Documentos internos do Twitter recentemente divulgados mostram que a rede social permitiu a existência de contas do CENTCOM, uma divisão do Departamento de Defesa norte-americano, que eram usadas para a sua campanha de influência online no exterior. De acordo com os detalhes recentes dos arquivos divulgados, sabe-se que o Twitter tem sido usado pelo Pentágono para impulsionar as suas “operações de influência psicológica online”.
Os executivos do Twitter afirmavam que a empresa fazia esforços concertados há vários anos para detetar e frustrar campanhas de propaganda secreta apoiadas pelo governo na sua plataforma.
Nos bastidores, porém, o Twitter aprovou e protegeu internamente a existência de contas da rede militar norte-americana, a pedido do governo. Segundo a investigação do The Intercept aos documentos da empresa recentemente divulgados, o Pentágono usou essa rede militar, que inclui portais de notícias criados pelo governo dos EUA, para moldar a opinião pública relativamente a diversos países, caso do Iémen, Síria, Iraque e Kuwait, entre outros.
As contas em questão do gigante das redes sociais estavam originalmente relacionadas com o governo dos EUA. Mas o Pentágono interviu, mudou de tática e começou a esconder a sua ligação com algumas destas contas.
A estratégia foi uma forma de manipulação intencional da plataforma, que o Twitter se opôs publicamente. Embora os executivos da rede social soubessem da existência dessas contas, optaram por não as fechar, deixando-as permanecer ativas durante anos. Algumas dessas contas continuam ativas.
As revelações estão contidas nos arquivos de e-mails e de ferramentas internas do Twitter, às quais o The Intercept e vários jornalistas tiveram acesso por um breve período de tempo durante o mês de dezembro. Após a compra do Twitter por Elon Musk, o bilionário começou a dar acesso a documentos da empresa, dizendo num tweet que “a ideia genérica é descobrir qualquer coisa de mal que o Twitter tenha feito no passado”.
Segundo Lee Fang, o jornalista que conduziu a investigação do The Intercept, o apoio direto que o Twitter forneceu ao Pentágono remonta há, pelo menos, cinco anos.
Serviços secretos criam perfis falsos
Os militares e os serviços secretos norte-americanos há muito que prosseguem uma estratégia de criação de perfis online falsos para divulgar certas narrativas em países estrangeiros. A ideia é que um portal de notícias, aparentemente verdadeiro, em língua persa ou uma mulher afegã local terá maior influência orgânica do que um comunicado oficial do Pentágono.
Os esforços militares de propaganda online foram, em grande parte, regidos por um memorando de 2006. O documento refere que as atividades na internet por parte do Departamento de Defesa devem “reconhecer abertamente o envolvimento dos EUA” exceto nos casos em que um “comandante acredita que não será possível devido a considerações operacionais”. Este método de não divulgação, refere o memorando, só é autorizado para operações na “guerra global contra o terrorismo, ou quando especificado noutras ordens de execução do Secretário da Defesa”.
As operações psicológicas clandestinas, como a prática de criar contas falsas nas redes sociais para difundir propaganda, foram legalmente confirmadas na Secção 1631 da Lei de Autorização de Defesa Nacional de 2019. Segundo um artigo do New York Post, a medida foi um esforço para combater campanhas de desinformação por parte da Rússia, China e outras ameaças estrangeiras.
Militares recorrem ao “deep fake”
O Internet Archive não preserva o histórico completo de cada conta, mas o The Intercept identificou várias contas que estavam inicialmente listadas como sendo do governo dos EUA e que, após terem sido divulgadas, deixaram de ter qualquer referência aos militares, passando a ser identificadas como sendo de utilizadores comuns.
A conclusão do The Intercept parece estar em linha com um relatório publicado em agosto por investigadores de segurança online afiliados ao Observatório da Internet de Stanford. O relatório fala em milhares de contas suspeitas de fazer parte de uma operação de informação apoiada pelo Estado, em que muitas das quais usavam rostos humanos fotorealistas gerados por inteligência artificial, uma prática também conhecida como “deep fake” (falsificações profundas).
Os investigadores ligaram estas contas a um vasto ecossistema online que incluía sites de “fake news”, contas de memes no Telegram e Facebook, e personalidades online que ecoavam mensagens do Pentágono, muitas vezes sem divulgação da ligação com os militares norte-americanos.
O relatório de Stanford não concluiu em definitivo a ligação das contas falsas ao CENTCOM nem forneceu uma lista completa das contas do Twitter. Mas os e-mails obtidos pelo The Intercept mostram que a criação de pelo menos uma destas contas estava diretamente ligada ao Pentágono.
Reuniões secretas entre militares, Facebook e Twitter
Durante muitos anos, o Twitter comprometeu-se a acabar com todos os esforços de desinformação e propaganda apoiados por um Estado e sem nunca considerar uma exceção explícita para os EUA.
Em 2020, o porta-voz do Twitter, Nick Pickles, num depoimento perante o Comité de Inteligência da Câmara dos Representantes, disse que a empresa estava empenhada em “eliminar esforços coordenados de manipulação de plataformas” atribuídos às agências governamentais.
“Combater as tentativas de interferir nas conversas no Twitter continua a ser uma prioridade para a empresa”, disse Pickles, assegurando que a sua empresa continua a investir fortemente nos esforços de “deteção, perturbação e transparência” relacionados com operações de informação apoiadas pelo Estado. Para o porta-voz do Twitter, o objetivo é “remover os utilizadores que ajam de má-fé e promover o entendimento do público sobre esses assuntos críticos”.
Em 2018, por exemplo, o Twitter anunciou a suspensão em massa das contas ligadas aos esforços de propaganda ligados ao governo russo. Dois anos depois, a empresa congratulava-se por ter encerrado quase 1.000 contas por ter sido feita a associação com militares tailandeses. Mas as regras relativas à manipulação de plataformas, ao que parece, não foram aplicadas aos esforços militares americanos.
No verão de 2020, funcionários do Facebook alegadamente identificaram contas falsas atribuídas à operação de influência do CENTCOM na sua plataforma e avisaram o Pentágono que, se Silicon Valley podia facilmente identificar essas contas como falsas, os adversários estrangeiros também poderiam-no fazer, de acordo com uma reportagem do Washington Post publicada em setembro.
Os e-mails do Twitter mostram que durante esse período em 2020, executivos do Facebook e do Twitter foram convidados pelos principais advogados do Pentágono para assistirem a reuniões confidenciais em instalações militares secretas.
O Facebook teve “uma série de reuniões privadas entre o seu representante legal e o conselho de generais”, escreveu Yoel Roth, na altura o responsável de segurança do Twitter, citado pelo The Intercept. “Para o Facebook”, prossegue Roth, “os generais indicaram que tinham a forte intenção de trabalhar connosco para remover vestígios da atividade – mas recusam-se agora a discutir detalhes ou procedimentos adicionais fora de negociações confidenciais”.
Uma advogada no Twitter indicou num e-mail aos seus colegas que o Pentágono poderá pretender classificar retroativamente as suas atividades nas redes sociais “para iludir a sua atividade e que isso pode representar uma sobreclassificação para evitar constrangimentos”.