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Se há coisa com que lidamos mal, é com a incerteza. Por esse motivo, o nosso cérebro arranja múltiplas formas de simplificar a (crescente) complexidade a que estamos expostos.

Sem esses mecanismos, andaríamos consumidos por dúvidas e medos sem fim, seríamos incapazes de nos centrar nas tarefas essenciais para nós próprios ou para a comunidade.

Como é evidente, esta realidade também tem riscos e consequências negativas, desde a excessiva confiança dos ignorantes (e todos o somos em relação à maioria dos assuntos), até a fenómenos mais complexos como o tribalismo. Ficamos muito expostos ao radicalismo ou à manipulação individual e coletiva. Sempre assim foi e continuará a ser.

Os pilares das democracias liberais

Certas sociedades, nomeadamente as democracias ocidentais, conseguiram mitigar alguns dos efeitos mais negativos atrás descritos. Nasceram sociedades mais prósperas, com menor violência, mais tolerantes e com menos discriminações injustificadas (sexo, raça, orientação sexual).

Tal não aconteceu por acaso. Entre outros fatores, foram essenciais para essa evolução: (1) a criação de vários mecanismos de “check-and-balances”; (2) a evolução do método científico tornando-o mais fiável; (3) o direito à liberdade de expressão.

Embora pareçam fenómenos algo desligados, estas três realidades têm algo em comum: o reconhecimento das fragilidades humanas e a necessidade de arranjar estratégias para as minimizar.

O “check-and-balances” é um sistema com entidades independentes que asseguram maior controlo e equilíbrio entre vários poderes. Os três pilares deste conceito são: o poder Legislativo (criação de leis), o poder Executivo (governação) e o poder judicial (justiça). O princípio essencial é serem poderes autónomos (e que devem ser exercidos por diferentes agentes).

Podemos considerar a imprensa como o quarto poder. Isto acontece se esta tiver independência para informar de forma objetiva e escrutinar os restantes poderes.

Também a evolução do método científico foi essencial. Permitiu assegurar que a evidência que usamos para tomarmos decisões críticas, foi obtida depois de um rigoroso processo pré-definido e com uma menor interferência de ideias prévias dos investigadores ou de interesses particulares.

Por fim, a liberdade de expressão (e o “mercado de ideias” que estimula) permite mais facilmente desmontar “más ideias” e encontrar soluções mais sólidas e fundamentadas.

Claro que, mesmo quando estes (e outros) princípios foram razoavelmente implementados, as sociedades não se não tornaram perfeitas. Longe disso, existiram sempre muitos problemas e injustiças.

Mas por mais longe que estivéssemos desse mundo perfeito (e utópico), nunca nos tínhamos aproximado tanto. As diferenças, quer para o passado quer para outras sociedades contemporâneas, são abissais.

O retrocesso

Em Portugal, como noutros países ocidentais, temos assistido ao desmoronar progressivo desses pilares.

Criou-se uma espécie de unanimismo tácito entre vários poderes sobre áreas em que os interesses em jogo extravasam em muito o interesse público e em que existem, muitas vezes, ocultação de informação e falta de escrutínio. As políticas energéticas ou a resposta à pandemia são dois exemplos.

O jornalismo

O jornalismo, salvo honrosas exceções, eclipsou-se. Sobre muitos assuntos, deixou de escrutinar para passar a ser o porta-voz da narrativa oficial (nacional e internacional) e uma das suas principais fontes de propaganda.

A justiça

O único pilar, que ainda revela alguma independência, é o poder judicial. Mas também este tem sido sujeito a crescentes pressões e interferências externas. Em Portugal, as iniciativas de alteração da constituição já sugeridas, para que cirurgicamente se possam contornar decisões judiciais incómodas e agilizar novas medidas (como os confinamentos coercivos), ou alterações no processo de nomeação de órgãos judiciais, podem fazer perigar também essa autonomia.

A ciência

No meio científico, há várias décadas que se vivia uma luta pela sua independência de interesses comerciais, de modo a assegurar investigações rigorosas e não manipuladas.

A pandemia foi uma enorme derrota para os que, nesse meio, lutaram (e lutam) para essa independência e para a criação de mecanismos que minimizem a promiscuidade com o poder político e económico.

Estudos de baixo nível de evidência e opiniões pessoais foram usados como prova e outros de nível elevado foram ignorados, simplesmente por desmentirem as narrativas criadas.

Em muitos países, instituições científicas têm-se deixado progressivamente contaminar por interesses político-ideológicos ou agendas comerciais (de entidades que muitas vezes as financiam). Institutos públicos, universidades, agências de saúde e, até, alguns reguladores dão sinais de falta de independência e de rigor científico muito preocupantes.

A liberdade de expressão

E, se tudo isto falhasse, teríamos sempre a liberdade de expressão para minimizar os danos. Seria sempre possível denunciar fraudes, revelar conflitos de interesse, mostrar evidências contraditórias, denunciar a ocultação de dados, apresentar visões alternativas (certas ou erradas).

Seria sempre possível o debate, a troca de opiniões, o esgrimir de argumentos, a rejeição de “más ideias”, a apresentação de vantagens/efeitos colaterais de cada medida, a criação de consensos sobre uns assuntos ou a identificação de caminhos alternativos noutros.

Mas se houve um princípio particularmente atacado tem sido esse. Especialmente com a pandemia, muitas vezes com o argumento da defesa da saúde pública, censurou-se não apenas informações factualmente falsas, mas especialmente outras só porque contrariavam as versões oficiais.

Cientistas de topo foram censurados e perseguidos, enquanto outros sem qualquer tipo de currículo relevante ou com conflitos de interesse gritantes, foram considerados a “voz da ciência”.

A limitação deste direito foi promovida por governos, comunicação social, plataformas digitais, motores de busca, revistas científicas, (supostos) fact checkers, entre outros.

Ao mesmo tempo que “gritavam” contra os perigos da desinformação para justificar medidas censórias, eles próprios forneciam dados errados ou descontextualizados, que criaram uma enorme distorção na perceção da população.

Mesmo os que comprovadamente mentiram sobre questões cruciais e de interesse público, não só não foram rejeitados como continuaram a ser promovidos por governos, comunicação social e, até fact checkers, como as fontes de informação credível ou mesmo da “verdade”.

Rotulagem, insulto e auto-censura

Mais perigoso ainda é que as próprias populações, inundadas por informações enganadoras e sistematicamente enviesadas, criam uma perceção (ainda mais) simplista da realidade. Novos perigos são amplificados, enquanto outros são simplesmente ignorados. São criados heróis e vilões. Entre os principais inimigos a abater são os que contrariam a narrativa dominante, que todos os dias nos é “vendida”.

Muitos (felizmente não todos) adquiriram o hábito (por vezes instigado pela própria comunicação social) de catalogar imediatamente quem contraria as suas “certezas absolutas”, mesmo que o faça com ideias fundamentadas ou, até mesmo, apenas com factos.

«Negacionista», «libertário», «fascista», «chalupa» e, mais recentemente, «pró Putin» ou «comunista» são apenas alguns dos rótulos colocados a quem ousa pôr em causa uma qualquer parte da “versão autorizada” dos factos.

Estas reações estão a substituir o respeito pela opinião dos outros e o livre debate de ideias. Levam igualmente à autocensura generalizada perante o risco do insulto e de (reais) perdas de reputação. Tal fenómeno protege as “falsas verdades” do contraditório e conduz a que cada vez mais pessoas passem a ver a realidade a “preto e branco”.

O futuro

Eventos recentes, como a guerra na Ucrânia, levam-nos a perceber, não só que estas tendências se mantêm, mas que tendem a acentuar-se.

O unanimismo em diferentes órgãos de poder, a falta de independência jornalística e a supressão da liberdade de expressão concorrem para uma sociedade diferente- mais autoritária, controladora, com pouco respeito por direitos básicos, que estigmatiza a diversidade de opiniões e que se sustenta numa ininterrupta propaganda.

Podemos olhar para trás, para a história, ou para o lado, para outros países. Não é nada que não tenhamos visto no passado ou que não exista no presente.

Será esse modelo de sociedade que queremos para nós e para os nossos filhos?

Independentemente da resposta, se não lutarmos por um caminho diferente, será esse o nosso destino.

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