Um artigo publicado na Nature apresenta a evidência de uma imunidade duradoura na maioria das pessoas após infeção por SARS-CoV-2. Analisa igualmente a interpretação, muitas vezes errada, sobre o significado da queda dos níveis de anticorpos e desse fenómeno ser usado como justificação para revacinar a população. Tiago Marques, médico infeciologista, comenta o estudo e analisa a situação em Portugal.
Num artigo publicado na revista Nature é abordado o tema da duração da imunidade ao SARS-CoV-2. Os autores descrevem os principais pilares de uma resposta antiviral:
- As células imunitárias chamadas células T citotóxicas, que podem eliminar seletivamente as células infetadas, e anticorpos neutralizantes;
- Os anticorpos neutralizantes, um tipo de anticorpo que impede um vírus de infetar células, e que é segregado por células imunes chamadas células plasmáticas.
- A geração de células T “Helper” (auxiliares), que são específicas para o vírus e coordenam a reação imune.
Ora, são precisamente estas células T “Helper” que estão envolvidas na geração de memória imunológica. Concretamente, organizam o aparecimento de células plasmáticas de longa duração, que segregam anticorpos antivirais mesmo na ausência do vírus.
Memória de longa-duração
Os autores relembram que “a memória imunológica não é uma versão duradoura da reação imunológica imediata a um determinado vírus; em vez disso, é um aspeto distinto do sistema imunológico.”
As células B e T de memória específicas para um vírus surgem a partir de células ativadas na reação imunológica inicial. Na fase de memória, as células B e T são mantidas em estado de dormência, mas estão prontas para serem ativadas se se depararem de novo com o vírus (ou com uma vacina para o mesmo).
Imunidade duradoura para o SARS-CoV-2
No artigo é descrito o duplo papel das células B na imunidade:
– Produção de anticorpos que reconhecem proteínas virais, e apresentação de partes dessas proteínas a células T específicas;
– Desenvolver-se em células plasmáticas produtoras de anticorpos em grandes quantidades.
Estas células plasmáticas “podem tornar-se células de memória, e segregar anticorpos para uma proteção duradoura”, podendo-se manter durante décadas, se não uma vida inteira, na medula óssea.
Apesar de serem extremamente escassas, por serem específicas para cada agente causador de doenças, uma investigação conseguiu detetar células de plasma de memória para SARS-CoV-2 em 15 de 19 indivíduos (7 meses após a infeção).
Passados 4 meses (11 meses após a infeção SARS-CoV-2), o número de células plasmáticas manteve-se estável nos indivíduos analisados (com uma exceção). Como essas células não multiplicaram, podem ser classificadas como células de memória propriamente ditas.
Os autores salientam que:
“Os seus números igualaram os das células plasmáticas de memória encontradas nos indivíduos após a vacinação contra o tétano ou a difteria, e que fornecem imunidade a longo prazo a essas doenças.”
Mecanismo de imunidade de longo prazo semelhante a muitos vírus
No estudo referido foi possível observar que as concentrações de anticorpos contra SARS-CoV-2 seguiam um padrão bifásico (Fig. 1). Ou seja, na resposta imunológica aguda durante a infeção inicial, as concentrações de anticorpos são elevadas.
Depois, declinam, como era esperado, porque a maioria das células plasmáticas de uma resposta imunológica aguda são de curta duração. Após alguns meses, as concentrações de anticorpos estabilizaram e mantiveram-se mais ou menos constantes, com cerca de 10-20% da concentração máxima observada.
Para os investigadores tal facto “é consistente com a expectativa de que 10 a 20% das células plasmáticas numa reação imunológica aguda se tornem células plasmáticas da memória, e é uma indicação clara de uma mudança da produção de anticorpos por células plasmáticas de curta duração para a produção de anticorpos por células de plasma de memória.”
Concluem que:
“Isto não é inesperado, dado que a memória imune a muitos vírus e vacinas é estável ao longo de décadas, se não para uma vida inteira.”
Figura 1 | A resposta imune à infeção SARS-CoV-2.
“Estão a tornar-se disponíveis dados que iluminam aspetos a longo prazo da resposta imune humana à infeção por coronavírus. Um dos componentes da resposta à defesa é a produção de anticorpos que visam proteínas virais (linha vermelha).
Durante a fase inicial, aguda da resposta imunitária, os níveis de anticorpos atingem rapidamente; este pico é gerado por células imunitárias de curta duração chamadas células plasmáticas. Turner et al. evidência clínica presente, de pessoas que tiveram COVID-19, que as células plasmáticas de memória de longa duração que produzem anticorpos são geradas na medula óssea.
Estas células fornecem uma produção de anticorpos a longo prazo que oferece proteção estável a um nível de 10-20% disso durante a fase aguda (linha azul). As células de plasma de memória são um tipo de célula que pode ser mantida por muitos anos, se não uma vida inteira.
Wang et al. têm caracterizado respostas anticorpos entre seis meses e um ano em pessoas que foram infetadas com SARS-CoV-2; os seus resultados também fornecem provas para a geração de memória imunológica.”
Consequências para a análise da eficácia das vacinas
Os autores alertam para o erro na avaliação da eficácia da vacina que decorre de se esperar que as elevadas concentrações de anticorpos, características das reações imunitárias agudas, sejam mantidas na fase de memória.
“É um velho equívoco, quando se defende revacinações frequentes, que as concentrações de anticorpos durante a reação imunitária aguda podem ser comparadas com as posteriores, para calcular uma “meia-vida” imaginária de imunidade mediada por anticorpos.”
Em conclusão destacam que “as evidências até agora preveem que a infeção com SARS-CoV-2 induz imunidade a longo prazo na maioria dos indivíduos” e que aguardam mais dados sobre as respostas da memória à vacinação.
Pedimos ao médico infeciologista Tiago Marques que comentasse o artigo e que interpretasse a situação atual em Portugal:
“Os autores comprovam que a resposta imunológica a SARS-CoV-2 é a expectável e não difere da resposta a outras infeções virais (e inclusive à descrita no SARS-CoV-1). Após uma infeção aguda, e não existindo persistência viral no organismo (exemplos do herpes, citomegalovírus , vírus da mononucleose…) , a concentração sanguínea ( título) de anticorpo tende a decair ao longo do tempo, e a imunidade é mantida por células de memória (não seria fisiologicamente praticável manter títulos de anticorpos máximos para todos os antigénios com que contactamos ao longo da vida).
Ao mesmo tempo existe uma maturação dos anticorpos, pelo que títulos menores asseguram a mesma eficácia uma vez que a sua afinidade aumenta (muitos anticorpos produzidos na fase inicial são não neutralizantes e esses são eliminados com o tempo, a favor de anticorpos IgG de alta afinidade em título mais baixo). Por outro lado, as células de memória persistentes têm a capacidade de reativar a produção de anticorpos caso necessário (resposta anamnéstica).
No entanto, e como em muitos vírus respiratórios em que existem pequenas variações por mutação do vírus (deriva antigénica), as reinfeções por SARS-CoV-2 são frequentes e até esperadas (os quatro coronavírus sazonais que existem são caracterizados por reinfeções frequentes mesmo com títulos elevados de anticorpo, sendo a sua gravidade limitada pela resposta de células T).
Neste momento existe em Portugal uma alta incidência de infeção por SARS-CoV-2, embora não exista a gravidade que se viu na vaga alfa, por exemplo. Tal não deve ser interpretado da mesma forma que em outros períodos de atividade pandémica, caracterizados por elevada incidência e gravidade numa população naive (como não existiam células T reativas a SARS-CoV-2 para limitar a gravidade, a expressão da infeção era muitíssimo mais gravosa). Neste momento notamos que embora o número de infeções seja muito elevado, a sua gravidade é muito inferior à que tradicionalmente ocorria, o que traduz a imunidade (vacinal e também natural pela exposição ao vírus) existente na população, e faz supor a evolução em paralelo com os coronavírus sazonais.
Provavelmente o SARS-CoV-2 tenderá a evoluir em mais ou menos tempo para a sazonalidade, existindo atualmente um elevado grau de imunidade na população geral, pelo que na ausência de elevadas repercussões em cuidados intensivos (e portanto, doença grave), o número de infeções significa muito pouco (mantêm-se no entanto riscos para a população imunodeprimida – especialmente com doença hematológica maligna e certos tipos de imunoterapia- que deve manter cuidados particulares).”