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O Édito Google, a colonização 4.0 e o Neocolonialismo da Vigilância

Quem não sabe história está condenado a repeti-la. Se estiver convencido que é o mestre do seu universo particular … desengane-se, tire daí o cavalinho da chuva! Se, conforme a ideologia onusiana, considerarmos que a descolonização portuguesa encerrou um capítulo de cinco séculos de colonização, os acontecimentos das primeiras duas décadas do século XXI têm sido palco de um Processo Revolucionário Em Curso e o início de uma nova era colonial. E assistimos, ano após ano, ao «ocaso» do Estado soberano e à sua paulatina substituição por forças transnacionais que foram ganhando preponderância nas decisões políticas relativas a problemas nacionais e globais, tais como, organizações regionais, multinacionais e a ONU. Só que este desenho de engenharia social e de inspiração fabiana onusiana, apoiada em gigantescas parcerias público-privada (conforme os sistemas políticos soberanos), e plasmada na sociedade do conhecimento global e em rede – uma espécie de «colmeia» de mentes em rede -, tem o seu reverso na quarta geração de colonialismo – a colonização 4.0.

Ou seja, a Revolução Industrial 4.0 em curso é um eufemismo para exprimir a colonização 4.0 porque é apenas a suavização de um projeto tecnocrático que visa transformar o Homem num ser reduzido à sua dimensão de consumidor, obsoleto e substituível. Por agora ficamos por aqui, é melhor, para ir digerindo aos poucos a nova distopia em construção. Em suma, ao fim ao cabo, estou apenas a renomear, muito sucintamente, o chamado «Grande Reset» que, certamente, já entrou no seu léxico quotidiano.

Como foi possível chegar aqui, hoje, dia 30 de abril? Em traços muito largos, apresentamos quatro ideias chave sobre o último século para, depois, ficar a conhecer o Édito Google. Em primeiro lugar, e a meu ver, este desenho de engenharia social tem uma escatologia subjacente e segundo a qual o homem é apenas considerado na dimensão económica. Quer isto dizer que servimos enquanto consumidores. Quanto vale? Bom, aí…. a resposta depende do valor acrescentado que imprime ao que produz. Ah! Já não produz! Pois, aí só tem uma saída, reaprender. Mas, o mais provável é que, com o processo de «obsoletização humana acelerada» em curso, pese embora nos tentem convencer do contrário, lamento imenso, mas já está a ser substituído e, mais grave, não tinha dado conta. Não há problema, pensa, porque vem aí o RBU (rendimento básico universal). Vai conseguir sustentar a família. Ops, mas parece que não, não vai ser preciso, porque tudo será um mero serviço: carro, casa, livros, roupa …. de acordo com o oráculo de Davos. O leitor partilha desta visão? Pois é por aqui que deve começar a procurar. Porque existem outras escatologias para os quais o homem é um ser único e irrepetível, livre à nascença e pluridimensional, extravasando a sua dimensão enquanto consumidor. Procure bem e reflita sobre o choque civilizacional entre mundos com escatologias tão diversas…

Em segundo lugar, e a meu ver, este «Grande Reset» foi possível devido a enormes concentrações de massa monetária rentabilizadas por algumas entidades e ao longo de séculos e séculos. A tecnologia acelerou aquele processo de concentração. Pois, não é recente. Não sabe por onde começar a estudar história? Boa pergunta … vá diretamente para a Babilónia. Talvez lá possa encontrar o fio desta meada. Já ouviu falar de grupos como a BlackRock ou a Vanguard, e o conglomerado de empresas que possuem? É simples, na internet tem tudo.

Em terceiro lugar, foi possível chegar aqui porque foi sendo concebido um projeto de governo global mundial a partir de uma rede institucional de natureza político-estratégica, económico-financeira e socio-cultural para intervir à escala global. Sim, já deve estar a pensar, é a tal Nova Ordem Mundial. Está perdido, pensa. É fácil. Comece a estudar o fim do século XIX, Cecil Rhodes e Nova Iorque, e talvez encontre outras pontas de outros novelos difíceis de desenrolar. Leve um gato, talvez fique mais fácil.

Em quarto lugar, aqui chegámos, porque elites globais foram preparadas à medida que se ia regulamentando áreas de atividade globais. E, assim, primeiro regulamentou-se os setores económico e financeiro internacionais (em Bretton Woods), depois foi a vez do setor ambiental (Conferência do Rio, 1992), a seguir o setor da saúde (década de 2000) e, mais perto de nós, agora, o setor da energia (pegada de Carbono, etc etc).

Estas novas elites globais – económico-financeiras, ambientalistas, saudáveis, energéticas – foram preenchendo as quotas nacionais em organismos internacionais, do mesmo modo que iam dominando as agendas eleitorais nacionais. Foi assim que se passou. É assim que se passa. E a cada setor, e a cada política pública, passou a corresponder uma agenda global e, em concomitância, um regulamento global. Dito de outro modo, uma declaração global.

Inconsciente deste processo ao longo de um século, e de declaração em declaração, várias gerações de estrategas do «Grande Reset» decidiram tentar a sua sorte e transformar a experiência humana em matéria-prima. O que quer isto dizer, poderá estar a pensar! Bem, traduzido em miúdos, isto quer dizer o seguinte. Quando submetidos a estímulos, os seres humanos produzem pensamentos, atitudes e comportamentos. Por sua vez, se estes (ou seja, a experiência humana) forem transformados em matéria-prima, coletável e grátis, nem imagina o mercado exponencial que esta nova matéria-prima significa para novos negócios. Mas como conseguir tamanho feito? Como pedir autorização aos seres humanos para conseguir essa oportunidade de negócio? Ora bem, aí é que reside o busílis da questão.

Uma Nova Era de Declarações – a preparar a colonização 4.0

Como vimos já num artigo anterior, todo o ato de conquista implica uma declaração legitimadora. Isabel a Católica só pôde legitimar a conquista espanhola da América mediante um édito. Assim foi com o rei D. Manuel, Francisco I e Isabel I. Por isso, homens como Bartolomeu de las Casas foram axiais neste processo de colonização externa. Na Europa, o feudalismo cedeu protagonismo aos Estados modernos e os reis precisaram de legitimar o poder real. Por isso, homens como Bossuet foram também eles axiais na afirmação do poder real absoluto. Dito de outro modo, africanos, índios americanos, assim como franceses, portugueses, ingleses ou espanhóis, estiveram todos no mesmo barco na medida em que foram todos expropriados do direito de disporem de si próprios. E das suas propriedades, sobretudo no caso africano e americano.

Transpondo esta transformação social para a atualidade, o que importa dizer? Por acaso já ouviu falar daquela frase «Em 2030 não terás nada e serás feliz»? Bem-vindos a 2023! Com idêntico raciocínio vamos ser os novos africanos e os novos índios. Novas declarações têm sido produzidas desde o verão de 2020. E Davos declara não vamos ter propriedade porque não é sustentável. Instalado um viés da normalidade, os cidadãos não percecionam ou minimizam alertas ameaçadores. Consequentemente, subestimam a probabilidade de um desastre, quando este os pode afetar, e ainda os efeitos adversos potenciais. É o estado do novo normal em que vivemos.

A preparar a Colonização 4.0 e o Édito da Google

Neste novo normal, a matéria-prima é você.  Já está a compreender? Afinal, quem manda em si?

Consideramos a primeira experiência de colonização todas aquelas que ocorreram antes do período da expansão portuguesa e castelhana. A colonização 2.0 terá sido iniciada com Portugal e Espanha. Podemos ainda considerar outro tipo de colonização no século XIX, já diferente, que procurou o desenvolvimento de um projeto político de imperialismo. Desta vez, em pleno século XXI, o colonialismo significa, lamento informar, a colonização das mentes e do seu corpo – aquilo que considero ser a colonização 4.0. 

Poderia ir mais longe e dizer que se trata daquele tipo de capitalismo de apropriação consubstanciado na tomada de posse, sem nossa autorização, da nossa experiência humana como matéria-prima. A perplexidade instala-se e uma vez mais Shoshana Zuboff explicita o processo iniciado com a Google. E repara como Eric Schmidt (o antigo CEO da Google) pediu um voto de confiança nas declarações da Google. Veja então o que significa o «Édito Google», a nova declaração que inaugurou a colonização 4.0 e um novo processo colonialista totalitário, um projeto ideológico que visou mente e corpo, a totalidade do ser humano. E foram seis declarações que representaram as fundações deste projeto totalitário como é o capitalismo da vigilância e do pecado original de expropriação. Há que defendê-las a todo o custo, pois cada uma das declarações assenta naquela que a precede. E a autora do livro A Era do Capitalismo da Vigilância resume-as, assim:

1.«Reivindicamos a experiência humana como matéria-prima, pronta a colher e sem contrapartidas. Com base nesta reivindicação ignoraremos temas como os direitos, interesses consciência e compreensão das pessoas;

2.Com base nesta reivindicação, afirmamos ser nosso direito apropriarmo-nos da experiência pessoal para tradução em dados comportamentais;

3.O nosso direito de apropriação, com base na reivindicação das matérias-primas gratuitas, confere-nos o direito de propriedade dos dados comportamentais derivados da experiência humana;

4.Os nossos direitos de apropriação e propriedade conferem-nos o direito de saber o que os dados informam;

5.Os nossos direitos de apropriação, propriedade e saber conferem-nos o direito de decidir o uso a dar a este conhecimento;

6.Os nossos direitos de apropriação, propriedade, saber e decisão conferem-nos o direito de manter as condições que preservam o nosso direito de apropriação, propriedade, saber e decisão.».

De onde se conclui que: primeiro, toda a experiência humana é matéria prima grátis; segundo, declarado este direito de apropriação, a matéria prima é transformada em dados comportamentais; terceiro, declara-se o direito de propriedade sobre os dados comportamentais; quarto, declara-se o direito de saber o que os dados informam; quinto, declara-se o direito de decidir o uso a dar a este conhecimento gerado a partir da matéria prima original grátis; sexto, e por último, todos os direitos anteriores declaram a perpetuidade das condições definidas em cada etapa. Está a ver, agora, onde tudo isto vai dar? Com que direito e com que autorização? A sua? A minha? Termino. O terreno foi lançado para uma nova língua que visa substituir a antiga, diminui o espaço de questionamento e o número de palavras para, assim, ir diminuindo o espaço de consciência. O princípio da positividade e da amabilidade conduziu o ser humano, cada vez mais só numa sociedade sem tempo, à armadilha subtil: cedemos voluntariamente e gratuitamente os nossos dados em troca da exposição mediática, e dilui-se a fronteira entre o espaço coletivo e o espaço individual. Desnudamo-nos, sem ter consciência do viés da normalidade. No fundo, a realidade conferiu a Eric Schmidt uma vitoria declarativa baseada num colossal corpo de conhecimento e de poder a partir da plataforma tecnológica moderna como é a Google. Se ainda não leu o livro “A Era do Capitalismo da Vigilância. A disputa por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder”, está na hora. Porque, quem não sabe história está condenado a repeti-la

Mónica Rodrigues

Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).

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