No aeroporto de Dublin, mais precisamente na fila da porta de embarque do voo para Lisboa, ouço um grupo de jovens brasileiros dizer que adoram Portugal pelo “alívio de poder falar a nossa língua”.
Como emigrante, obviamente que entendo. Também já transpirei para me expressar num idioma estrangeiro e, muitas vezes, não consegui (e pior, não compreendi o que os outros estavam a tentar dizer-me).
O meu contexto – 17 anos a viver fora – mudou, ou melhor mudou-me. Sinto-me igualmente à vontade em inglês e português; talvez seja mais fluente em inglês se o assunto for algo com que lido diariamente na Irlanda.
Por conseguinte, não experiencio qualquer alívio por poder falar a minha língua. Exceto se por “minha língua” me referir ao que chamo de ” língua livre”.
A ” língua livre” consiste em poder falar com alguém com quem se pode conversar e não apenas com quem se fala por falar. Ser capaz de conversar é, mais do que nunca, uma conquista extraordinária. Além dos aparelhos tecnológicos a vibrar em cima da mesa ou no bolso do interlocutor, nem todos estão dispostos a ouvir, nem preparados para alguém que dialoga sem rodeios e que passou bastante tempo a pensar no que está a articular. No fundo, são inseguros e sentem-se inferiores.
Uma conversa consistente só ocorre na língua livre. Sartre dizia que a nossa liberdade acaba quando começa a dos outros. O francês estava enganado: não admira, dadas as patranhas políticas de que foi defensor. A nossa liberdade, pelo contrário, só começa quando concedemos voluntariamente a liberdade ao outro, e vice-versa. Caso contrário, não há dialética e ficamos reduzidos a um pensamento único e de rebanho.
Falar em ” língua livre ” implica inevitavelmente fazer interessadas perguntas. Não no sentido de destruir o interlocutor, mas de o compreender. Ninguém domina a arte de falar sem a mestria de ouvir bem.
Acima de tudo, ouvir as opiniões de que se discorda. Conversar com o eco é, na verdade, um dos passatempos predilectos da classe intelectual (o povo é mais aberto, por incrível pareça). Não necessariamente num ato solipsista, mas com outra ovelha que vê a vida com os mesmos idênticos e obedientes olhos.
Ainda estou para encontrar a porta de embarque para o país onde a língua oficial é a língua livre.
Vitor Vicente
Escritor