O verão dos outros (vizinhos e outros ilustres desconhecidos, pois amigos podia contá-los pelos dedos de uma mão) era sinónimo de Algarve. Eu não tinha verão, tinha estio, ou seja, algo mais metafísico que a época balnear que sempre me pareceu repelente e coisa da ralé.
O tal do estio compunha de várias séries, feitas de infindáveis episódios. Muito antes do advento da Netlix, outra porcaria tão cara à arraia-miúda quanto a praia.
Noite após noite, assolava-me uma insónia que, hoje em dia, o meu português com timbre inglês chamaria insónia absolutamente insana. Recordo-me de adormecer com o barulho dos primeiros vizinhos (os que não estavam de férias em Faro e afins) a sair de casa para o trabalho. Deveriam ser seis da manhã. O que, naquele tempo, em que a minha rotina era mediterrânica e o Jocko Willink não tinha batido à porta da minha cabeça, parecia-me ceadíssimo.
Numa dessas intermináveis noites de estio, a morte aterrorizo-me dos pés à cabeça. Deveria ter uns 16 anos e a inevitabilidade da morte falou comigo com todas as letras. Com um pulo, saltei da cama e fugi até a porta do meu quarto. Não fui, mas fugi, uma vez que a ideia era esconder-me da morte noutro quarto qualquer.
Ciente de que sair porta fora não me adiantaria de nada (eu não era estúpido, apenas ansioso) fiquei no meu quarto. Senti-me sozinho. Eu, o estio e a perspetiva de morrer um dia destes, ou – tanto faz – talvez daqui a umas boas décadas.
Acabei por adormecer. Com o mesmo custo com que adormeci na maior parte das noites (ou madrugadas) desse maldito estio. Talvez com o modo com que a maior parte dos defuntos, após se digladiar com a perspetiva de lutar pela sua própria vida, se entrega ao último sono.
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Naquela época, faltava-me uma figura tutelar. Alguém que eu apenas pudesse ver se olhasse para cima. D-us não me existia. (Digo não-ME, porque percebi mais tarde que D-us existe independentemente dos ateus). A ausência da tal figura forte e dominante – outra coisa que dei conta com a idade – fez-me amigo de homens mais velhos, alguns com idade para serem meu pai ou avô. Também idolatrei músicos, imitei-lhes os hábitos, a ponto de me tatuar com a mesma pompa e circunstância.
Obviamente, nenhum destes mestres me ensinou a fintar a morte. Na verdade, um deles já não está entre nós, comprovando o meu supracitado susto de verão. Os ensinamentos incidiam, sobretudo, na vida. Tal como os que recebi posteriormente dos Rabinos.
Incidiam é um vocábulo franco, antes impactaram. Transformaram-me. Um dos amigos-mestres tornou-me uma pessoa radicalmente diferente. Novamente, não exagero. Existe um Vítor prévio a essa amizade e um pós-Vítor. É obra. Assim como se criou um calendário antes e depois de Jesus, um mundo anterior e outro posterior a Einstein, também andam por aí indivíduos que geram outros através do que eu chamaria influência íntima.
Influencia íntima reaviva-me a definição de Platão de amizade, por quem na época eu tinha desdém, sentimento que, por extensão, nutria por Sócrates. Jesus também levou por tabela. Não pelo Judaísmo que me chegou a meio dos vinte anos, mas por Nietzsche e o progressismo que, na altura, eu proclamava como libertador e que se revelou, como bem sabemos na era da internet, uma ideologia implacavelmente intolerante.
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Graças às tais figuras tutelares, consegui desfazer-me dalguns dos fantasmas da infância e viver a vida. Ou alguma da vida. Pensa-se erradamente que viver a vida significa viver no momento, materializada no “carpe diem”. O mote, em parte, está correto. Precisamos do presente mais do que do passado e do futuro. Tarefa, diga-se, difícil, em dias corridos e movidos a velocidade digital.
No entanto, o nosso eu presente deve estar em constante negociação com o nosso eu futuro, e aceitar um certo sacrifício em prol do que aí vem sob pena de não vir mais anda, nem sequer o dia de amanhã. Alguns hedonistas dirão que terão tudo aqui e agora. E dai, de que lhes serve a abundância mundana e momentânea, se no dia seguinte se encontram desoladamente a sós numa cama de hospital?
A vida sem sacrifício é uma falácia. Como diz Chris Williamson: “Não faças nada de que te possas arrepender no leito de morte.” Ou como diz Douglas Murray: “Conduz a tua vida de modo que te seja permitido escolher os teus arrependimentos”. Ou como diz Jordan Peterson: “Escolhe aquilo que queres sacrificar, antes que a vida escolha o que vai ser sacrificado”.
Estou ciente da desmesura de citações num único parágrafo. Foi de propósito. (Tudo é intencional quando se vive norteado por um propósito). Os três indivíduos citados fazem parte da minha tribo intelectual. Não serão ídolos como o seriam antes, mas referências. Quase camaradas.
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Perguntei a Jordan Peterson (por outras palavras, pesquisei no Youtube) se conhecia algum antídoto contra a morte. Evidentemente não, uma vez que não existe. Peterson sugeriu a leitura de “A Apologia de Sócrates”, nada mais nada menos do que o discurso do filósofo antes de beber a cicuta com que o regime o condenou por alegadamente perverter a juventude. Sócrates aparentemente estava tranquilo. Votara a vida à ventura de viver conforme a verdade, ou a chamada via ética que, pelos vistos, podia ser tão ou mais colorida do que a chamada via épica. Com a vantagem de que, na sua última hora, Sócrates se encontrava em paz de espírito e rodeado dos melhores amigos.
Viver a vida como ela é, sendo jovem, adulto e idoso quando a natureza o dita, talvez seja a preparação para a morte preconizada por Platão que o adolescente e universitário Vítor (ou adolescente-universitário, uma vez que não deixei de ser adolescente na faculdade) nunca percebeu.
Sócrates refere-se à morte como algo de que não sabe que se trata e por isso não teme, ou uma dessas noites de sono imaculado, como consequência (ou sequência) de um ótimo dia.
Não vejo outra senão a via ética para uma pessoa se escamotear às insónias prévias ao derradeiro descanso. Tem-me servido no dia a dia, incluindo nas tais noites de estio, e espero igual serventia na iminência da morte.