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O Povo Escolhido: Pode o antigo Testamento definir a geopolítica?

Todos os árabes são terroristas, versus todos os israelitas são sionistas. Esta é a dicotomia que a comunicação social difunde abundantemente, manipulando a seu bel-prazer a opinião pública a mando dos interesses que a financiam, gerando entre as pessoas uma crescente e violenta bipolarização, um produtivo ambiente para o crescimento das suas vendas. Como é natural, não partilho desta opinião. Conheço inúmeros árabes espetaculares, pessoas honradas e pacíficas, a quem todo este clima incomoda e entristece. Conheço igualmente muitos judeus, pessoas que fazem da sua fé uma parte da sua vida (mas não toda), amantes da Liberdade e da Compreensão, da Paz e do Entendimento entre os Povos. Tudo o resto é mise-en-scène, um miserável espetáculo que nos vão impingindo para nos insuflar violência e intransigência.

A questão israelo-palestiniana é, de há muito, o “elefante na sala” do mundo árabe. Desde a fundação do Estado de Israel, em 1948, na localização atual por pressão dos ingleses vencedores da Segunda Guerra Mundial (estavam em cima da mesa várias localizações alternativas, como Argentina, Uganda e até Angola), os israelitas têm sentido a necessidade de ampliar a área do seu País, atendendo ao elevado número de judeus que, cumprindo a tradição judaica, passaram os anos da guerra a rezar “no ano que vem, em Jerusalém”.

Baseada no Livro do Génesis, do Antigo Testamento, é algo discutível a existência de um Povo de Israel e ainda mais discutível que este seja o Povo de Deus ou o Povo Escolhido, como as novas análises da história têm vindo a explorar (Roos, 2023). No entanto, este é o principal pilar da religião judaica, na qual Jacob, filho de Isaac e neto de Abraão, casa com duas irmãs, Leah e Raquel, delas tendo 12 filhos. Jacob luta com Deus, que o batiza com um novo nome, Israel. Daqui resulta que os seus filhos passam a ser os filhos de Israel e, de cada descendência, nascem 12 famílias (tribos), que se passam a chamar tribos de Israel. Mais ainda, a assunção de que o Povo de Israel é o Povo Escolhido por Deus baseia-se no versículo 7:6-11 Deuteronómio, quinto livro do Antigo Testamento e, na fé judaica, denominado Devarim, o quinto livro da Torah, que considera proveniente de Deus a seguinte expressão: “Israel, tu és o povo escolhido do Senhor, teu Deus. Existem muitas nações na terra, mas ele escolheu apenas Israel para ser seu.” Esta noção de identidade e supremacia (McFarland & Gottfried, 2002) tem acompanhado a história do Povo Judeu ao longo do tempo. Hoje, consubstancia as teses políticas dos partidos judeus ultraortodoxos e radicais, na sua maioria anti árabes. São estes partidos, ferozmente sionistas (nacionalistas judaicos), os responsáveis pelo atual posicionamento político e geoestratégico do Estado de Israel. Mas como chegamos até aqui?

Desde a sua fundação, apesar das inúmeras guerras em que entrou para manutenção e/ou ampliação do seu heartland, o Estado de Israel teve sempre estadistas de grande estatura, ao mesmo tempo humanistas e democratas, como líderes da nação. Nomes como Golda Meir, Yitzhak Rabin, Menachem Begin ou Shimon Peres marcaram a política israelita em alguns dos seus momentos mais conturbados. No entanto, tudo começou a mudar com a chegada de Benjamin Netanyahu em 2022 ao poder (apesar de já ter tido anteriormente uma breve passagem pela liderança do Likud, entre 1993 e 1999, e durante a qual tinha sido o mais jovem primeiro-ministro israelita de sempre.

Em 2005, após a saída de Ariel Sharon, Netanyahu regressa à liderança do partido e volta a ser primeiro-ministro entre 2009 e 2021. No entanto, no final destes mandatos vê-se envolvido em diversos escândalos, nomeadamente relacionados com a compra de submarinos à empresa alemã Thyssen – Krupp, enquanto que foi alvo de duras críticas pela forma como lidou com a pandemia covid-19. Tudo isto levou à sua queda em junho de 2021. Nas eleições de 2022 Benjamin Netanyahu regressou ao cargo de primeiro-ministro, liderando um governo de coligação com pequenos partidos ultraortodoxos e de extrema-direita. Foi o culminar de uma situação já de si explosiva nos territórios palestinianos.

 O governo saído das eleições de 2022 deixou Netanyahu e o Likud nas mãos de alguns pequenos partidos, cuja influência na política interna/externa de Israel tem sido nefasta. Um deles é o Otzma Yehudit, um partido de extrema-direita ferozmente “anti árabe”, racista e ultranacionalista, defensor da supremacia judaica e que advoga a deportação de todos os “inimigos de Israel”, nomeadamente os palestinianos. O seu líder é Itamar Ben-Gvir, que ocupa a importante pasta da Segurança Nacional. Trata-se de um colono da Cisjordânia ocupada, que enfrentou acusações criminais por promover um discurso de ódio contra os árabes. Outro partido determinante é o dos Religiosos Sionistas, ou Tkuma. Também este é um partido de extrema-direita, “anti árabe”, ultranacionalista, defensor da supremacia judaica e que se opõe a quaisquer reivindicações territoriais de palestinianos e sírios, defendendo a anexação de toda a Cisjordânia. O seu líder é Bezalel Smotrich, é o atual Ministro das Finanças, mas muito ativo na Indústria de Defesa, nascido num colonato nos Montes Golan, área ocupada por Israel. Filho de um rabi ortodoxo, Smotrich teve educação religiosa e é um feroz opositor de um Estado Palestiniano. Ambos os partidos são favoráveis à política de instalação de colonatos nos territórios palestinianos, que se encontra banida e proibida por resoluções das Nações Unidas de 1979, 1980 e 2016, mas às quais Israel tem feito vista grossa ao longo do tempo.

José Alberto Pereira

PhD, Wagner Watch Project, Observatório Segurança & Defesa SEDES

Bibliografia

Diário de Notícias (2024). Ministros ameaçam desfazer coligação do Governo se Netanyahu não atacar Rafah (obtido online a 15/04/2024 em https://www.dn.pt/1394959979/ministros-ameacam-desfazer-coligacaodo-governo-se-netanyahu-nao-atacar-rafah/).

McFarland, M. & Gottfried, G. (2002). The Chosen Ones: A Mythic Analysis of the Theological and Political Self-Justification of Christian ldentity, in Journal for the Study of Religion, vol.15, nr. 1, pp. 125-145.

Pappe, I. (2024). It is dark before the dawn, but Israeli settler colonialism is at an end (obtido online a 15/04/2024 em https://www.ihrc.org.uk/it-isdark-before-the-dawn-but-israeli-settler-colonialism-is-at-an-end/)

Roos, D. (2023). Who Were the 12 Tribes of Israel and Did They Exist. (obtido online a 15/04/2024 em https://people.howstuffworks.com/12-tribesisrael.htm).

Ross, D. & Makovsky, D. (2024). Why Israel Should Declare a Unilateral Cease-Fire in Gaza, in Foreign Affairs, 01/05/2024.

Time Magazine (2024). Google Contract Shows Deal With Israel Defense Ministry (obtido online a 15/04/2024 em https://time.com/6966102/google-contract-israel-defense-ministry-gazawar/).

 United Nations (2024). Hostilities in the Gaza Strip and Israel – Flash Update #160. United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs – occupied Palestinian territory (obtido online a 15/04/2024 em https://www.ochaopt.org/content/hostilities-gaza-strip-and-israel-flashupdate-160).

United Nations Human Rights Council (2024). Human rights situation in the Occupied Palestinian Territory. Report of the United Nations High Commissioner for Human Rights. Geneva: 04/03/2024.

Vaez, A. (2024). The Middle East Could Still Explode (obtido online a 15/04/2024 em https://www.foreignaffairs.com/print/node/1131691).

Wikipedia (2024). Consulta de entradas diversas sobre: Benjamin Netanyahu, Bezalel Smotrich, International law and Israeli settlements, Itamar Ben-Gvir, Mohammad Reza Zahedi, Nevatim Airbase, Otzma Yehudit, Primeiro-Ministros de Israel, Sionismo, Yoav Gallant, Religious Zionist Party, Tkuma, 37º Governo de Israel e outras (obtidos a 15/04/2024)

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