Num editorial do jornal Público[1], o seu ex-diretor Manuel Carvalho defende a tese de que o jornalismo não pode ser neutro e que é legítimo “combater” protagonistas políticos com base na assunção de que alguns (por ele identificados) são uma ameaça à democracia e à liberdade.
Mas se a sua opinião pessoal é de respeitar, a ideia de que as suas convicções pessoais, e de todos os que estão dentro da mesma câmara de ressonância ou campo ideológico, são mais legítimas do que as restantes, ao ponto de poderem ser embrulhadas, travestidas e apresentadas como sendo “jornalismo”, é absurda.
Não só não é jornalismo, como, o que o Público tem feito, com base nessas premissas, pode mesmo ser considerado anti-jornalismo, tantas são as violações dos princípios e normas legais da profissão, entre elas, “a salvaguarda do rigor e da objetividade da informação” (lei de imprensa), “combate à censura” (código deontológico) ou “a independência perante o poder político e o poder económico” e “a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião” (Constituição da República).
Mas, se no campo formal e conceptual, a tese de Manuel Carvalho não faz qualquer sentido, a postura do Público, tal como da grande maioria dos média nacionais, representa ela mesma um ataque aos valores fundamentais que ele diz querer defender. Senão, vejamos.
A defesa dos direitos básicos
Um dos valores que diz defender são os direitos básicos, como os da habitação ou da deportação (penso que queria dizer à não deportação) de estrangeiros, tal como, segundo ele, “pretende a extrema-direita”. Afirma mesmo que “perante questões básicas de direitos, liberdades e garantias, o jornalista não é neutro nem pode ser”.
Ora, como é que alguém que se mostra um defensor tão absolutista desses direitos, sem lhes contrapor qualquer limitação, apoiou o maior ataque das últimas décadas a esses direitos básicos durante a crise da covid?
Aí, já não existiu absolutismo algum. Pelo contrário, quem defendeu os direitos básicos, como o da liberdade de circulação, foi repetidamente insultado[2], em notícias e em inúmeros artigos de opinião.
Ao ponto de o jornal Público fazer uma campanha ativa para que esses direitos fossem limitados, promovendo confinamentos[3] e outras obrigatoriedades sem qualquer fundamento científico[4].
Também a liberdade de expressão, um dos principais pilares da democracia, foi atacada sem tréguas, ao ponto de chegar a “despublicar” um artigo[5] do médico Pedro Girão.
Num editorial, agora fechado, Manuel Carvalho justificou[6] a censura pelo facto de o autor ter usado de “tom desprimoroso e supérfluo (…) em relação a personalidades da nossa vida pública” e quebrado o “relativo consenso em torno das vacinas”.
Ambos os pontos confirmam a subserviência ao poder vigente e uma visão de liberdade de expressão típica de ditaduras. O segundo ponto mostra, aliás, o poder perverso da censura, ao limitar o acesso à população de informação alternativa sobre a vacinação de crianças que, ao contrário do que foi dito, não era (já na altura) minimamente consensual.
Portanto, os direitos fundamentais são muito importantes, mas o Público é que sabe quais, quando e sob que pretextos podem ser violados. E quem discordar, é de extrema-direita, conspiracionista ou negacionista.
Primado da lei
Também o primado da lei e da constituição são usados para defender o “jornalismo de causas” e atacar os “maus políticos”. No entanto, quando os atropelos a esses direitos básicos durante a crise covid foram confirmados como inconstitucionais (mais de vinte vezes)[7], ele e os seus jornalistas não o denunciaram, não refletiram sobre o sucedido, nem criticaram os seus responsáveis e cúmplices.
A defesa da democracia
Mas talvez o argumento mais desconectado da realidade seja o de que este jornalismo doutrinário defende a democracia.
Ora, numa democracia funcional, o jornalismo: (1) investiga o poder, político e financeiro, em todas as suas áreas de ação, não amplificando a sua mensagem sob a forma de propaganda ou a criação consensos artificiais; (3) não diaboliza e insulta cidadãos, colocando-os uns contra os outros; (4) não ignora conflitos de interesse gritantes, deixando os seus leitores expostos a uma incessante propaganda; (5) não publica regularmente informações falsas[8][9], descontextualizadas e sem as fontes originais; (6) defende a liberdade de expressão e não censura opiniões discordantes.
Tal como a Républica Democrática Alemã (RDA) se chamava democrática, ou alguns dirigentes comunistas apelidam outras forças políticas de “não democráticas”, o Público arroga-se de defensor das liberdades, quando, pelo contrário, revela todos os tiques de regimes totalitários.
Tal como muita imprensa, faz apenas propaganda de ideologias e interesses, sem qualquer preocupação com o rigor informativo ou o interesse público.
Ao contrário da tese defendida, a sua extrema parcialidade não é a resposta ao facto dos direitos dos cidadãos ou da democracia estarem em perigo. Pelo contrário, é uma tentativa desesperada de defender práticas e agendas que, de facto, colocam esses direitos e essa democracia em risco.
Qualquer um, mesmo os que comungam de ideias políticas semelhantes, se tiver acesso a factos omitidos e a opiniões contraditórias, rapidamente se apercebe desse facto. E, apesar de todas as tentativas contrárias, é exatamente isso que tem acontecido por todo mundo com a maioria dos média, que estão ideológica e financeiramente capturados.
É exatamente por isso que existe esta diabolização e tentativa de censura de todos os que revelam essa realidade e colocam em causa esses interesses.
Porventura, se a liberdade de expressão prevalecer, a subsistência deste tipo de gate keepers dos interesses instalados estará em causa. Por outro lado, as democracias constitucionais, como a nossa, terão mais forças para resistir à emergência de regimes mais autoritários e mais capturados por interesses monopolistas e parasitários dos recursos públicos.
Por isso, as práticas do Público e a tese do seu diretor devem ser combatidas, não com a imposição de novas doutrinas intolerantes, mas com respeito e valorização da diversidade de perspetivas, mesmo das que discordamos, e apresentação isenta e transparente de factos, mesmo dos que contrariam as nossas convicções.
Só assim o jornalismo pode ser útil para as pessoas e muni-las contra ataques totalitários, venham eles de onde vierem.
Referências
[1] O jornalismo “enviesado” na era de Donald Trump | Opinião | PÚBLICO
[3] Covid-19: reforço do confinamento reduziu contágio em 40% numa semana | Coronavírus | PÚBLICO
[4] O futuro passa pelo confinamento | Editorial | PÚBLICO
[5] Pedro Girão – Partilho a minha nova crónica no “Público”, desta… | Facebook
[6] Nuno Machado – 𝐎 “𝐫𝐞𝐥𝐚𝐭𝐢𝐯𝐨 𝐜𝐨𝐧𝐬𝐞𝐧𝐬𝐨 𝐞𝐦 𝐭𝐨𝐫𝐧𝐨 𝐝𝐚𝐬 𝐯𝐚𝐜𝐢𝐧𝐚𝐬” 𝐝𝐨… | Facebook
[8] Máscara reduz incidência em 53% e pode voltar a ser obrigatória em Portugal | Coronavírus | PÚBLICO
[9] Notícia falsa sobre eficácia das máscaras difundida pela comunicação social – The Blind Spot
[10] Jornalistas ajudaram ao sucesso do confinamento no estado de emergência