As autoridades de saúde não têm “poder ou legitimidade para privarem qualquer pessoa da sua liberdade”, defendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que considerou o confinamento imposto pela autoridade de saúde regional dos Açores aos quatro turistas alemães como “detenção ilegal”.
No acórdão, o Tribunal da Relação diz que:
“Qualquer pessoa ou entidade que profira uma ordem, cujo conteúdo se reconduza à privação da liberdade física, ambulatória, de outrem (qualquer que seja a nomenclatura que esta ordem assuma: confinamento, isolamento, quarentena, resguardo profilático, etc), que se não enquadre nas previsões legais, designadamente no disposto no artº 27 da CRP e sem que lhe tenha sido conferido tal poder decisório, por força de Lei – proveniente da AR, no âmbito estrito da declaração de estado de emergência ou de sítio, respeitado que se mostre o princípio da proporcionalidade – que a mandate e especifique os termos e condições de tal privação, estará a proceder a uma detenção ilegal, porque ordenada por entidade incompetente e porque motivada por facto pelo qual a lei a não permite.”
Justifica ainda que esta questão já foi debatida, ao longo dos tempos, a propósito de outros fenómenos de saúde pública, nomeadamente no que se refere à infeção por HIV e por tuberculose, por exemplo. “E, que se saiba, nunca ninguém foi privado da sua liberdade, por suspeita ou certeza de padecer de tais doenças, precisamente porque a Lei o não permite.”
Perante o argumento de que o confinamento foi pedido “por serem portadores do vírus SARS-CoV-2 e por estarem em vigilância ativa, por exposição de alto risco, decretada pelas autoridades de saúde”, o acórdão questiona:
“Desde quando é que compete a um tribunal fazer diagnósticos clínicos, por sua própria iniciativa e com base nos eventuais resultados de um teste? Ou à ARS? Desde quando é que o diagnóstico de uma doença é feito por decreto ou por lei?”
O Tribunal sublinha que “um diagnóstico é um ato médico, da exclusiva responsabilidade de um médico” e que “não há qualquer indicação nem prova, de tal diagnóstico ter sido efetivamente realizado por profissional habilitado nos termos da Lei e que tivesse atuado de acordo com as boas práticas médicas.”
“Efetivamente, o que decorre dos factos dados como assentes, é que nenhum dos requerentes foi sequer visto por um médico, o que se mostra francamente inexplicável, face à invocada gravidade da infeção.”
O acórdão assinala também que os testes RT-PCR à covid-19 têm uma “fiabilidade que se mostra, em termos de evidência científica (e neste campo, o julgador terá de se socorrer do saber dos peritos na matéria) mais do que discutível”.
Os turistas teriam realizado um teste no seu país, 72 horas antes, para determinar se eram portadores do vírus. Cópias do teste negativo foram entregues à Autoridade Regional de Saúde no aeroporto de Ponta Delgada. No dia 07 de agosto, duas cidadãs realizaram um segundo teste e os restantes fizeram-no três dias depois. Uma das mulheres deu positivo, e todos receberam ordem de isolamento profilático.
O acórdão diz que face à atual evidência científica, esse teste mostra-se, só por si, incapaz de determinar, sem margem de dúvida razoável, que tal positividade corresponde, de facto, à infeção de uma pessoa pelo vírus SARS-CoV-2, por várias razões:
- Por essa fiabilidade depender do número de ciclos que compõem o teste;
- Por essa fiabilidade depender da quantidade de carga viral presente.
Citando o estudo Correlation between 3790 qPCR positives samples and positive cell cultures including 1941 SARS-CoV-2 isolates, publicado em finais de Setembro deste ano, pela Oxford Academic, e “realizado por um grupo que reúne alguns dos maiores especialistas europeus e mundiais na matéria”, o documento diz:
“A um limiar de ciclos (ct) de 25, cerca de 70% das amostras mantém-se positivas na cultura celular (i.e. estavam infetadas): num ct de 30, 20% das amostras mantinham-se positivas; num ct de 35, 3% das amostras mantinham-se positivas; e num ct acima de 35, nenhuma amostra se mantinha positiva (infeciosa) na cultura celular (ver diagrama). Isto significa que se uma pessoa tem um teste PCR positivo a um limiar de ciclos de 35 ou superior (como acontece na maioria dos laboratórios do EUA e da Europa), as probabilidades de uma pessoa estar infetada é menor do que 3%. A probabilidade de a pessoa receber um falso positivo é de 97% ou superior”.
De acordo com o Tribunal, a eventual fiabilidade dos testes PCR realizados depende, desde logo, do limiar de ciclos de amplificação que os mesmos comportam, de tal modo que, até ao limite de 25 ciclos, a fiabilidade do teste será de cerca de 70%; se forem realizados 30 ciclos, o grau de fiabilidade desce para 20%; se se alcançarem os 35 ciclos, o grau de fiabilidade será de 3%.
“Ora, no caso presente, ignora-se qual o número de ciclos de amplificação com que são realizados os testes PCR em Portugal, incluindo Açores e Madeira, uma vez que não nos foi possível encontrar qualquer recomendação ou limite a esse respeito.”
Cita ainda este estudo para indicar que uma das potenciais razões para a apresentação de resultados positivos poderá residir no prolongado derramamento de RNA viral, que se sabe poder estender-se por semanas, após a recuperação, naqueles que foram anteriormente expostos ao SARSCoV-2.
“Não existem dados científicos que sugiram que baixos níveis de RNA viral por RT-PCR equivalham a infeção, exceto se a presença de partículas virais infeciosas tiver sido confirmada através de métodos de cultura laboratorial. Assim, existindo tantas dúvidas científicas, expressas por peritos na matéria, que são as que aqui importam, quanto à fiabilidade de tais testes, ignorando-se os parâmetros da sua realização e não havendo nenhum diagnóstico realizado por um médico, no sentido da existência de infeção e de risco, nunca seria possível a este tribunal determinar que C…era portadora do vírus SARS-CoV-2, nem que A., B… e D… tivessem tido exposição de alto risco.”