O director da Polícia Judiciária tentou ‘calar’ a discussão sobre uma eventual ligação entre o aumento da imigração e a criminalidade, mas os dados a que se reportou contam uma história diferente daquela que pretendeu passar. Luís Neves sugeriu que, no final de 2023, dos 2.036 reclusos estrangeiros, apenas 120 seriam imigrantes. No entanto, esse número, muito difundido pela comunicação social, diz apenas respeito a reclusos oriundos de países com uma representação residual nas nossas prisões, excluindo todos os africanos, sul-americanos e europeus. O The Blind Spot, que não obteve respostas do responsável máximo da PJ, analisou estas e outras alegações e concluiu serem inverosímeis ou totalmente descontextualizadas.
Na última semana, as declarações do director da Polícia Judiciária (PJ), feitas na conferência comemorativa dos 160 anos do Diário de Notícias, sobre a percepção de insegurança ser fomentada pela “desinformação”, foram reproduzidas pela imprensa mainstream sem qualquer contraditório.
Supostamente, Luís Neves invocou dados ‘objectivos’ da Direcção-geral de Reinserção e Serviços Prisionais para desconstruir a ideia de que a criminalidade tem aumentado com a imigração. Mas, desde logo, algo não batia certo.
Apesar de ter referido que existiam reclusos de várias nacionalidades, surpreendentemente não analisou esses números e centrou-se apenas no item de “outros países”.
Fazendo fé nas suas palavras, no final de 2023 haveria apenas 120 reclusos de “outras nacionalidades” nas prisões portuguesas – representando, assim, apenas 0,98% do total (12.193).
No entanto, o número real de detidos estrangeiros é muito superior. Em Dezembro de 2023, eram 2.036 os reclusos estrangeiros, resultando numa proporção de 16,7% da população prisional.
Justificação para a desconsideração da grande maioria dos “reclusos estrangeiros”
Luís Neves distinguiu “imigrantes” de “estrangeiros que utilizam o território europeu para a prática de crimes”, através de redes internacionais, e que são detidos em Portugal; mas não indicou dados concretos que permitam fazer a “destrinça” que disse ser necessária, nem porque é que todos os reclusos de África, América do Sul e Europa eram apenas “estrangeiros” e não “imigrantes”.
“(…) nós temos que ter aqui a destrinça entre o que é que é estrangeiros que utilizam o território europeu para a prática de crimes, portanto estamos a falar de organizações criminosas transnacionais: tráfico de estupefacientes, cibercrime, muita, o haxixe, o cibercrime de uma forma ampla. É criminalidade contra o património, aquilo que é designado como uma criminalidade Itinerante, da América da América Latina, do Leste, do mais a leste, que fazem … (impercetível) e que estas acabam por ser presas aqui. Não são imigrantes!”
Fonte: DGRSP_ServicosPrisionais_2023.xlsx
Dúvidas e incongruências
Várias questões se colocam quanto a estas alegações.
Em primeiro lugar, é difícil perceber em que factos é que Luís Neves se baseou para afirmar que nenhum recluso africano, sul-americano ou europeu, é imigrante, e que são todos simplesmente “itinerantes”.
Basta pensarmos que havia 414 reclusos brasileiros e 427 cabo-verdianos. E segundo Luís Neves, não haveria nenhum imigrante destas nacionalidades, algo totalmente inverosímil dado o elevado número de residentes oriundos destes países em Portugal.
Aliás, os seus próprios argumentos são contraditórios, em vários aspectos, com os dados que apresenta. Por exemplo, o director da PJ salienta a questão das “mulas” quando analisa os números de detidos da América do Sul, e afirma que seriam normalmente mulheres:
“Depois tem a classificação por nacionais, países de África, países da América do Sul onde à cabeça está a questão, desculpem a expressão policial das mulas. As mulas são pessoas pobres que são utilizadas pelas organizações criminosas para trazer droga in corpora que nós prendemos por ano às dezenas ou até às centenas de pessoas e que cumprem, normalmente mulheres, que aqui cumprem quatro, cinco anos e regressam ao país de origem (…)”
Mas, em primeiro lugar, o número de reclusos brasileiros constitui mais de 90% dos presos deste continente, em linha com a comunidade imigrante em Portugal, tendo os países mais associados ao tráfico de droga representações muito reduzidas.
Em segundo lugar, também a afirmação de que são geralmente mulheres que servem de “mulas” é desmentida pelos dados, já que o seu número é minoritário entre os brasileiros (37%) e residual nas restantes nacionalidades. Entre os colombianos detidos (14), existem apenas duas mulheres; entre os venezuelanos (12), não existe nenhuma; e nos outros reclusos desse continente (17), também apenas duas são mulheres.
Fonte: DGRSP_ServicosPrisionais_2023.xlsx
Estudos sugerem aumento de reclusos estrangeiros
Outra das questões salientadas por Luís Neves foi a evolução da proporção dos reclusos estrangeiros, que estaria a baixar. Apesar desse indicador ter algumas limitações (desde logo, a política de atribuição de nacionalidades), também essa alegação parece ser questionável.
Dois estudos citados pelo Correio da Manhã concluíram que a proporção de estrangeiros nas prisões portuguesas tem vindo a aumentar. No instituto superior da PSP, um oficial da Polícia verificou que em 2021, os estrangeiros representavam 14,3% da população prisional, tendo aumentado para 16,7% no final de 2023.
Além disso, segundo a análise de um oficial da GNR, na faixa etária dos suspeitos que “maioritariamente cometem os crimes graves e violentos” – dos 16 aos 29 – um terço dos detidos é de nacionalidade estrangeira.
Omissão de dados que revelam aumento de criminalidade
De acordo com o último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), referente ao ano de 2023, a criminalidade geral aumentou 8,2% e a violenta e grave subiu 5,6%, tendo-se registado mais 741 casos do que no ano anterior. Mas sobre estes dados, o director da PJ não teceu nenhuma consideração.
Declarações do primeiro-ministro
Também o primeiro-ministro Luís Montenegro já veio reconhecer (1) a queda de Portugal no ranking que mede a segurança dos vários países (embora ainda mantenha o país entre os mais seguros a nível mundial); (2) a subida da criminalidade geral e criminalidade grave e violenta em 2023 e (3) a continuação do aumento de vários tipos de criminalidade, nomeadamente ligados à imigração, em 2024 (segundo dados preliminares).
Iniciativa Liberal chama Luís Neves ao Parlamento
Na rede social X, no início desta semana, o presidente da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, acusou Luís Neves de ter usado “dados truncados de criminalidade para lançar confusão”.
Nesse sentido, anunciou que chamaria o director da PJ ao Parlamento para “prestar esclarecimentos”. A IL também apresentou um projecto de resolução para que no RASI constem a nacionalidade e o género dos criminosos e das vítimas.
Na quarta-feira, o Chega foi mais longe e pediu que o documento inclua também a naturalidade, a etnia e o tempo de permanência em território nacional, de quem seja suspeito ou condenado por crimes, além das vítimas.
Questões The Blind Spot
De facto, várias perguntas ficaram sem resposta depois da ‘tomada de posição’ de Luís Neves sobre a evolução da criminalidade em Portugal. O The Blind Spot questionou o director da Polícia Judiciária sobre as suas declarações; nomeadamente, qual o número real de reclusos estrangeiros, ou como as “questões do tempo e as questões climáticas” podem contribuir para criar “uma determinada ideia de insegurança nas pessoas”.
Também pedimos que comentasse os dados do RASI que atestam a um aumento da criminalidade, e perguntámos ainda se a aquisição da nacionalidade portuguesa por imigrantes pode diminuir o número de reclusos identificados como estrangeiros.
Até agora, não obteve qualquer resposta.
Nota: O artigo tem a coautoria da jornalista Maria Peixoto e do diretor do The Blind Spot, Nuno Machado.
Fontes
2025 01 15 | Debate quinzenal com o Primeiro Ministro
DGRSP_ServicosPrisionais_2023.xlsx (por sexos e nacionalidades)
DGRSP_ServicosPrisionais_2023.xlsx (por sexos e penas)
IL quer que RASI divulgue nacionalidade e género de criminosos e vítimas | Crime | PÚBLICO