Liberdade de expressão em risco na Europa? Detenções por “discurso de ódio” disparam no Reino Unido e na Alemanha

Na Alemanha e no Reino Unido, o policiamento do “discurso de ódio” está a aumentar e uma publicação ofensiva nas redes sociais pode pôr o “infractor” em maus lençóis com a Justiça, podendo até ser condenado a uma pena de prisão efectiva. Por ano, o Reino Unido está a levar a cabo cerca de 12 mil detenções – mais 58% do que em 2019. Na Alemanha, nem mesmo os ‘memes’ escapam às autoridades, e há equipas formadas para vigiar aquilo que se diz na internet. Algumas associações da sociedade civil temem retrocessos no direito à liberdade de expressão, até pela natureza dúbia daquilo que representa “discurso de ódio” e o modo abrangente como tem sido interpretado.

Na Alemanha e no Reino Unido, uma publicação “ofensiva” nas redes sociais, mesmo se feita no ‘calor do momento’, pode deixar o “infractor” em maus lençóis com a Justiça, arriscando uma condenação ao pagamento de milhares de euros, ou até a uma pena de prisão (efectiva ou suspensa).  

Através de várias forças policiais, as autoridades britânicas estão a fazer cerca de 12 mil detenções por ano, com base em conteúdos divulgados nas redes sociais e em outras plataformas digitais – o que dá uma média de mais de 30 por dia –, de acordo com dados avançados no início do mês pelo jornal Metro. 

Em 2023, foram feitas 12.183 detenções; o que representa um aumento de 58% em relação a 2019. Três anos antes, em 2016, ‘só’ cerca de 3.000 pessoas tinham sido detidas e interrogadas devido a “incidentes de ódio” por conteúdos publicados na internet.  

No entanto, em sentido inverso, as condenações têm vindo a diminuir desde 2015. Em 2023, foram conhecidas 1.119 sentenças decorrentes destes processos; um número bastante inferior ao que se registou para as detenções.

De facto, para que alguém arrisque ser alvo de um processo criminal no país não é preciso muito: a Lei de Comunicações Maliciosas de 1988 criminaliza as mensagens enviadas com a intenção de causar “irritação”, “angústia” ou “ansiedade” a terceiros por via telefónica ou através de plataformas digitais. No Reino Unido, é ilegal o envio de mensagens “grosseiramente ofensivas” ou com conteúdos de “carácter indecente, obsceno ou ameaçador”, segundo a Lei de Comunicações de 2003

Estes critérios revelam-se, porém, nebulosos, e algumas associações da sociedade civil, como a Big Brother Watch e a Free Speech Union, criticam aquilo que consideram um policiamento excessivo do discurso e a ameaça que estas acusações representam para o direito à liberdade de expressão. 

Além disso, uma vez que a propagação de discurso de ódio configura um “crime de ódio”, pode ser mesmo punível com prisão. O Governo britânico, contudo, não divulga os dados referentes aos “crimes” que têm lugar no ciberespaço, tornando públicos apenas as estatísticas globais dos “crimes de ódio”. 

O caso ‘chocante’ de Lucy Connolly 

Há poucos dias, o jornal britânico Telegraph contava a história de Lucy Connolly, uma mulher que foi condenada a dois anos e meio de prisão (31 meses) por um ‘tweet’ enraivecido que fez no Verão passado, na rede social X, onde tinha 10 mil seguidores. 

Indignada com o assassínio de três raparigas brancas por um jovem de ascendência ruandesa em Southport, no dia 29 de Julho – que causaria, inclusivamente, uma onda de protestos violentos por todo o país –, Connolly escrevera na sua página: “Deportações em massa agora, incendiar todos os hotéis cheios de b——–ds, quanto a mim, e já agora, levem o governo traidor e os seus políticos com eles. Sinto-me fisicamente doente sabendo o que estas famílias terão agora de suportar. Se isso me torna racista, que assim seja.”  

O ‘tweet’ esteve disponível durante apenas quatro horas, uma vez que Lucy Connolly se arrependeu depressa e decidiu depois eliminá-lo, mas já era tarde demais. No dia seguinte, tinha a polícia à porta, e o processo judicial que se seguiu acabou mesmo por resultar na sua condenação. Lucy não tinha antecedentes criminais, é mãe de um rapaz de 12 anos, e era ainda cuidadora do marido, que padece de uma doença rara. 

Embora o desfecho tenha chocado muitos britânicos, o certo é que processos judiciais como aquele de que foi alvo Lucy Connolly já são cada vez mais comuns. Aliás, na sequência do massacre de Southport, os motins que se alastraram em Agosto do ano como forma de protesto resultaram na detenção de mais de 1.500 pessoas, das quais 575 foram acusadas. 

O que é considerado crime de ódio? 

Segundo a legislação do Reino Unido, há cinco tipos de crimes de ódio, consoante as características visadas pelo agressor: a raça, religião, deficiência, orientação sexual e identidade transgénero. No site do Serviço de Acusação da Coroa (CPS), que pertence ao Ministério Público britânico, esclarece-se ainda que este crime poderá ser imputado a qualquer pessoa que tenha demonstrado “hostilidade” ou sido “motivada por hostilidade” com base naquelas cinco características.  

Mas, para a lei britânica, o que é que, em concreto, pode caber na definição de “hostilidade”? Os próprios serviços jurídicos do CPS, responsáveis por decidir que processos seguem para tribunal, assumem que o termo pode ter uma enorme abrangência. “Não há uma definição legal para hostilidade, por isso usamos o sentido quotidiano da palavra, que inclui má vontade, despeito, desprezo, preconceito, antagonismo, ressentimento e antipatia”, informam no seu site. 

O policiamento do discurso na Alemanha não exclui ‘memes’ 

Em Fevereiro passado, um episódio do conhecido programa “60 minutos” levantava o véu sobre a forma como o discurso de ódio é hoje policiado na Alemanha. Alguns dias antes, as forças policiais tinham conduzido, por todo o país, dezenas de rusgas nas residências de pessoas suspeitas de divulgar discurso de ódio online. 

Na peça, três procuradores da Baixa Saxónia (no norte da Alemanha), que anualmente têm em mãos 3.500 casos criminais referentes a mensagens na internet, ocorridos só naquela região, explicavam que o discurso considerado “insultuoso” ou que incitasse ao ódio não estava consagrado na constituição alemã. Portanto, não era permitido no âmbito da liberdade de expressão. 

Deste modo, trata-se de um crime e os infractores sujeitam-se a uma multa na ordem de vários milhares de euros, confisco dos seus dispositivos electrónicos, ou até a pena de prisão; esta última, contudo, é mais rara, aplicando-se sobretudo a ‘reincidentes’. E até mesmo aqueles que apenas ‘republicam’ um insulto feito por outra pessoa podem ser acusados criminalmente. 

E há todo um sistema montado para vigiar, combater, e punir estes “crimes”. Actualmente, existem no país 16 unidades que investigam o discurso de ódio nas plataformas digitais. Por vezes, quando os perfis são de utilizadores anónimos, as autoridades podem até recorrer a um software especial de modo a conseguir apurar a sua identidade.    

Só no primeiro mês deste ano, foram registados pelo Ministério Público de Berlim 4.003 casos de crimes de ódio na internet; representando mais de metade do total destes crimes, de acordo com a Euronews. Por outro lado, no ano de 2023, segundo a Polícia Criminal Federal, registaram-se 17.007 casos em todo o território nacional – mais 50% do que no ano anterior. 

Tal como no Reino Unido, na Alemanha há uma grande amplitude de conteúdos que podem configurar um crime de discurso de ódio: insultos, boatos maliciosos, ameaças violentas, citações falsas, e até ‘memes’.  

Neste mês, num caso sem precedentes, o jornalista David Bendels, editor da publicação Deutschland-Kurier, foi condenado em primeira instância a dois anos de pena suspensa por “difamar um político”. Na origem do processo esteve um ‘meme’ publicado por Bendels que visava a Ministra do Interior alemã, Nancy Faeser. Na publicação em causa, feita com montagem, a ministra segurava um cartaz onde se lia “Eu odeio a liberdade de expressão”. 

O “discurso de ódio” em Portugal 

Em Portugal, as condenações por mensagens ou conteúdos ofensivos divulgados nas redes sociais ainda não são comuns, mas, em Maio do ano passado, já foi aberto um precedente com a condenação do nacionalista Mário Machado, líder do grupo 1143. Por causa de uma publicação no X que visava Renata Cambra, ex-dirigente do partido Movimento Alternativa Socialista (MAS), foi condenado a dois anos e 10 meses de prisão efectiva pelo crime de incitamento ao ódio e à violência contra mulheres de esquerda. 

No final de 2024, foi também lançada uma petição pelo Grupo de Acção Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia para alterar o Código Penal e criminalizar “todas as práticas discriminatórias racistas, xenófobas, homofóbicas, machistas, transfóbicas, e outras”. Até agora, porém, conta apenas com 3.323 assinaturas. O grupo, composto por mais de 80 colectivos, diz querer travar, entre outras coisas, o discurso contra a imigração. 

Fontes 

Hate crime | The Crown Prosecution Service 

Germans can’t insult politicians, which is why we need to protect free speech in the US 

Germany is prosecuting online trolls. Here’s how the country is fighting hate speech on the internet. – CBS News