«Quem não sabe história está condenado a repeti-la.». Finalmente férias! As manhãs são uma espécie de bênção luminosa e convidam-nos a desafiar os oráculos mais pessimistas da moda, responsáveis pelo alarme social à volta das mudanças climáticas. O verão foi sempre o momento áureo do ano, pelo calor feérico e pela alegria inebriante das tardes sem fim. Por mim continua a sê-lo. Há melhor coisa do que poder desafiar as ondas e sentir a areia molhada? Bate, bate, levemente…. Será cheia? Será vazia? A maré da praia? Já agora, vai uma Bola de Berlim ou umas batatas fritas? Não fui ao «Natário» nem fui ao «Careca» … todas as Bolas de Berlim na praia são inesquecíveis!
A Barbie e o manifesto «woke»
É verão. Ontem senti-me com cinco anos, percecionei-me como uma pessoa de cinco anos. Já se está a rir? Pois não devia porque me posso ofender e dizer-lhe para ter mais cuidado porque pode parecer um infanticida e odiar crianças! Bem, fiquemos por aqui. Pedi então à Mãe para me levar ao cinema! Imagine! Talvez fosse mais verdadeiro dizer o contrário e assumir que fui eu que a levei ao cinema. E não é que, quando confrontada com a pergunta, anuiu com um rasgado sorriso? Do alto dos seus noventa anos, com todo o seu esplendor, tive o privilégio de entrar no cinema como se de um ritual se tratasse e que fazia recordar a ida ao cinema em finais do século passado. A ida ao cinema era sempre um momento de festa porque incluía um famoso e requintado lanche numa famosa pastelaria lisboeta. Tudo mudou. O cinema, esse local de culto, foi-se dessacralizando, o culto ruiu, terminando com os seus crentes mais fervorosos.
Mas como me sentia com cinco anos, aproveitei esta pausa estival para ir ver o filme mais badalado na época – a Barbie. A espectativa era elevada, sobretudo porque me lembrava da boneca Cindy que me acompanhara durante o primeiro ciclo escolar (esta foi a precursora da Barbie).
Conclusão – sobrevivi a um inverno nuclear». O ambiente era escuro como breu e os «estilhaços» não se fizeram esperar…crianças a chorar e os Homo Videns a abandonar o navio, desesperados com tamanha deceção. Aliás, tudo era monstruoso, do cenário à roupa, dos comentários à doutrina «woke» (também conhecida como «cultura do cancelamento») na moda, e adequada à sociedade da pós-verdade. O dicionário dos símbolos é o meu grande conselheiro em certos momentos. Observando o cenário, o piroso é enganador. Nas cores, o rosa é a cor da sensualidade, o roxo e o escarlate denunciam a «má vida», a besta e o dragão. E os números? Bem, não sou propriamente entendida em numerologia, mas, a soma dava seis. E depois? Parece haver uma mão virada para cima, e um olho tapado! É o que dá ter um curso de História! Lá está! Quem é que disse que os pensamentos eram como as cerejas?
O filme Barbie fez-me recordar o livro «Woke» por ser uma verdadeira ode à cultura do cancelamento. Titania MacGrath é uma versão de Andrew Doyle, um comediante britânico que se aventurou no comentário político e na atividade de escrita. Titânia é uma guerreira justicialista e progressista conhecida pela visão absurda e extremada sobre tudo e, particularmente, sobre a política identitária. Em meu entender, Barbie é a nova versão woke porque se trata de uma narrativa que «sequestra» o berço cultural onde nasceu. Tudo parece estar de pernas para o ar, aparentemente sem sentido. Aparentemente! Na realidade, o filme é um produto fiel da «cultura de cancelamento», um verdadeiro estertor da liberdade de pensamento na atualidade.
O manifesto «woke» e a ascensão do Homo Videns
Mas como chegámos até aqui? Estátuas destruídas, outras decapitadas. Livros rescritos ou queimados. Escritores, professores universitários, políticos isolados e enxovalhados na praça pública …
O manifesto «woke» foi viabilizado com a substituição do Homo Sapiens Sapiens pelo Homo Videns – um novo homem detentor de um aparelho de conhecimento limitado ao mundo do sensível, na medida em que o mundo era fundamentalmente percebido através dos sentidos. Como foi isto possível? É simples. A crescente importância da televisão terá implicado uma pré-seleção de conteúdos e de imagens. Ora, «pensar-por-imagens» é mais fácil e mais pobre do que «pensar-por-palavras», uma atividade de cariz muito mais complexa. Compreender a partir dos dados recebidos através dos sentidos simplifica a realidade.
Por isso podemos dizer que o conhecimento do mundo a partir dos sentidos é redutor porque não mobiliza tanto a capacidade de abstração como, por exemplo, o conhecimento a partir da leitura ou a partir da resolução de problemas. Nas palavras de Giovanni Sartori, um mago da ciência política no século XX, «A televisão produz imagens e anula os conceitos, e este modo atrofia a nossa capacidade de abstração e, com ela, toda a nossa capacidade de entender» (Homo Videns. A sociedade teledirigida).
Ou seja, à distância de um «click» uma imagem televisionada pré-selecionada conduz o pensamento e a ação dos homens por esse mundo fora. Isto diz-lhe alguma coisa, relativamente aos últimos anos?
Concluindo, a Barbie é um capítulo da sociedade em que vivemos, a «sociedade do espetáculo» nas palavras de Guy Deborde, em 1967. Uma sociedade seduzida e controlada pela imagem, pela aparência, pela mercantilização e pela falsificação. Ora, neste sentido, Barbie não foge à maldição do espetáculo. Continua a ser o placebo empaquetado com o qual se tapam a insatisfação e a frustração, e, por isso mesmo, continua a vender um estilo de vida na versão «low cost». Um «placebo» que satisfaz a máxima – tenho de ser feliz porque tenho direito à felicidade.
Barbie não leu o Homo Videns mas … deve ter lido Saul Alinsky!
Na verdade, Sartori escreveu Homo Videns na década de noventa do século passado. Porém, Saul Alinsky é contemporâneo de Barbie. Acredito, pois, que esta ícone do cinema não terá resistido ao encanto do ativista político americano nascido em Chicago. Autor do livro «Regras para Radicais: uma cartilha programática», o ativista norte-americano inspirou políticos como Hilary Clinton e Barak Obama, assim como toda a geração de ativistas políticos na década de sessenta, inquietos com o compromisso com a «justiça social». Vários analistas vêm no seu pensamento a verdadeira inspiração radical da agenda política de Hilary e de Obama, assim como do movimento «Ocupa».
Mas, afinal de contas, por que razão desconfio que a bela Barbie se deixou seduzir por Alinsky? Não lhe perguntei, não, apesar da tentação ser enorme. Ela chegou atrasada ao cinema e saiu a correr. Mas posso imaginar várias razões.
Alinsky era esperto! Compreendeu que para se conseguir estabelecer o estado social era preciso assegurar oito regras de controlo.
Primeiro, a saúde – era preciso controlar a saúde porque, controlando a saúde também as pessoas eram controladas.
Segundo, a pobreza – era preciso aumentar a pobreza o mais possível, pois os pobres eram mais fáceis de controlar e não combateriam o poder; seria importante, pois, providenciar-lhes tudo o que necessitassem.
Terceiro, a dívida – era preciso aumentar a «dívida» até um nível insustentável (nomeadamente através de impostos).
Quarto, as armas – era preciso controlar as armas, proibindo-as, conseguindo-se assim desenvolver um Estado policial.
Quinto, o bem-estar – era necessário controlar todos os aspetos da vida do cidadão (alimentação, casa, rendimentos).
Sexto, a educação – era necessário controlar o que o cidadão podia ler e ouvir, assim como o que as crianças aprendiam nas escolas.
Sétimo, a religião – era preciso substituir a crença em Deus pela crença no governo e no Estado.
Oitavo, a luta de classes – era necessário criar divisões entre pobres e ricos, de forma a causar um maior descontentamento, assim como garantir o apoio dos pobres no aumento de impostos aos ricos.
Trocando por miúdos, Alinsky simplificou o esquema de Lenine. O objetivo mantinha-se: criar um grupo, muito importante, os «idiotas úteis», que rapidamente se convertiam a esta cartilha e apanhavam o comboio da História. E por que razão? Porque, tal como Lenine e tal como Estaline tão bem sabiam, parecia que os idiotas úteis tinham destruído todos os Estados no seio dos quais tinham conseguido capturar o poder. Ora, na perspetiva de Saul, isso já estava a acontecer nos Estados Unidos com grande rapidez (penso que já escrevi sobre John Taylor Gatto e o emburrecimento da América, não já? Sabe, é que este processo já tinha vindo a ser melhorado desde os tempos de Babilónia).
À guisa de conclusão, Barbie compreendeu como tinha de «apanhar o comboio» da justiça social e transformar-se para sobreviver na História. Por isso, tinha de ganhar um novo fôlego e alcançar todas as identidades, afirmando uma simbologia mais exuberante. Ela transformou-se numa espécie de idiota útil do sistema, recém-convertida ao justicialismo e aderindo à vaga do cancelamento, pois terá também compreendido como a sociedade onde tinha nascido ia sendo sequestrada pela voracidade dos acontecimentos.
Mas, enfim! Como dizia o poeta, «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto por mudança, Tomando sempre novas qualidades.». Dito de outro modo, a esperança é total. Nenhuma mudança é eterna. A prova é mesmo a alegria de Milan Kundera quando os tempos mudaram e a história lhe deu razão. Foi aquele momento em que os pequenos povos do centro europeu inauguraram um período fundado na liberdade, nas respetivas línguas e tradições. Naquele momento histórico ocorrido após a queda do muro de Berlim, livre das ameaças da censura e do totalitarismo. O céu é mesmo o limite … e nascemos para sermos livres! Não duvide, nunca! «Quem não sabe história está condenado a repeti-la.»