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Ontem, liguei para o meu melhor amigo que vive em Paris. Vou sabendo por ele algumas novidades da França, mas, até agora, a minha pouca curiosidade pela política gaulesa levava sempre a conversa para temas que mais me interessavam. Temos os dois o mesmo gosto pela literatura e pela política, sem excluir um vago interesse romântico, que só se poderia concretizar, nas palavras dele, se eu enviuvasse, coisa que não se prevê nos tempos mais próximos. Dadas as contingências quanto ao romantismo, achei que ele seria uma boa fonte de informação sobre o tema que me propus tentar perceber. Nós, portugueses, temos aquela ideia de que em França há sempre uma greve geral ou uma revolução a acontecer nas ruas, às quais se têm junto ultimamente coisas mais graves como carros incendiados, mas, no fim, as autoridades locais acabam sempre por levar a melhor. 

O que se passa, afinal, em França?

Eu tinha de ler “Submissão” de Michel Houellebecq. Quis perceber, ainda que superficialmente, o que pensam os intelectuais franceses. Depois, percorri páginas da imprensa francesa e fiquei com a impressão de que os franceses parecem viver nos últimos anos num conflito não-declarado entre a maioria “secular/laica” e aquilo que eles designam por “comunitarismo” e que corresponde, no fundo, à minoria muçulmana. Ao mesmo tempo, alguns franceses advogam o pleno direito das comunidades muçulmanas de viverem como quiserem em França e até sugerem que, se fosse esta minoria a mandar no país, talvez houvesse menos problemas. 

Em 7 de Janeiro de 2015, quando ocorreu o atentado em Paris contra os jornalistas do Charlie Hebdo, o escritor Michel Houellebecq, assustado, adiou então a promoção do seu último romance. Ele tinha razões para isso.

“A violência atingiu limites inimagináveis. Deu-se uma ruptura entre mim e a esquerda, mas também há uma ruptura em França. A sensação é a de que o conflito é irreversível e a guerra civil inevitável. Isso tem mais a ver com meu livro do que com os atentados. Esse período dramático ainda não acabou. Eu esperava que meu livro incendiasse a França, mas, evidentemente, não da maneira que aconteceu. O mais difícil de aceitar é que, no fundo, os fatos são inexplicáveis. Há dez anos, o número de muçulmanos era o mesmo, mas falava-se pouco disso. Agora, é o único assunto na agenda.”, escrevia Houellebecq em 2015. 

“(O livro Submissão) não foi escrito exatamente para descrever o que vai acontecer, na verdade. Tem mais a ver com o que as pessoas temem que aconteça.” – estas são, também, palavras do escritor. 

A obra relata um futuro fictício em que um político, o candidato da chamada Fraternidade Muçulmana, ganha as eleições presidenciais em França. Moderado e conciliador, ele começa pouco a pouco a alterar as leis. As mudanças na sociedade, no início pouco perceptíveis, acabam por atingir tudo e todos. Um professor da Sorbonne é despedido, tal como muitos outros, e as aulas são interrompidas.  

Ideia provocatória

“O auge da felicidade humana reside na submissão mais absoluta”. Esta frase de um personagem da obra de Houellebecq deixou-me perplexa. Após séculos de jacobinismo e agnosticismo, eu nunca pensei ouvir uma tal ideia provocatória da boca de um francês.

O protagonista, um professor universitário, descreve o que observa à sua volta depois das eleições do presidente muçulmano. “A implosão brutal do sistema de oposição binária, centro-esquerda/centro-direita, que estruturava a vida política francesa desde tempos imemoriais, primeiro tinha mergulhado toda a imprensa num estado de torpor, depois, de afasia. (…) o ambiente geral continuou a ser o de uma aceitação tácita e suave. O mais espantoso era que a magia hipnótica que o presidente disseminava desde o início continuava a funcionar, e os seus projetos não esbarravam em nenhuma oposição séria (…). Essa Europa que estava no auge da civilização humana realmente suicidou-se, no espaço de algumas décadas (…), mas creio que agora, com o Islão, chegou o momento de uma acomodação, de uma aliança.”

Inesperadamente no fim, François, o professor, converte-se ao Islão para ser readmitido na Sorbonne e manter, assim, o seu trabalho.

Ataque do obscurantismo e do comunitarismo?

A previsão de Houellebecq quanto à submissão não se verificou. Hoje, em França, pelo contrário, é visível uma nova onda de rejeição do chamado “comunitarismo” muçulmano no país. Há poucas semanas, o governo francês proibiu  os estudantes muçulmanos de usarem na escola pública a sua roupa tradicional (a abaya, uma longa túnica que cobre todo o corpo das raparigas e o qamis, a versão masculina), consideradas pelo governo como tendo conotações religiosas e, por isso, contrárias à lei sobre o secularismo nas escolas.

Segundo a nova lei, da iniciativa do atual ministro da Educação Nacional, “é proibido o uso de sinais ou roupas através das quais os alunos manifestem ostensivamente uma filiação religiosa” nas escolas públicas.

“Não podemos agir como se não tivesse havido um ataque terrorista e o assassinato de Samuel Paty no nosso país”,disse Macron sobre a proibição da abaya durante uma conversa com um youtuber. Recorde-se que o professor Samuel Paty foi assassinado à porta de uma escola após ter mostrado os cartoons do profeta Maomé na sala de aula. E Eric Ciotti, presidente do Partido Republicano, afirmou, por sua vez que

“O comunitarismo é uma lepra que ameaça a República.”.

Uma cronista no jornal Le Figaro afirma que é necessário defender os valores da República contra o ataque do obscurantismo e do comunitarismo – palavras estas que são hoje muito ouvidas hoje em França. 

Mas também Marine Le Pen comentou a proibição do uso da abaya nas escolas,  “O general MacArthur disse que as batalhas perdidas podem ser resumidas em duas palavras: tarde demais. Ter sabido tarde demais, ter entendido tarde demais, ter agido tarde demais. Por isso, acho difícil ficar fascinada com a implementação de uma medida que deveria estar em vigor desde a aprovação da lei de 2004 sobre símbolos religiosos nas escolas.”. E acrescenta que “É preciso preservar o ensino de qualquer pressão comunitária.”.

Já os deputados do seu partido (RN) apoiam a lei mas afirmam que, “sem parar a imigração, é como esvaziar o mar com uma colher”, como disse o deputado Grégoire de Fournas. 

A esquerda está dividida sobre o tema. Deputados socialistas e comunistas afirmam que a esquerda precisa de ter coragem para defender a laicidade. Defender estas posições não significa ser islamofóbico, afirmam. Já o partido de esquerda França Insubmissa (que nome interessante!), de Jean-Luc Mélenchon, é contra a proibição.  Em junho passado, ele afirmou que a abaya não tem “nada a ver com religião”.

O que dizem os defensores

A abaya é, segundo os seus defensores, apenas um vestido comprido modesto com o qual as mulheres se sentem confortáveis. É uma roupa “tradicional” e não uma vestimenta “religiosa” e o governo deve reconhecer e respeitar a diversidade cultural e religiosa. 

Compreensivelmente, os países árabes insurgem-se contra a nova lei. Nos EUA, também há críticos. “A França continua a usar uma interpretação específica do secularismo para atingir e intimidar grupos religiosos, especialmente muçulmanos”, declarou a Comissão dos EUA sobre Liberdade Religiosa Internacional, um órgão consultivo do governo.

Alguns autores na imprensa francesa falam mesmo de “humilhação” e de “uma verdadeira estigmatização” dos alunos, afirmando que se trata de islamofobia. 

A jornalista Fatiha Boudjahlat do jornal Le Figaro, responde  a esta afirmação escrevendo que “Os defensores desta acusação de islamofobia estatal e sexismo querem fogo. Os últimos tumultos não saciaram a sua sede de destruição nem esgotaram as suas fantasias de uma grande noite contra a República.”.

Na imprensa francesa dos últimos meses, a voz dos que criticam a nova lei e fazem apelo à tolerância está muito presente. No entanto, a realidade e os ânimos na sociedade parecem ser diferentes dos da imprensa. Cerca de 81% dos franceses, tanto de esquerda quanto de direita – exceto os que militam nos partidos da esquerda radical – aprovam a proibição da abaya nas escolas, de acordo com uma sondagem recente.

Também segundo dados do Pew Research Center, os muçulmanos constituem 8,8% da população da França, totalizando 5,7 milhões de pessoas, mas a população muçulmana em alguns países europeus pode triplicar até 2050, mesmo que todos os atuais 28 Estados-membros da União Europeia fechem completamente as suas fronteiras aos imigrantes. 

Estes dados e uma grande percentagem de aprovação da recente proibição que, sejamos claros, visa limitar a crescente influência da comunidade muçulmana, significam que a França pode muito bem, após as novas eleições presidenciais, iniciar uma nova era – a era do fim do multiculturalismo, que será também uma era de conflitos abertos entre os dois modelos incompatíveis de sociedade.

Cristina Mestre, psicóloga e tradutora

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