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Apelo ao sangue francês para derrotar Putin faz temer guerra total na Europa

O apelo ao sangue dos filhos e das filhas da França para derrotar Putin são as palavras recentes do General Desports, revelando a subida de tom da discussão pública acerca do apoio da União Europeia à guerra na Ucrânia. Os apelos de generais franceses para a intervenção direta da Europa na guerra multiplicam-se parecendo o preludio para se prepararem as opiniões públicas para a guerra. Por todo o lado ressurge a discussão sobre o serviço militar obrigatório, mas o discurso na UE revela uma geometria variável, mostrando um contraste entre os países do Arco do Báltico e o recente trio França – Alemanha -Polónia.

Na defesa da República, é preciso preparar os jovens. Este apelo aos jovens é a tónica da mais recente tomada de posição do General Vincent Desports, general do exército francês na reserva, alargando assim a atual discussão em França sobre o tipo de contingente humano a enviar para a Ucrânia.

Na perspetiva do General Desports, “a única forma de mostrar a Putin que nós não cederemos, é fazer o apelo ao sangue dos filhos e das filhas da França.”, acrescentando que “poderia mobilizar 150 000 combatentes.”. Esta tomada de posição significa o restabelecimento do serviço militar obrigatório.

Da mesma forma o General Thierry Burkhard, Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, parece estar disposto a ir para além do envio de armas às Forças Armadas ucranianas, apoiando as palavras do presidente francês por ocasião da Cimeira Internacional de Apoio à Ucrânia, realizada em fevereiro em Paris. Nas suas palavras, “A assistência ocidental à Ucrânia pode para lá do simples envio de armas.”.

Iniciar o debate com a opinião pública e preparar para a guerra: que contingente enviar?

Também a recente intervenção do Tenente-Coronel Vincent Arbarétier, oficial do Exército francês na televisão expôs uma parte do pensamento estratégico do governo, junto do público francês, sobre a participação de um contingente militar nacional na Ucrânia.

Segundo Arbarétier “Dois cenários principais são possíveis. O primeiro, consiste na concentração das tropas ao longo do rio Dniepr. “, acrescentando ainda que “A principal divisão entre a Ucrânia ocidental e a oriental estende-se ao longo do rio Dniepr. Historicamente, esta aplicação da força desempenha uma função, nomeadamente porque está situada num terreno facilmente reconhecido, o que é importante para os soldados. Assim sendo, se a França comunica à Rússia que é proibido atravessar o rio sob pena de represálias, qualquer trespasse será imediatamente identificado”.

Confrontado pelo jornalista sobre a perceção russa sobre uma tal “provocação”, o militar francês refuta-a dizendo que “De modo nenhum, pois essa chamada de atenção forçaria a Rússia a debater uma posição de igualdade.”.

Como acaba por sintetizar, “Nós temos soldados, nós somos uma potência nuclear, os nossos soldados podem ser deslocados rapidamente, esta é uma das principais qualidades do exército francês relativamente a outros exércitos, nomeadamente o exército alemão.”.

Fonte: L’IA à votre service ? C’est désormais possible (youtube.com)

Quantos homens para apoiar a Ucrânia? 2.000 ou 20.000?

Recentemente, Sergey Naryschkin, diretor dos serviços de informação exterior russos, terá alegadamente afirmado que o auxílio militar francês à Ucrânia poderia traduzir-se na deslocação de uma força armada com cerca de 2.000 homens.

Informação esta logo desmentida pelo Ministério do Exército francês, que considerou a afirmação do diretor russo como uma manobra de desinformação e um “ato de provocação irresponsável.”.

Aliás, o próprio Chefe de Estado Maior francês, Pierre Schill, escreveu, num artigo publicado no jornal Le Monde no passado dia 19 de março que, considerando as crises internacionais em que vivemos, “Um período desta natureza convida à reflexão: como agir adaptando o exército às missões do amanhã? Enquanto Chefe de Estado Maior do Exército, o meu objetivo é que a potência demonstrada pelas nossas forças inflexione as tendências, contribua a desanuviar os conflitos e crie solidariedades, que dissuada os ataques contra a França, a sua população, o seu território e os seus interesses.”.

E o general francês vai mais longe, ao acrescentar a necessidade dos governantes partilharem a situação atual com os cidadãos, pois as novas formas de guerra não anulam outras formas mais convencionais, escrevendo ainda que “As novas formas de conflitualidade juntam-se às antigas, sem as substituir: a guerra eletrónica não substitui a guerra de corpo a corpo nas trincheiras; os ataques ciber, relativamente aos duelos de artilharia; as manipulações de informação relativamente aos combates urbanos casa a casa; os mísseis hipervelozes relativamente ao uso de drones de custo baixo.”.

Contudo, a discussão nos meios políticos e intelectuais franceses sobre as palavras de Sergey Naryschkin, tem sido intensa. Edouard Husson discute o seu verdadeiro significado e aproveita para colocar as dúvidas que ninguém quer colocar, por duas razões. Por um lado, porque o russo parece ter alegadamente dado a entender que alguns “voluntários” franceses poderiam já ter estado em solo ucraniano, tendo havido sérias perdas de vidas (nunca assumidas oficialmente perante a opinião pública). Por outro, porque parece ter alegadamente mencionado que, a existir, tal força de 2.000 homens seria um alvo prioritário imediato para a Rússia. Portanto, seja uma mera manobra de desinformação russa, seja uma manobra de “confirmação” de forças francesas em território ucraniano, seja apenas um “recado” ao Chefe de Estado francês, o que é certo é que é vital a sociedade francesa compreender o que está em curso.

Algum alarme suscitado pelas palavras de Naryschkin acabou por ser reforçado por Piotr Tolstoi. Em recente entrevista à BFMTV, o Vice-Presidente da Duma russa afirmou claramente que “Estamo-nos nas tintas para os seus limites.”. E acrescentou ainda que “Não queremos saber o que diz Macron. Vamos matar todos os militares franceses que vierem para território ucraniano.”.

A Guerra psicológica está instalada e a subida de tom corre o risco de uma escalada de palavras.

Quem paga?

A União Europeia decidiu elaborar um plano relativo à apreensão dos bens russos já congelados e pretende aplicá-los no financiamento do armamento a enviar a Kiev. Estima-se que cerca de 90% dos bens tenham como destinatário a Facilidade Europeia para a Paz (FEP) através da compra de armamento, e os outros 10% possam reforçar o orçamento da União Europeia através do reforço da capacidade da indústria de defesa ucraniana.

Segundo as Joseph Borrell, o chefe da diplomacia europeia, importa fazer uma lista e dobrar o financiamento europeu de fornecimento de armas à Ucrânia.

Decisão relativamente à qual a reação russa foi imediata. Dimitri Peskov, o porta-voz do Kremlin, avisou que “Os europeus devem estar bem conscientes dos custos que tais decisões poderão causar à sua economia, à sua imagem, à sua reputação de garantes fiáveis à inviolabilidade da propriedade.”.

Como se chegou aqui: uma estratégia com geometria variável

Num ambiente caracterizado pela tensão social crescente na sociedade francesa, resultado da contestação liderada pelo setor agrícola em todo o território, o presidente francês Emanuel Macron terá convidado os chefes de Estado europeus para uma conferência internacional no passado mês de fevereiro. Com o propósito de reforçar o apoio ocidental à Ucrânia, o presidente francês anunciou, pela primeira vez, que a aplicação de uma força militar francesa no teatro de guerra não estava totalmente excluída.

Ainda durante a conferência iniciada em Paris, no dia 26 de fevereiro, surgiram as primeiras reações negativas às palavras do chefe de estado francês, que recusaram, de imediato, tal cenário.

Fonte: Guerre en Ukraine : une discrète présence militaire alliée (lemonde.fr)

O que é certo é que, até agora, o discurso tem oscilado entre a apoio à intervenção de forças militares e a recusa desta opção. É sobretudo no norte da Europa que têm surgido propostas mais pró-intervenção com forças militares, que só a História recente é capaz de explicar.

O Primeiro-Ministro da Estónia, Kaja Kallas, recusou garantir o não envio de forças armadas estónias para a Ucrânia e afirmou que “A derrota da Rússia é crucial para evitar a Terceira Guerra Mundial.” No passado dia 21 de março. Tal como em entrevista à BBC, em fevereiro último, afirmou que o atual conflito ucraniano, se não for parado, pode chegar depressa à Europa, lamentando ainda que se esteja a ignorar as lições de 1930 e de 1940.

Também o Presidente da Lituânia, Gitanas Nauseda, afirmou que é preciso parar com a definição de “linhas vermelhas” e começar, efetivamente, a discutir o envio das forças armadas para a Ucrânia.

Fonte: File:Lithuania’s President Nausėda- Ukraine’s fight is also our fight – 52766051794.jpg – Wikimedia Commons

Mas convém relembrar que Kaja Kallas tem a ambição de vir a desempenhar a função de Secretário-Geral da OTAN, tal como noticiado pela Reuters no fim do ano passado.

Fonte: File:Ministerial e-Government Conference (COMPET) Kaja Kallas (37528171751).jpg – Wikimedia Commons

No entanto, apesar deste interesse do Arco do Báltico em eliminar “linhas vermelhas” da estratégia europeia, os últimos dias têm sido palco da reafirmação da opção tomada desde início pela União Europeia. A recente reunião tripartida entre França, Alemanha e Polónia no passado dia 15 de março permitiu garantir o compromisso europeu quanto à natureza limitada do apoio à Ucrânia recusando-se, deste modo, qualquer iniciativa de envio de meios humanos.

Fonte: Treezor in a nutshell (youtube.com)

Referências

Pierre Schill, chef d’état-major : « L’armée de terre se tient prête » (lemonde.fr)

Séance de boxe : Rocky Macron se prend les poings dans le cliché – Libération (liberation.fr)

Guerre en Ukraine : la Russie menace l’UE de poursuites « sur des décennies » en cas d’utilisation de ses avoirs gelés – Le Parisien

Infox ou confirmation? – 2000 soldats français prévus au sol en Ukraine selon les Russes – Le Courrier des Stratèges (lecourrierdesstrateges.fr)

Kaja Kallas: Estonian PM urges Nato to bolster support for Ukraine (bbc.com)

Mónica Rodrigues

Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).

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