Quem não conhece a história está condenado a repeti-la. Mas será mesmo assim? A realidade fala por si e apresenta-se muito mais complexa. Serve esta coluna de opinião para sugerir algumas reflexões críticas sobre os acontecimentos históricos contemporâneos à luz da psicologia e da geopolítica. Como assim, deve estar a pensar? Se esboçou um sorriso, vá lá, pegue num café e venha daí. Vamos conduzi-lo por um universo mágico de enigmas históricos, oferecendo-lhe algumas peças para ir construindo um caminho e compreender, com mais instrumentos, o puzzle deste admirável novo anormal … Porque, na verdade, a construção do puzzle da nossa Vida é da competência exclusiva do eu volitivo que, ao arrepio do que pretendem algumas teorias históricas revisionistas progressistas, existe, está de pedra e cal, mas … a modos que adormecido. Vamos então?
Recentemente, o primeiro momento em que realmente me apercebi de que algo estava a mudar não foi com a Troika. Foi com o murmúrio de Mme Lagarde sobre a necessidade de tomar decisões drásticas já que as sociedades ocidentais estavam envelhecidas. Poucos anos depois, recordo-me de ter ouvido comentar sobre o fim do único programa de debate televisivo de então – «Prós e Contras». Estávamos no mês do Natal, em dezembro de 2018. Fiquei perplexa, mas pensei que seria apenas uma pausa oportuna para a equipa fazer umas férias ou ganhar um novo fôlego criativo. Mas não. A assinatura mudara, para um tom mais intimista – o formato da entrevista, de um para um. Permaneceu a dúvida. E um ano depois, em dezembro de 2019, compreendi que deixara de haver interesse público relativamente a espaços de debate televisivo, talvez porque agitasse muito as águas, legitimasse o contraditório e a competição de ideias.
Ora a História dizia-me que este facto era um mau presságio e pensei que poderíamos estar a inaugurar um momento histórico de re-construção humana e societal. Recordo-me, então, de ter pensado que se assim fosse, lá vinha de novo o padrão da narrativa do «novo homem». Mas como? Ou com que fim? E posso desde já garantir-lhe que não consultei nem o Oráculo de Delfos, nem os Gansos do Capitólio, nem os búzios do Dr. Caramba … Não. Fiquei na expectativa. Alguma coisa estaria para emergir.
E, na realidade, não era difícil ficar a imaginar porque, os meios tecnológicos cada vez mais sofisticados e concentrados podiam ser direcionados para a difusão de uma nova propaganda ao estilo de Bossuet. Ora Jacques-Bénigne Bossuet tinha ficado para a História como Jacques Bossuet. Pertencia a uma família de magistrados de Dijon e tinha nascido a 27 de setembro de 1627. Com apenas 15 anos iniciara o estudo de Teologia em Paris, e fora ordenado padre em 1652, ano em que defendera o seu doutoramento. Tornara-se, finalmente, no arcebispo de Metz. Este teólogo tinha sido convidado a redigir as bases teóricas do «direito divino» pois era necessário dar uma base legítima ao poder absoluto. Ou seja, de uma forma muito simples e resumida: o rei seria o fiel intérprete de Deus; o rei deveria governar os súbditos como um bom pai; a autoridade real seria sagrada e incontestada; e qualquer rebelião contra ela seria criminosa. Repito, era esta a narrativa do direito divino do poder soberano. E, como sabemos da história, Luís XIV reinou apoiado neste oráculo de Dijon.
Ora, o trágico, na vida humana é ter sempre existido outros Bossuet, antes e depois dele. Aliás, a história recente do século XX é fértil neste modelo de dupla providencial ao estilo de Luís XIV-Bossuet. Ou seja, apesar de tecnologicamente mais avançados, o século XX é fértil no padrão de governantes com esta vocação paternalista, inspiracional e legítima intérprete do bem-estar dos povos. Provavelmente já deve estar a pensar naqueles «Pais» que foram exímios condutores de cidadãos tais como Hitler, Estaline, Mao ou Pol Pot. Também eles, quais soberanos absolutistas, exigiram dos seus cidadãos total confiança em três projetos que apresentavam: primeiro, o do «Novo Homem»; segundo, o Estado «novo»; terceiro, o de um futuro progressista mais justo porque igualitário e sem pobreza. Tudo, como argumentado, em prol do «bem comum». E, para o cumprimento dessas narrativas escatológicas, providenciais no mais puro estilo de Bossuet, exigiram mais, pois exigiram ser a única fonte da verdade.
Na realidade, os factos recentes também nos recordam este tipo de vontade providencial manifestada por líderes como Jacinta Ardem na Nova Zelândia, como Nicola Sturgeon na Escócia ou como Justin Trudeau no Canadá. De uns já reza a história … porque a história faz-se todos os dias e também é escrita por multidões. Por isso, esta liderança virtuosa e ao serviço dos governados, esta liderança generosa daqueles líderes políticos que se autoproclamam videntes é sempre complicada. Sabe-se sempre como começa, mas nunca se sabe bem como termina. Claro que há sempre exceções e apenas uns quantos ficam na História – às vezes pelos piores motivos. Por exemplo, Cleópatra, também, só há uma.
Mas, estará a pensar, por que razão fui buscar Bossuet? Na realidade, ali trocado por miúdos, qual foi o gatilho que me fez recordar Bossuet? Pois bem, o gatilho foi a leitura de Yuval Harari, historiador, filósofo e escritor israelita. Este oráculo de Davos e mago da história do «novo normal» tem partilhado algumas profecias interessantes como a obsolescência humana. Vi logo nele o Bossuet dos tempos modernos. Tempos estranhos estes, algo exotéricos, prestes a testemunhar uma nova narrativa «supremacista» com a ambição de, uma vez mais, controlar as sociedades humanas – controlar em prol do bem comum, claro está. Agora, outra conversa é saber quem define o bem comum e é aqui que surge a nova relação Bossuet-Harari em virtude da narrativa do controlo totalitário da sociedade. Mas isso são ainda outros quinhentos, que havemos de abordar noutro momento. Para já, compreendemos muito bem que, como diria Chomsky, estamos num tempo em que, por um lado se procura definir os limites da discussão pública, por outro se procura capturar a atenção exclusiva do «Homo Videns» – o cidadão que, sequestrado pelo vídeo-ver e com a capacidade crítica diminuída, acredita em toda a narrativa que lhe é (tele)-visionada (tal como foi profetizado por Giovanni Sartori). Porque, caro leitor, entrámos definitivamente na era do capitalismo da vigilância e na disputa por um futuro humano, tal como explica Shoshana Zuboff.
Por isso, nesta era de vigilância faz-se uma nova revisão histórica para controlar os limites da discussão pública. Um exemplo disso são os «autos-de-fé» a que temos assistido ao longo dos últimos anos, de estátuas e de livros. Com certeza estará lembrado dos eventos que começaram nos Estados Unidos da América a partir do momento Floyd. E certamente que partilhamos, o caro leitor e eu, uma memória visual daqueles momentos de justicialismo social iniciados na rua ao longo do verão de 2019, mas que rapidamente saltaram para o mundo das elites universitárias e para o mundo das corporações. E assim, à escala planetária, vi cancelarem Winston Churchill, William Shakespeare ou Luís Vaz de Camões. A acreditarmos no poder da «tel-a-vison» e nos resultados globais conquistados, a narrativa de cancelamento terá sido, sem margem para dúvida, uma das melhores estratégias de guerra híbrida montada em curso. Por isso, de repente e como que por magia, o Central Business District (CBD) de Chicago ligava-se ao CBD de Seattle e ao de Oxford (já agora, acredita em magia?).
Ou seja, uma nova era justicialista revisionista ter-se-á iniciado e é hoje o prenúncio de um «novo amanhã que canta» (estando a ser otimista). Ao longo dos próximos fins de semana tentaremos ir contextualizando o vasto emaranhado de factos e de contra-factos, os pressupostos e as estratégias delineados nos bastidores de uma guerra híbrida total e global. E esperamos que cada contextualização será uma oportunidade para ir construindo um caminho sólido e rigoroso, para ir ao passado, antever o futuro e, tal como Hansel e Gretel, regressar à sua casa que é o presente.
Leu bem …. Leu Harari, Chomsky, Sartori, Zuboff … mas ainda não falei de Ash, Milgram e Zimbardo. Fica para os próximos artigos. Em cada um procuro dar um acesso a um conjunto de ferramentas e de factos que poderá utilizar no desenvolvimento da pesquisa e da interpretação. E, assim, ir construindo a sua narrativa e enriquecendo a construção do seu puzzle de vida. O espírito científico é assim, tudo começa pela curiosidade. O espírito científico é a nossa bússola. É certo que os factos também podem ser construídos e, por isso, a nossa vocação de fact-checking sobre tudo o que publicamos. Porque a ciência faz-se em discussão, mais ao estilo de Thomas Kuhn e menos ao estilo de Bossuet ou de Menguele. Até á próxima, espero. Quem não sabe história está condenada a repeti-la.
Mónica Rodrigues
Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).