento global- Great Barrington Declaration – que alerta para o impacto devastador na saúde física e mental das políticas de confinamento da Covid-19.

O grupo, que reúne mais de 6 000 cientistas e especialistas médicos de todo o mundo e 50 000 membros do público, defende que as medidas de proteção devem estar centradas na população vulnerável, e não nas pessoas saudáveis, e critica o facto de as medidas tomadas não contemplarem os danos “não Covid”. O preço a pagar pelo encerramento da economia e dos serviços médicos será bastante mais “mortal” que o próprio vírus.

Este movimento suscitou advertências por parte de outros elementos da comunidade científica, que alegam que esta abordagem mais direcionada não tem em conta o risco de complicações a longo prazo, e pode dificultar a proteção global das pessoas vulneráveis.

Além disso, grande parte dos governos baseiam-se em modelos desenvolvidos por algumas instituições (por exemplo, o Imperial College) cujas altas previsões de mortes e esgotamento de serviços hospitalares têm justificado medidas muito drásticas.

Quem está certo? Num momento em que os resultados positivos dos confinamentos ainda estão a ser debatidos e verificados, podemos analisar alguns dos seus efeitos indesejados.

Os efeitos dos lockdowns

David Nabarro, enviado especial da OMS para a Covid-19, apelou aos líderes mundiais para não utilizarem as políticas de confinamento como principal medida de controlo do vírus da Covid-19, e defendeu que estas medidas restritivas só devem ser usadas em último recurso devido forte impacto que têm a vários níveis.

O impacto económico dos lockdowns é talvez o mais percetível, à primeira vista. – para o país, para as empresas ou para as famílias. O encerramento das empresas, o aumento do desemprego (e das dívidas) e a menor capacidade económica das pessoas conduz rapidamente a uma série de efeitos colaterais da luta contra a pandemia: fome, problemas de saúde, aumento da criminalidade, maior pressão sobre os recursos de apoio, entre outros exemplos.

Mas à margem dos aspetos financeiros, o primeiro confinamento mostrou que o encerramento da sociedade, mesmo que parcial, arrasta consigo outras consequências críticas, talvez menos visíveis, que podem penalizar a curto prazo o país.

Excesso de mortalidade

Para garantirem resposta adequada aos casos Covid, os governos ajustaram os seus sistemas de saúde e reduziram alguns serviços. Em Portugal, a redução da oferta de cuidados de saúde, devido às políticas de combate à Covid-19, em conjunto com a menor procura por esses cuidados, por medo de infeção ou de alterações no atendimento, são duas das variáveis que mais poderão ter contribuído para o aumento do excesso de mortalidade no nosso país – tanto na primeira vaga, como nesta segunda. 

Em Portugal, até 18 de outubro, existiam 5 738 óbitos em excesso por explicar, à margem das mortes Covid. Nos Estados Unidos, de acordo com o CDC, existem 100 947 mortes em excesso que não estão ligadas à Covid-19.

Para além disto, esta redução pode contribuir para o aumento de problemas de saúde crónicos agravados por falta de apoios, rastreios ou mesmo de intervenção médica direta, que irão sobrecarregar o sistema de saúde a médio prazo. Este cenário inclui os que morrem a curto prazo durante o próprio período de confinamento e os que morrem mais tarde pelo agravamento gradual das doenças – cancro, diabetes, doenças cardíacas, HIV, malária ou mesmo a tuberculose que mata todos os anos 1,5 milhões de pessoas.

Nos países mais pobres, que dependem de ajuda humanitária, a colocação destas doenças em segundo plano é ainda mais perigosa.

“A Covid-19 está a comprometer todos os nossos esforços e a levar-nos de volta para onde estávamos há 20 anos”, disse o Pedro L. Alonso, diretor do programa global da Organização Mundial de Saúde contra a malária.

O novo coronavírus não só desviou a atenção científica da tuberculose, do H.I.V. e da malária, mas criou bloqueios intransponíveis aos pacientes que têm de viajar para obter diagnósticos ou medicamentos, nomeadamente em África, na Ásia e América Latina. As restrições às viagens aéreas e marítimas têm limitado severamente a entrega de medicamentos às regiões mais atingidas.

Cerca de 80% dos programas de tuberculose, H.I.V. e malária em todo o mundo relataram perturbações nos serviços, e uma em cada quatro pessoas que vivem com H.I.V. relataram problemas no acesso a medicamentos, de acordo com as Nações Unidas.

Vários estudos, liderados por investigadores nas universidades de Keele, Leeds e Oxford para o National Institute of Cardiovascular Outcomes Research (NICOR), apoiado pelo governo, mostram cerca de 2 000 mortes extra de doenças cardiovasculares durante o lockdown em Inglaterra. Um relatório recente diz que, nos próximos cinco anos, cerca de 75 000 pessoas poderão morrer de problemas de saúde relacionados com a queda da vacinação, com a falta de cuidados atempados ( incluindo diagnósticos de cancro falhados e operações canceladas) e com o impacto da recessão na saúde.

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Em Portugal, a pandemia de Covid-19 fez cair em 52% o número total de transplantes realizados no primeiro semestre deste ano, bem como o número de dadores falecidos que baixou 55% face a igual período de 2019, segundo dados do Instituto Português do Sangue e da Transplantação. Já o número de doação em paragem cardiocirculatória parou por orientação de uma circular normativa conjunta da Direção-Geral da Saúde, IPST e Instituto Nacional Dr. Ricardo Jorge (INSA), tendo impacto na redução de 50% no primeiro semestre. A doação em vida também reduziu 78% e o dador sequencial parou completamente.

Saúde mental

O isolamento agrava também as taxas de suicídio e os problemas de saúde mental. Um estudo do CDC, divulgados em agosto, revela que um em cada quatro jovens adultos entre os 18 e 24 anos diz ter considerado o suicídio devido à pandemia. Os dados também assinalam uma onda de ansiedade e de abuso de substâncias, com mais de 40% dos inquiridos a afirmarem ter sofrido de problemas associados à Covid-19.

As chamadas para linhas telefónicas de apoio aumentaram 890% em abril, comparativamente a 2019. Este comportamento é atribuído ao isolamento social, e não ao medo das consequências da doença. Os suicídios aumentaram 70% em alguns Estados.

Em Portugal, até 9 de novembro, suicidaram-se 412 pessoas, mais 21% que em igual período do ano passado.

Outro indicador é o consumo de medicamentos e as mortes por overdose. O CDC indicou que as overdoses a nível nacional aumentaram em cerca de 18%. O Centro de Controlo e Prevenção de Doenças revelou que os jovens adultos com idades compreendidas entre os 25-44 anos registaram o maior aumento de mortes “em excesso”, face aos anos anteriores – 26,5%. Este aumento foi largamente atribuído a mortes de “desespero”.

Em Portugal este indicador não é conhecido, mas face a 2019, foram compradas nas farmácias portuguesas mais 248 mil caixas de antidepressivos, no período compreendido entre janeiro e maio de 2020, um reflexo de um aumento que coincidiu já com o efeito da pandemia da Covid-19 e do consequente confinamento. No total foram adquiridas mais de quatro milhões de embalagens.

Um estudo diz que as Nações Unidas e a OMS devem reforçar o foco nas questões de saúde mental, nomeadamente na prevenção do suicídio. Estas organizações afirmam que:

“É provável que as consequências para a saúde mental estejam presentes durante mais tempo e atinjam o seu auge mais tarde do que a atual pandemia. É provável que o suicídio se torne uma preocupação mais premente, à medida que a pandemia se propaga e tem efeitos a longo prazo sobre a população em geral, a economia e os grupos vulneráveis.”

Pobreza e fome

O aumento da violência doméstica e da fome é um dos problemas já sublinhado por várias instituições de apoio. Desde o início da pandemia, o Banco Alimentar Contra a Fome passou a ajudar mais 60 mil pessoas que ficaram sem rendimentos devido à chegada do novo coronavírus. O Programa Alimentar Mundial da ONU advertiu que o número de pessoas com fome pode duplicar em 2020 e ultrapassar os 250 milhões. A fome ligada ao vírus poderá levar à morte de mais 10 000 crianças por mês durante o primeiro ano da pandemia, de acordo com um apelo urgente à ação das Nações Unidas, partilhado com a The Associated Press antes da sua publicação na revista médica Lancet.

A pandemia da COVID-19 pode inverter 30 anos de progressos realizados no combate à pobreza global, e aumentar a desigualdade advertiu o Fundo Monetário Internacional (FMI). Cerca de 90 milhões de pessoas poderão ser mergulhadas na pobreza extrema este ano, o que significa que serão forçadas a sobreviver com menos de 1,90 dólares por dia.

“As pessoas que dependem do trabalho assalariado diário enfrentaram súbitas perdas de rendimento quando foram impostas restrições à mobilidade.”

Em outubro a agência internacional indicou que estima uma queda de 4,4% do PIB mundial, uma previsão menos negativa que aquela divulgada em junho. Segundo justificou, os dados recentes sugerem que muitas economias começaram a recuperar a um ritmo mais rápido do que o previsto após o grande lockdown. Desde esta revisão, foram muitos os países que impuseram novos confinamentos.

Violência

Relativamente à violência, no estado de emergência e situações de calamidade e de contingência não se registaram incidentes de segurança significativos, segundo a PSP. As detenções pelo crime de violência doméstica diminuíram cerca de 32% desde o início da pandemia de Covid-19, em relação ao mesmo período de 2019.

Mas isto significa que há menos violência? A pandemia de covid-19 agudizou casos de violência doméstica preexistentes e à Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica os pedidos de ajuda por vias telefónicas e digitais aumentaram 180% face ao primeiro trimestre de 2019. O mesmo aconteceu depois do período de desconfinamento, passando de uma media de 2500 atendimentos para 4500 atendimentos.

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