Ouvimos várias opiniões sobre a gravidade das miocardites e pericardites. As diferentes ideias vão desde serem algo ligeiro que passa normalmente sem problema, até ao serem muito graves. Mas, a Dra. Dulce Brito, especialista em cardiologia, alerta que estas são muitas vezes silenciosas e que podem passar despercebidas.
Em conversa com o The Blind Spot, a Dra. Dulce Brito, cardiologista no Hospital de Santa Maria e professora convidada de cardiologia, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, falou-nos sobre a gravidade das miocardites e pericardites e a frequência das mesmas em situações de pós-covid e pós-vacina.
A Dra. Dulce Brito destacou em entrevista que a incidência real de miocardite é difícil de avaliar, mas que frequentemente a doença afeta mais os jovens.
Deixou também claro que mesmo na época pré-covid os casos codificados como “miocardite” não são muitos e acredita que muitas situações na população geral passarão indetectáveis.
A especialista em cardiologia salienta que nos casos pós vacina, as miocardites podem ser mais frequentes após a segunda dose, em jovens, com base num estudo recentemente publicado e que “a resposta imunológica tem um papel fundamental na patogenia da inflamação do coração”.
Aliás, quer na infeção natural, quer após a vacinação, as próprias defesas do organismo podem tornar-se “agressoras” e quando a pessoa é mais jovem a resposta imunológica é de grande defesa.
Qual é a percentagem de casos graves de miocardite e pericardites, atualmente?
Não tenho números e estes serão difíceis de estimar, em qualquer contexto, visto que a maior parte dos casos os doentes afetados terão sintomas inespecíficos e ligeiros e com duração autolimitada. Assim, passarão facilmente despercebidos e não sentirão necessidade de procurar o hospital. A incidência real de miocardite é difícil de avaliar. Casos mais graves são poucos como referi e esses sim procuram o apoio hospitalar. Frequentemente a miocardite afeta mais os jovens, surge no decurso de uma infeção viral e pode dar dor torácica simulando por vezes enfarte de miocárdio. Outras vezes pode expressar-se por insuficiência cardíaca ou até por arritmias. Pessoalmente não recordo termos tido casos graves internados no último ano.
“A maior parte dos casos evolui bem e em alguns dias apenas, como referi, mas na verdade é sempre imprevisível e a vigilância é necessária.”
Como referi a miocardite tem geralmente uma evolução benigna, com sintomas ligeiros e de curta duração (alguns dias), visto que as defesas orgânicas (resposta imunológica de defesa) “vencem a batalha”. E a agressão (geralmente viral) pode ser causada por muitos vírus, mesmo pelos mais comuns, associados à vulgar “constipação” com manifestações de tipo gripal, com dores musculares e por vezes também dor torácica (que muitas vezes é passageira e pouco valorizada). No entanto, a infeção pode também estar no coração (miocardite) e deixar sequelas que se manifestarão posteriormente. Quando os sintomas levam o doente ao médico e a miocardite é um possível diagnóstico, há indicação para internamento hospitalar porque se impõe não apenas a realização de exames para confirmar o diagnóstico como a vigilância do doente. A maior parte dos casos evolui bem e em alguns dias apenas, como referi, mas na verdade é sempre imprevisível e a vigilância é necessária.
Em casos raríssimos, como por exemplo do vírus influenza ou outro vírus, a miocardite ou pericardite pode resultar em morte súbita?
A evolução de uma situação de inflamação cardíaca (miocardite) é imprevisível. E, sendo imprevisível, podem ocorrer arritmias e morte súbita. Dizemos que são situações raras porque na verdade não chegam à nossa vista. Mas não sei se são situações assim tão raras. De notar que em particular na prática desportiva, há que ter cuidado com os “simples resfriados” que decorrem com febre ou febrícula e dores musculares. Praticar exercício físico nessas situações poderá ter consequências graves, pois pode tratar-se de uma infeção viral na qual o coração também pode estar envolvido.
“(…) miocardiopatia dilatada”
Mas, uma forma de doença cardíaca grave e frequente é a miocardiopatia dilatada. O coração não contrai como deve e geralmente está dilatado. Uma das suas causas (e possivelmente uma das mais frequentes) é justamente infeção viral prévia. Às vezes demora anos a instalar-se e o coração vai enfraquecendo, dilata e começa a funcionar de forma deficiente, levando a insuficiência cardíaca crónica. Outras vezes o processo é mais rápido e instala-se esta situação em dias ou semanas. Por vezes, após a infeção aguda, tudo volta ao normal. Mas quando o processo é crónico já não há regressão ao estado prévio.
Uma das expressões que normalmente é utilizada para descrever essas sequelas é a cicatrização. Faz sentido?
Sim. Muitas vezes a dilatação e a evolução para a fase de “miocardiopatia dilatada” crónica, ocorre porque após a fase aguda da inflamação há formação de “cicatrizes” (fibrose), zonas do músculo cardíaco que deixam de funcionar, de contrair. As zonas não afetadas do coração tentam compensar as zonas mais deficitárias, há uma tentativa de adaptação cardíaca à nova situação. Essa adaptação leva frequentemente a dilatação e, no global, a um funcionamento cardíaco deficitário, pior contractilidade do coração. Não só a inflamação na fase aguda pode dar arritmias fatais, a fibrose (“cicatrizes”) pode também levar a arritmias graves, além de insuficiência cardíaca.
Qual é a sua opinião sobre a frequência de miocardites pós-covid e pós-vacina?
A minha opinião é obviamente que a infeção a Covid-19 pode dar miocardite, bem como a vacina. E a literatura tem sido muito rica em publicações sobre esta temática. No entanto, aproveito para citar um trabalho muito recente (publicado na revista The Lancet, Abril 2022) no qual em revisão sistemática com meta-análise de 22 estudos, se verificou não haver diferença significativa na incidência de miopericardites pré-covid, pré-vacina ou pós-vacina. Nos casos pós-vacina e principalmente após a segunda dose, a afeção inflamatória cardíaca mostrou ser mais frequente em jovens e no sexo masculino.
É mais notório na segunda dose da vacina, ou seja, é uma situação em que a pessoa foi exposta uma vez à vacina, depois foi exposta uma segunda vez e as suas próprias defesas, a sua própria imunidade adquirida é que pode ser a grande responsável pela inflamação. Aliás mecanismos de autoimunidade são por vezes os responsáveis pela perpetuação da inflamação após miocardite por vírus comuns e em muitas das situações de pericardite ou miopericardite pode haver recorrência da infeção.
“(…) a pessoa foi exposta uma vez à vacina, depois foi exposta uma segunda vez e as suas próprias defesas, a sua própria imunidade adquirida é que pode ser a grande responsável pela inflamação.”
Uma das questões que normalmente se nota é uma grande diferença nomeadamente em relação aos efeitos adversos da vacinação. Existe uma diferença muito grande nos mais jovens, nomeadamente nos homens, mas também para as pessoas mais velhas. Há algum mecanismo ou evidência que isso é naturalmente assim?
Uma infeção viral desencadeia uma resposta inflamatória de defesa. Assim é naturalmente e ainda bem, porque senão morreríamos a cada infeção! No entanto, dependendo do vírus agressor (das suas características, do seu “poder de ataque”, da sua carga) e do hospedeiro (maior ou menor capacidade de defesa, maior ou menor fragilidade, outras doenças concomitantes, idade, etc.), assim irá ser essa resposta de defesa. E essa resposta manifesta-se em sintomas, em queixas. Os jovens respondem com maior exuberância, têm defesas mais robustas (se forem saudáveis), os mais velhos respondem geralmente de forma mais fraca, a resposta de defesa é mais “esbatida”. E não podemos esquecer que a idade traz mais patologias associadas, as quais fragilizam o indivíduo, tornam-no de “maior risco” em termos de consequências da agressão, nomeadamente se tiver patologia cardiovascular prévia.
A vacina estimula a imunidade duma forma muito mais controlada do que a infeção viral natural. E os mesmos fatores que expressei acima em termos de diferenças na resposta imunológica entre indivíduos mais novos e mais velhos aplicam-se também.
“Os jovens respondem com maior exuberância, têm defesas mais robustas (se forem saudáveis), os mais velhos respondem geralmente de forma mais fraca (…)”
Estamos a falar de miocardite e de pericardite, mas existem algumas outras infeções que tenham algum impacto significativo, como por exemplo a endocardite?
Se falamos de vírus, as situações que me refere agora são totalmente diferentes. A causa de endocardite (que aliás é sempre uma situação grave) é geralmente bacteriana, não viral. As situações de miocardite e/ou pericardite, são geralmente virais (embora também possam ser causadas por outros agentes). A endocardite é uma infeção das estruturas mais internas do coração. Poderá também envolver o miocárdio e até o pericárdio (situação de “pancardite”), mas tal não é frequente.
Em termos de diagnóstico, quando é diagnosticada a miocardite qual é a taxa de mortalidade?
A taxa de mortalidade é baixa, mas duvido que encontre números que reflitam a realidade global. Há, no entanto, alguns números de casuísticas individuais e que podem dar uma ideia aproximada da realidade. No registo Português de Miocardites, levado a efeito há cerca de nove anos pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia e no qual foram incluídos 240 doentes internados com miocardite aguda em muitos hospitais portugueses, ao longo do período de um ano, apenas ocorreu um caso fatal (com insuficiência cardíaca aguda e choque cardiogénico). Claro que são apenas os resultados de um registo e durante um determinado período de tempo, mas, no global e como referi a mortalidade é baixa.
Consegue descrever-nos o estado de algum doente após o atraso de diagnóstico devido à pandemia?
A realidade que lhe posso descrever é a que resultou do receio dos doentes em dirigirem-se ao hospital durante o período pandémico. Muitas situações de enfarte agudo de miocárdio e possivelmente de miocardite não puderam ser diagnosticadas e, mais tarde, após passar a pandemia e o receio, chegam-nos sob a forma de insuficiência cardíaca grave e irreversível. Mas podemos culpar as pessoas pelo receio que tiveram em vir ao hospital quando não se sentiam bem? Não. Foi criado um pânico geral legitimado pela imprensa porque na verdade a pandemia foi fatal para milhões de pessoas no mundo. Não podemos culpar ninguém, mas a verdade é que o receio teve consequências.
“ (…) o receio teve consequências.”
Em alguns países nórdicos, no caso de pessoas muito idosas e frágeis, foi dada a autonomia ao médico em relação à decisão de tomar a vacina ou não…
Considero que há sempre maior risco em ser infetado pelo vírus comparativamente à possibilidade de reações à vacina. E do que tenho lido, a verdade é que a maior parte dos estudos publicados dão a entender que a infeção por vírus é pior do que qualquer excesso de reação imunológica pela vacina.
No seu ponto de vista, qual é o estado da cardiologia em Portugal?
É das melhores do mundo. Se há coisas para melhorar? Há sempre coisas para melhorar. No entanto, a nossa cardiologia é realmente das melhores do mundo, embora as condições nem sempre o sejam.
“A nossa cardiologia é realmente das melhores do mundo, embora as condições nem sempre o sejam.”
Em colaboração com: Nuno Machado, Diretor The Blind Spot