Talvez muitos já se tenham esquecido da reunião do Conselho Nacional de Saúde Pública, instituição prevista nas leis orgânicas do Estado, cuja principal missão é a de aconselhar o executivo em casos de pandemia, ocorrida durante um dia quase inteiro na fase inicial da pandemia em Portugal, a qual se realizou para discutir a eventual necessidade do encerramento das escolas.
Esta reunião teve enorme cobertura mediática. Ao fim de um dia de trabalhos, o Conselho anunciou a sua recomendação de não encerramento das escolas.
Menos de 24 horas depois, pressionado pela Comunicação Social, pelos sindicatos e por corporações, o Governo deliberou o encerramento das escolas e a suspensão das aulas.
O Conselho Nacional de Saúde Pública só voltou a ser, simbolicamente, ouvido passados muitos meses e, apenas, após um deputado da Assembleia da República ter questionado o Governo especificamente sobre a alienação deste Conselho na definição da estratégia de combate à pandemia. O mesmo se passou com outras instituições previstas nas leis orgânicas do Estado, tais como o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Nacional de Ética para as Ciência da Vida – cujos pareceres seriam de enorme relevância para as decisões do poder executivo.
Em vez de ouvir os órgãos competentes, os políticos, com o aval do mais alto magistrado da Nação, optaram por promover umas reuniões ad hoc no auditório do Infarmed, para as quais foram convocando os “especialistas” (entre os quais, matemáticos e epidemiologistas) que escolheram ouvir – com base em critérios nunca revelados e que não se entendem, levando a que se lancem suspeitas sobre as razões que fundamentaram essas escolhas – e, no fim das quais, declaravam tipicamente: – “Ouvidos os especialistas, decidimos…”
Poucos se lembrarão que, durante o pico da pandemia, ocorrido no último mês de 2020 e nos primeiros dois meses de 2021, numa dessas reuniões, um desses especialistas veio declarar que o país estava a “testar pouco” e era preciso incrementar o número de testes realizados (ter-se-á esquecido de dizer que não bastava testar, também era necessário garantir a quarentena de quem “testasse positivo”). De imediato, em resposta a questões da Comunicação Social, os políticos informaram que tinham dado indicações à Direção-Geral da Saúde para alterar as normas em vigor e determinar a intensificação da testagem, nomeadamente utilizando testes rápidos de diagnóstico baseados na deteção do antigénio do vírus. O que veio a ser feito tímida e tardiamente e de modo completamente errado, sem nenhum planeamento da subsequente quarentena.
Estes dois episódios, se não o estabelecem em si mesmos, são, pelo menos, elucidativos do paradigma subjacente ao combate da pandemia em Portugal – a promiscuidade, ou mesmo subserviência, entre as autoridades de saúde (que deveriam ser independentes) e o poder político; a alienação dos órgãos que a lei prevê deverem ser ouvidos nestes casos. E a criação deste paradigma não foi inocente. Bem pelo contrário, serviu objetivos muito bem definidos.
“…desenvolveram, reconheça-se que com raro rasgo intelectual, uma notável estratégia de imposição de um “pensamento único”, à sombra da qual ditaram medidas inimagináveis numa sociedade livre”
É que os políticos, devidamente assessorados por “brilhantes especialistas, matemáticos. epidemiologistas e outros”, tutelados pelos seus comparsas da União Europeia (pelo menos os mais relevantes, embora a União não se mostrasse, quer neste aspeto, quer noutros – vide a polémica questão das vacinas – lá muito unida), confortados por uma Comunicação Social que, maioritariamente, serviu de mera caixa de ressonância das posições oficiais do Governo (demonstrando muito pouco esforço analítico e crítico), contando com a conivência cúmplice das autoridades de saúde (as quais abdicaram da sua obrigatória independência em relação ao poder político e alinharam na estratégia montada), instituindo o medo generalizado na população, a qual, por várias vezes, responsabilizaram, com mais ou menos subtileza, pelos resultados dos erros que eles, os políticos, cometeram (lembram-se do “contrato” feito com os portugueses por altura do Natal?), desenvolveram, reconheça-se que com raro rasgo intelectual, uma notável estratégia de imposição de um “pensamento único”, à sombra da qual ditaram medidas inimagináveis numa sociedade livre, pactuaram com ações policiais repressivas injustificadas e absurdas, preparando-se para lançar um passaporte pseudo-sanitário para os vacinados poderem circular no espaço comum europeu – outrora um espaço de circulação livre de pessoas e bens (seria menor a hipocrisia se, recuperando um dos mais vergonhosos capítulos da História, obrigassem os não vacinados a colar ao peito um qualquer símbolo que testemunhasse a sua “indignidade”).
Criado este pensamento único, primeiro, perseguiram os “negacionistas”, cujo pensamento não subscrevo, vítimas, entre outras medidas, de procedimentos disciplinares corporativos; depois, foram trucidando e desvalorizando, discriminando e, até, recriminando os que apresentavam propostas diferentes da “estratégia oficial” – recordo a afirmação de que quem dissesse que não houve planeamento da resposta hospitalar era “criminoso” – e, finalmente, responsabilizaram o Povo pelo insucesso das medidas adotadas por eles mesmos.
A nível internacional, seja nos meios de comunicação social, seja nas redes sociais, seja, ainda, no “mainstream” científico, incluindo as revistas científicas, também se instituiu uma atitude persecutória e censória em relação aos que, cientistas, autoridades de saúde e governantes, entre os quais é paradigmático o caso da Suécia, decidiram propor e adotar medidas para a abordagem desta pandemia diferentes das predominantes. Entre os muitíssimos exemplos cita-se a perseguição dos média internacionais de referência, logo reproduzida em Portugal, à Suécia, apontada, ao contrário do que os números revelam, como um caso de descalabro no combate à pandemia. Ora, a Suécia é um dos raros países onde não correu um aumento da mortalidade total em 2020 – um dos aspetos de maior relevo na avaliação do sucesso das medidas aplicadas.
Criado este “pensamento único”, instituiu-se, sempre com ampla aceitação pseudocientífica e mediática, todo um conjunto de medidas erradas que levaram Portugal, à data em que se escrevem estas palavras (6 de Abril de 2021), a ser, no “ranking” internacional, de entre os países com dimensão populacional superior a 10 milhões de habitantes, o sexto com maior número de óbitos atribuídos à CoVID-19, com 166 óbitos/100.000 habitantes, muito acima da Suécia (133/100.000). Ainda mais relevante é o excesso de mortalidade total ocorrido em Portugal durante 2020, grande parte devido a outras causas (não relacionado com a CoVID-19). Acresce que as medidas adotadas, centradas quase exclusivamente num confinamento extremo (de acordo com investigadores de Oxford, o mais rigoroso da Europa), caracterizado por recolher obrigatório e proibição da circulação, encerramento de amplos sectores da atividade económica (no comércio em particular), encerramento de grande parte da atividade assistencial dos setores da saúde e social, encerramento das escolas, etc., tiveram um impacto económico, social e na saúde (física e mental) da população desastroso.
A produção de riqueza, traduzida pela evolução do produto interno bruto (PIB), decresceu 7,7%; o déficit das contas do Estado foi de 11.501 milhões de euros (5,7% do PIB), a dívida pública bruta aumentou 8,2% e a dívida pública em percentagem do PIB subiu de 116,8% para 133,6%; a balança comercial passou de um valor positivo de 1.558,7 milhões de euros para um valor negativo de 3.583,3 milhões de euros (uma variação absoluta de 5.142 milhões de euros); o número de desempregados inscritos nos centros de emprego aumentou 26,6% e a taxa de desemprego (no total, disfarçada pelos mecanismos do “layoff”) variou, na faixa etária com menos de 25 anos (onde o “layoff” tem menos impacto), de 18,3% para 22,6%. O valor das moratórias ascende a cerca de 40 mil milhões de euros e o seu elevado risco de impacto negativo nas instituições financeiras começa a ser preocupante.
Várias instituições de solidariedade social, as quais se dedicam a encontrar fundos para financiar a disponibilização de refeições a quem não tem, sequer, recursos para angariar alimentos, vieram revelar que estavam a atingir o limite da sua capacidade – um indicador de que grassou fome, em sentido literal, na população, atingindo mesmo a designada classe média.
“… esqueceram-se que os modelos matemáticos não passam de meros instrumentos de auxílio na avaliação do efeito de medidas racionalmente sãs – os modelos matemáticos não combatem pandemias.”
Acrescem os impactos na saúde da população, resultantes do adiamento de cirurgias programadas, transplantações de órgãos, suspensão dos programas de rastreio, “fechamento” dos cuidados primários de saúde e do medo instituído, o qual levou a população a evitar recorrer, mesmo necessitando, aos serviços de saúde (o aumento do número de óbitos de causa não CoVID-19 ocorridos fora do hospital, ao contrário dos ocorridos em ambiente hospitalar, é demonstração disto mesmo), impactos esses que, a médio prazo (nos próximos anos), serão de aumento da morbilidade e da mortalidade (por falta de cuidados de saúde no presente).
Deixando de parte a atabalhoada resposta inicial à pandemia, típica da crónica falta de preparação para dar resposta a desafios súbitos, ainda que esperados (como é o caso das pandemias, que atingem o planeta periodicamente), característica da nossa governação – que “só se lembra de Santa Bárbara quando troveja”, os erros estratégicos mais relevantes foram (e são) os que a seguir se enumeram e tentam fundamentar:
1. Desde os tempos mais remotos da História, os governantes tiveram sempre um especial fascínio pela prática da adivinhação: consultaram os oráculos, ouviram os adivinhos que liam o futuro nas entranhas de animais sacrificados (abdómen, a designação anatómica de ventre, significa aquele que esconde os presságios), sondaram as revelações dos vates. E com razão (atento o conhecimento predominante nessas épocas remotas), porque governar tem muito de exercício de previsão. Nos nossos dias, esta necessidade de prever o futuro não é menor. É, portanto, natural que o poder político seja particularmente sensível a quem, agora utilizando a metodologia científica, apresente modelos matemáticos que ajudam a prever o modo como, neste caso concreto, a pandemia vai evoluir. E não se questiona o rigor colocado na elaboração desses mesmos modelos.
O grave erro é que esta fé nestes exercícios de previsão enferma de vários equívocos desastrosos: primeiro, quem elabora estes modelos matemáticos não tem competência técnica na área da saúde, em particular na gestão de sistemas de saúde, para, mesmo que incorpore neles o efeito potencial de medidas como o recolher obrigatório ou o encerramento das escolas, as poder recomendar (nem sequer se deveriam atrever a tanto); segundo, ao estimar a evolução do número de casos, apresentando essa evolução como cenário catastrófico, esquecem-se de um aspeto essencial – não é o número de casos que é importante, o que interessa, neste tipo de combate, são as consequências que essa evolução têm na sociedade e no bem comum (nomeadamente, a mortalidade total – não só a mortalidade atribuível à CoVID-19), bem assim como quais são as consequências na mesma sociedade e no mesmo bem comum que terão as medidas destinadas ao combate da pandemia (voltarei a este tópico mais à frente); terceiro, esqueceram-se que os modelos matemáticos não passam de meros instrumentos de auxílio na avaliação do efeito de medidas racionalmente sãs – os modelos matemáticos não combatem pandemias.
2. Ora, daqui decorreu que os decisores políticos e as autoridades de saúde centraram, com obsessivo fanatismo, toda a sua atenção na necessidade de reduzir o número de casos diários, abstendo-se daquilo que era (e é) realmente importante – proteger os mais vulneráveis, evitar a infeção dos que estão em maior risco de morte e fazê-lo através de medidas operacionais eficazes (no que foram absolutamente inoperantes), em vez de o fazer através de um confinamento extremista tão inefetivo como deletério, deixando que a sociedade e a economia funcionem e a doença siga o seu curso evolutivo atingindo apenas aqueles para os quais é, basicamente, inofensiva. Como se demonstra no gráfico seguinte, a mortalidade CoVID-19 foi praticamente inexistente nos escalões mais jovens (menores de 60 anos), razão para que toda a atenção devesse ter sido focada (e não foi) na prevenção da infeção nos mais idosos.
3. Para além deste erro fundamental, as medidas com as quais pretenderam proteger-nos da pandemia foram, ademais de inadequadas, muitas vezes contraditórias e contraproducentes. Relembra-se o longo período em que os portugueses foram obrigados a acumular-se nas grandes superfícies comerciais e noutras instituições, em filas de espera e no seu interior, em jardins e parques públicos, em cafés e farmácias, etc. durante o período da manhã, para de tarde, sob os ditames do recolher obrigatório, se confinarem em suas casas (para as quais, e para os seus agregados familiares, levavam o vírus, eventualmente contraído da parte da manhã) – um erro de palmatória que todos viemos a pagar muito caro.
4. Um surto epidémico, uma epidemia, uma pandemia combate-se, principalmente, através da capacidade operacional que se venha a criar para identificar os casos, promover a sua quarentena, quebrar, em tempo útil, as cadeias de transmissão. As nossas autoridades foram incapazes de garantir essa capacidade operacional. E nem sequer quiseram, a partir do outono de 2020, aproveitar a capacidade tecnológica de testagem entretanto desenvolvida, seguindo a evidência científica produzida pela análise de experiências de outros países (Eslováquia, China) – entretanto divulgada em revistas científicas.
O registo e vigilância epidemiológica falharam redondamente. Verificou-se um sem número de contactos de risco que apenas foram abordados pelas autoridades de saúde muitos dias depois desse seu contacto (sete, oito dias depois) e para lhes dizerem que deviam ficar em quarentena por dois ou três dias (com a, neste contexto, descredibilizante ameaça de que, se fossem abordados pelas autoridades policiais na via pública, seriam detidos). A recusa em instituir programas de testagem sistemática, nomeadamente em grupos de risco, utilizando testes rápidos de deteção de antigénio, criando as condições necessárias à realização de quarentena imediata de quem “testasse positivo” foi evidente e um erro grave, só comparável ao confinamento decretado em Janeiro de 2021, por recomendação de um dos ditos “especialistas”, enquanto, contemporaneamente, um prestigiado grupo de investigadores de Stanford, liderado por Ioannidis, publicava um artigo científico demonstrando a ineficácia do mesmo confinamento.
5. Conforme se mostra nos gráficos seguintes, o excesso de mortalidade não CoVID-19 ocorrido em 2020 teve um peso significativo no excesso de mortalidade total do mesmo ano. E foi nos escalões etários mais elevados que esse excesso de mortalidade (quer devida à CoVID-19 quer de outras causas) ocorreu. Nos mais jovens praticamente não se verificou aumento da mortalidade.
6. Na maior parte do último ano vivemos sob um regime excecional (entretanto tornado crónico e, portanto, ordinário), decretado pelo Presidente da República e aprovado pela Assembleia da República – o Estado de Emergência, imposto, conforme foi veiculado pela Comunicação Social, para dar cobertura a medidas legais de exceção e fundamentado pela situação de calamidade criada pelo vírus SARS-CoV-2. Não sei quais são os critérios utilizados pelos responsáveis políticos para definir calamidade. Sei, no entanto, que, em 2020, o número de óbitos devidos à CoVID-19 em Portugal foi de 67,9/100.000 habitantes. No ano anterior (não consegui encontrar referências a 2020), o número de óbitos devidos a doenças do aparelho circulatório foi de 324,9/100.000, enquanto, no caso das neoplasias, este número foi de 276,7/100.000 e, nas doenças do aparelho respiratório, de 118,8/100.000. São números que apontam para uma “calamidade” maior do que a condicionada pela CoVID-19. Tomemos como exemplo as doenças do aparelho circulatório, entre as quais sobressaem largamente, como causa de morte, o acidente vascular cerebral e o enfarte do miocárdio.
O combate a esta “calamidade” far-se-ia eficazmente se se proibisse a comercialização e consumo de sal, bebidas alcoólicas e muitos alimentos associados a estas doenças, se encerrassem os estabelecimentos onde tais produtos podem ser consumidos, incluindo restaurantes, bares e cafés, se impedisse a comercialização e consumo de tabaco, se obrigasse cada cidadão, em vez de ficar retido em casa, a sair para a rua e a correr diariamente durante 12 minutos, etc. Utilizando a mesma irrepreensível lógica, não seria de exigir que se decretasse o Estado de Emergência de modo a dar cobertura a todas estas medidas visando combater tal “calamidade”? Ou, colocando as coisas em perspetiva, será que a CoVID-19 se prefigurava mesmo como uma “calamidade”?
7. Ora, as autoridades de saúde e políticas consideraram que a CoVID-19 configurava a definição de calamidade, justificando com isso todas as medidas que vieram a ser tomadas. No entanto, foram incapazes de planear adequadamente a resposta do sistema de saúde a essa iminente “calamidade”. Durante meses fomos bombardeados com ideia de que a pandemia de CoVID-19 criava uma pressão enorme sobre o sistema hospitalar público. Esta ideia, repetida até à exaustão, era sustentada diariamente com notícias e imagens de hospitais sobrecarregados de doentes, alguns em situação caótica. Surgiram múltiplas iniciativas governamentais e não governamentais para responder a esta emergência sanitária.
Construíram-se hospitais de campanha, fizeram-se acordos com instituições do sector social para que o Estado comprasse vagas neste sector para enviar doentes que os hospitais públicos não tinham já “condições” para albergar, transferiu-se um sem número de doentes (CoVID-19 e não CoVID-19) de hospitais públicos (que se declaravam “sobrelotados”) para hospitais privados, etc. A única coisa que não se fez foi planear e organizar devidamente, em tempo útil, ou seja, entre Abril e Agosto de 2020, a resposta do sistema hospitalar, criando uma gestão centralizada e informatizada das camas disponíveis a nível nacional, de modo a, em tempo real, encaminhar doentes das instituições que estivessem sobrelotadas (se, de facto, o estavam e não fosse apenas o caso de não tratarem de se reorganizar internamente de modo a disponibilizar camas existentes e disponíveis de outras especialidades para acolher doentes CoVID-19) para instituições com capacidade para os acolher.
Na região de Lisboa e Vale do Tejo, houve administradores hospitalares a falar da diferente “carga de esforço” dos hospitais, ou seja, denunciando que havia hospitais a “rebentar pelas costuras” enquanto outros tinham taxas de ocupação baixas. Em alguns hospitais, houve dezenas de doentes nos serviços de urgência que esperaram, em condições infra-humanas, às vezes durante todo um fim-de-semana, que lhes fosse atribuída uma cama – apenas no dia útil seguinte, quando a respetiva administração regional de saúde iniciava os contactos com diferentes hospitais para encontrar algum que declarasse ter camas disponíveis para acolher esses doentes.
Perante este cenário, surpreenderá alguns, mas não os que conhecem e acompanham diariamente o estado do nosso sistema de saúde, que a verdade objetiva, nua e crua dos números revele uma realidade completamente diferente. O gráfico seguinte, mostrando a evolução das médias mensais das taxas de ocupação dos hospitais públicos portugueses entre Janeiro de 2019 e Janeiro de 2021, revela (dados de SNS, portal da transparência): que a taxa de ocupação dos hospitais públicos foi, em 2020, em plena pandemia, significativamente menor do que tinha sido em 2019 (esta diferença é, ainda, mais significativa no caso dos grandes hospitais); que, em pleno pico da pandemia, em janeiro de 2021, a taxa de ocupação dos hospitais públicos foi menor do que nos períodos homólogos de 2019 e 2020; que, comparando mês a mês, em todos os meses do período pandémico, a taxa de ocupação dos hospitais públicos portugueses foi menor do que em igual período do ano anterior. Excluíram-se desta análise, por razões óbvias, os hospitais psiquiátricos, os institutos de oncologia e os centros de reabilitação.
A principal explicação para este facto tem a ver com o excecional decréscimo do número de atendimentos nos serviços de urgência, o qual baixou de 6.395.240, em 2019, para 4.601.208, em 2020, uma diminuição de 28%.
Outra explicação é a suspensão da atividade programada que se verificou, até por ordem ministerial, em muitos hospitais. Os dados apresentados mostram, claramente que, no que concerne à capacidade de internamento hospitalar, o que se verificou em Portugal foi impreparação, falta de planeamento, desorganização. Uma atempada preparação e uma gestão centralizada e informatizada das camas hospitalares teria permitido responder mais eficazmente às necessidades de internamento colocadas pela pandemia, teria evitado todas as desnecessárias iniciativas de criação de hospitais de campanha, teria prevenido o caos vivido em alguns hospitais e, igualmente importante, teria garantido que os doentes não CoVID-19 não fossem tão prejudicados.
“Foi por puro desconhecimento da real situação no terreno, por incapacidade de gerir as camas disponíveis (em maior número do que era habitual), por mero medo (originado pela ignorância) de que a situação se descontrolasse que tudo se precipitou – fecharam-se os cuidados primários de saúde, parou-se grande parte da atividade hospitalar, apostou-se num confinamento extremista, com a justificação de que era necessário evitar o colapso dos hospitais. Erro, após erro, após erro.”
Não tendo os dados objetivos (não os declarados) relacionados com os cuidados intensivos, não é possível analisar este aspeto da maior relevância nesta pandemia. No entanto, nesta área, não foram as ridículas, demagógicas e politicamente motivadas ajudas internacionais que colmataram o problema. Realça-se que, para além de tudo o referido, esta desorganização da resposta agravou significativamente a carga de trabalho imposta aos profissionais de saúde (cuja dedicação, abnegação e capacidade de ir além dos limites do humanamente exigível ficaram bem demonstradas). Foi por puro desconhecimento da real situação no terreno, por incapacidade de gerir as camas disponíveis (em maior número do que era habitual), por mero medo (originado pela ignorância) de que a situação se descontrolasse que tudo se precipitou – fecharam-se os cuidados primários de saúde, parou-se grande parte da atividade hospitalar, apostou-se num confinamento extremista, com a justificação de que era necessário evitar o colapso dos hospitais. Erro, após erro, após erro.
No ano de 1569 grassou a Grande Peste de Lisboa. Também na altura, o rei D. Sebastião seguiu as indicações de especialistas, desta vez vindos de Sevilha, mandando aplicar medidas que, atentas as diferenças na etiologia, no modo de transmissão da doença e de época, não foram de carácter muito diferente das utilizadas nos nossos dias e já vinham da idade média. As penalidades aplicadas aos infratores, dependentes do seu estatuto socioeconómico, eram: açoitamento em praça pública e degredo na ilha de São Tomé durante sete anos, para a plebe; ou, multa e degredo numa aldeia da Beira interior durante dois anos, para os nobres ou mercadores.
No século XXI, o combate que as autoridades fizeram a esta pandemia não difere muito das metodologias medievais, nem sequer no modo como as penalidades (agora menos brutais e cruentas, mas igualmente insensatas) são aplicadas diferenciadamente ao membro anónimo do povo ou à figura pública. Não houve, em todo este tempo de pandemia, para além da emergência das vacinas, um rasgo inovador, um golpe de asa, uma arrojada decisão ao nível de estadista. Para além de tudo o que já se escreveu, recusou-se a evidência sobre o reposicionamento de medicamentos potencialmente eficazes em prevenção e tratamento precoce; aprovaram-se medicamentos extremamente dispendiosos e completamente inúteis, apenas porque foram apresentados por grandes empresas farmacêuticas; fizeram-se recomendações contra a utilização de medicamentos eficazes (dexametasona e outros corticosteróides), provocando milhares de mortes evitáveis. Finalmente, fez-se regredir a sociedade, no que diz respeito aos direitos da cidadania, a níveis próximos dos medievais.
A Pólis, no dizer de Simónides, “mestra do homem”, foi intencionalmente subjugada, em muito do que tem de lugar de interação social, de expressão livre do pensamento, de criação artística e cultural, de centro de atividade económica, etc. A Democracia foi violentada e empobrecida.
- António Ferreira, Médico Internista, Professor Universitário