Os números reduzidos de infeções, hospitalizações e mortes por Covid-19 na África Ocidental e Central tem sido um tema de debate que tem dividido cientistas no continente e fora dele. Terá simplesmente faltado contar doentes e falecidos? Se a Covid-19 fez, de facto, menos danos em África, porque será? Se, por outro lado, tem sido muito impiedosa, como é que passou despercebida?
A 15 de março de 2020, a revista Science publicou um artigo onde indicava a preocupação dos cientistas com a disseminação do coronavírus em África, chamando-lhe uma “bomba-relógio”.
Passado cerca de um mês, Melinda Gates disse, numa entrevista à CNN, que “a pandemia do coronavírus terá um impacto enorme no mundo em vias de desenvolvimento”. A filantropa norte-americana, responsável pela Fundação Bill e Melinda Gates, previa “corpos nas ruas dos países africanos”.
Passados dois anos, os dados indicam que os países africanos, com sistemas de saúde muito menos eficientes do que os dos países europeus e da América do Norte, têm mortes e casos em números muito inferiores.
Vejamos, como exemplo, a França e a Serra Leoa. Desde o início da pandemia, em 2020, e até 23 de março de 2022, o país europeu, com cerca de 65 milhões de habitantes, registou mais de 141 mil mortes associadas à Covid-19, de acordo com a Statista. Em 2018, as estatísticas do Banco Mundial indicavam que existiam 6,5 médicos por 10 mil habitantes em França.
A Serra Leoa tem cerca de oito milhões de habitantes e uma alta prevalência de casos de malária, HIV, tuberculose e má nutrição – os ingredientes para um desastre. O país, localizado na costa oeste do continente africano, regista um número quatro vezes inferior de médicos e enfermeiros – em 2019 eram 1,9 por 10 mil habitantes. Quanto a mortes relacionadas com o coronavírus, estão registadas apenas 125, representando apenas 1% quando comparados com os indicadores franceses, de acordo com a Reuters.
Conforme relata o artigo do The New York Times, de março de 2022, o centro de acompanhamento da Covid-19 da região de Kamakwie, na Serra Leoa, registou apenas 11 casos desde o início da pandemia e as enfermarias dos hospitais estão cheias de doentes – com malária. As pessoas continuam juntas em casamentos, jogos de futebol, concertos, sem qualquer máscara à vista, descreve a publicação norte-americana.
Mas não é só o caso da Serra Leoa que contrasta com os números dos países europeus. O Gana reportou 1.445 mortes desde o início da pandemia, segundo a Reuters. Outros países em África têm registado mortes relacionadas com o coronavírus que não chegam a atingir números de 4 dígitos, como é o caso da Tanzânia que reportou 800 mortes relacionadas com a Covid-19 desde o início da pandemia, e o Togo que registou um total de 272 mortes provocadas pelos coronavírus, de acordo com a Reuters.
Ao entrar no terceiro ano de pandemia, não existem dúvidas que a Covid-19 espalhou-se amplamente por África. Testes serológicos ao sangue para detectar a presença de anticorpos de SARS-CoV-2 mostram que cerca de dois terços da população da maioria dos países subsaarianos têm efetivamente esses anticorpos, conforme refere o artigo do The New York Times. Como apenas 14% da população recebeu a vacina Covid-19, os anticorpos foram gerados em larga maioria pela infeção.
Uma análise feita pela OMS em fevereiro de 2022, ainda sem revisão pelos pares (peer-review), compila estudos feitos em vários países do continente e conclui que 65% dos africanos já tinham sido infetados no terceiro trimestre de 2021, um número superior ao verificado em muitas partes do mundo. Apenas quatro por cento dos africanos tinham sido vacinados quando esses dados foram compilados.
Com tal discrepância de números, quais as razões para o “milagre médico” do continente africano?
Vacinação
A desigualdade da vacinação contra a Covid-19 é um problema recorrente em vários países africanos, como é o caso do Uganda e da Zâmbia, entre outros. A Libéria, por exemplo, de acordo com a Reuters, administrou cerca de 1,2 milhões de doses, representando apenas 12,2% da população. A Organização Mundial de Saúde (OMS) regista, até agora, apenas 294 mortes relacionadas com o coronavírus.
Por outro lado, Portugal, o país europeu com a maior taxa de vacinação, administrou mais de 22 milhões de doses de vacinas Covid-19 e tem mais de 92% de população vacinada. Quanto a mortes relacionadas com o coronavírus, o número ascende aos cerca de 21 mil (21.342), segundo a Direção-Geral da Saúde.
Um ano e meio depois das previsões iniciais da Science e de Melinda Gates, em setembro de 2021, a OMS indicava que apenas 2% das vacinas tinham sido administradas em África. Na altura, a expectativa da OMS era de ter 70% da população do continente vacinada na segunda metade de 2022 e que seria urgente chegar rapidamente aos 40% no final de 2021. Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, explicou que “isto deixa as pessoas num risco elevado de doença e de morte por estarem expostas a um vírus mortal, enquanto muitas outras pessoas em todo o mundo aproveitam a proteção [das vacinas]”.
A OMS continuou a traçar um cenário preocupante para África, em dezembro de 2021, quando a divisão africana da organização indicava que o grande aumento de casos no continente poderia dar origem ao surgimento de novas variantes. Dois meses depois, as previsões da OMS apontavam para 2024 (um ano e meio mais tarde) como a meta para que 70% da população esteja vacinada. A agência alertava que as regiões com menor cobertura vacinal estariam particularmente vulneráveis a novos surtos.
Uma coisa é certa: as baixas taxas de mortalidade provocadas pela Covid-19 em vários países africanos não estão de forma alguma relacionadas com as campanhas de vacinações massivas pelo simples facto de elas não existirem de forma generalizada em África.
Algumas organizações que trabalham no esforço de vacinação Covid dizem que os baixos índices de doença e mortes devem levar a uma redefinição de políticas. John Johnson, conselheiro de vacinação dos Médicos sem Fronteiras, disse ao The New York Times que vacinar 70% dos africanos fazia sentido há um ano atrás quando parecia que as vacinas poderiam fornecer uma imunidade a longo prazo e que, assim, seria possível impedir a transmissão da Covid-19. Mas agora é claro que a proteção diminui e que a imunidade de grupo já não é alcançável. Por isso, a estratégia de imunização que protege apenas os mais vulneráveis seria a melhor solução para o uso de recursos.
“O que será mais importante em países onde existem problemas muito mais graves como a malária, a pólio, o sarampo, a cólera, a meningite e a má nutrição? Onde queremos gastar os nossos recursos nesses países?”, pergunta. “Porque nesta altura, não é para essas pessoas, é para prevenir novas variantes”, conclui John Johnson. O membro dos Médicos sem Fronteiras recorda que as novas variantes de Covid trazem riscos acrescidos em lugares com populações envelhecidas e com altos riscos de comorbilidades, referindo-se à Europa e aos Estados Unidos.
Testagem e registos
Segundo um artigo publicado na PBS, há suspeitas que as taxas de mortalidade por Covid-19 em África tenham sido fortemente influenciadas pelo registo insuficiente devido à falta de testes de Covid-19 e ao seu custo. Dando o caso concreto do Zimbabué, a PBS indica o preço dos auto-testes, sem comparticipação do Estado, como um dos fatores para a falta de testagem, sendo incomportável para a maioria da população que vive em pobreza extrema.
O mesmo artigo fala ainda nos obstáculos burocráticos para a inexistência de testes baratos e que possam ser distribuídos amplamente nos países em desenvolvimento. Sem os recursos dos países ricos para comprar testes ou avaliar a sua segurança, os países pobres estão dependentes da aprovação e das orientações da OMS para o seu uso, mesmo nos casos onde as agências internacionais querem doar testes em larga escala, levando a atrasos e a problemas logísticos.
O The New York Times refere no seu artigo que “a maioria das pessoas na Serra Leoa morrem em casa, seja porque não têm acesso a instalações hospitalares, ou porque as suas famílias levam-nos para casa para morrer”. O jornal indica que muitas das mortes não são registadas pelas autoridades civis e que um estudo recente da Comissão Económica para a África, das Nações Unidas, citado pelo The New York Times, estima que os sistemas oficiais registam apenas uma em cada três mortes.
A mortalidade geral é, segundo a OMS, uma das melhores formas de avaliar o impacto da pandemia. É definida como a diferença entre o número total de mortes numa crise quando comparado com os números expectáveis em condições normais. A OMS aponta como possíveis causas a sobrecarga dos sistemas de saúde ou o facto dos doentes evitarem a ida a hospitais e centros de saúde. Na Europa e América, onde não é colocado em causa o registo de mortes por Covid-19, a OMS estima um aumento de 50% e 60%, respetivamente, face às mortes relacionadas com a doença, em 2020.
A agência ainda não tem dados para as regiões de África (que reporta 40 mil mortes associadas à Covid-19 em 2020), sudeste asiático, Mediterrâneo Oriental e Pacífico Ocidental. Segundo a agência, existe um número muito limitado de países – 16 em 106 – com capacidade para fazerem análises em tempo real de mortes esperadas e observadas e que podem posteriormente entrar nos cálculos da organização.
Um dos países subsaarianos que faz o registo conforme as diretivas da OMS é a África do Sul. Segundo o The Economist, que tem acompanhado o número de mortes por excesso, o número acumulado entre janeiro de 2020 e março de 2022 era de 250 mil.
O Dr. Lawrence Mwananyanda, um epidemiologista da Universidade de Boston e conselheiro especial do presidente da Zâmbia, disse ao The New York Times que não tem quaisquer dúvidas que o impacto na Zâmbia foi tão severo como na África do Sul, mas que na Zâmbia as mortes não estão simplesmente a ser contabilizadas por causa de um sistema de registo ineficiente. A Zâmbia, um país com mais de 18 milhões de pessoas, registou 4 mil mortes por Covid-19.
“Se isso é o que acontece na África do Sul, porque é que deveria ser diferente aqui?” pergunta o epidemiologista. “De facto”, acrescenta, “a África do Sul tem um sistema de saúde muito mais eficiente, o que deveria representar uma taxa de mortalidade menor, em vez de maior”.
Por outro lado, muitos cientistas que acompanham a pandemia no terreno dizem que não é possível que milhares ou mesmo milhões de mortes Covid tenham passado despercebidas. “Não temos assistido a enterros massivos em África”, diz o Dr. Thierno Baldé, que gere a resposta de emergência Covid em África da OMS, ao The New York Times.
“Uma morte em África nunca fica sem registo, por muito que sejamos pouco eficazes na manutenção dos registos”, diz o Dr. Abdhalah Ziraba, um epidemiologista do Centro de Investigação em Saúde da População Africana em Nairobi, no Quénia. “Existe um funeral, um anúncio: um enterro nunca é feito em menos de uma semana porque é um grande evento. Poderemos não ter os números precisos, mas a perceção é palpável. Na comunicação social e na comunidade, sabemos quando há mortes”.
O ministro da Saúde da Serra Leoa, Dr. Demby, que tem formação de epidemiologia, concorda, em declarações ao The New York Times: “não temos tido hospitais sobrelotados”. Diz ainda que “não há evidência de que estejam a ocorrer mortes em excesso”.
Imunidade
De acordo com um estudo da Viruses, uma plataforma aberta de virologia, os “anticorpos de ação cruzada” deram aos africanos maiores taxas de resiliência. Os cientistas e investigadores dão como exemplo a exposição de diversos países africanos, como é o caso da Serra Leoa, que estiveram expostos ao Ébola e à Febre de Lassa. Por exemplo, um estudo de 2021 comparou amostra de sangue de sobreviventes de Ébola e Febre de Lassa na Serra Leoa com os de dadores de sangue norte-americanos e concluiu que os primeiros têm mais anticorpos para coronavírus sazonais.
O Dr. Andy Pekosz, um especialista em SARS-CoV-2 e vice-presidente do Departamento de Microbiologia Molecular e de Imunologia da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, disse à Fortune que “existem muitas teorias sobre o porquê de não vermos muitos casos de Covid-19 em alguns países africanos”. Pekosz diz que “a teoria de que existe uma prévia imunidade que reduz os efeitos de uma infeção por SARS-CoV-2 é uma que ouço recorrentemente mas que ainda não vi dados e evidências fortes que o comprovem”.
“Além disso, alguns estudos sobre níveis de anticorpos em países africanos não mostraram sinais convincentes da pré-existência de anticorpos para o SARS-CoV-2,” disse Pekosz à Fortune. “Pode ser que parte da resposta imunitária que não esteja relacionada com anticorpos possa estar a contribuir – talvez para uma resposta imunitária celular através de células T”, conclui.
A Ivermectina é um medicamento anti-parasitário considerado pela OMS como um dos 100 medicamentos essenciais. O medicamento é usado para prevenção e tratamento de diversas doenças, sendo amplamente utilizado em África.
O estudo intitulado “Covid-19: O enigma africano da Ivermectina”, publicado em dezembro de 2020, teve como objetivo analisar o baixo índice de casos e mortes associados à Covid-19 em alguns países africanos. Os investigadores utilizaram como referência 19 países africanos que fazem parte de um programa da OMS – o APOC – para o controlo da Onchocerciasis, uma doença conhecida vulgarmente como “cegueira dos rios”. Comparando com 35 outros países africanos que não fazem parte do programa, os investigadores verificaram que os países APOC apresentavam menos 28% de mortes por Covid-19 e uma redução em 8% nas infeções.
As conclusões do estudo referem que “poderá estar a decorrer uma campanha generalizada de prevenção contra a Covid-19 de forma inadvertida em alguns países africanos através do uso massivo de ivermectina na comunidade”. Os investigadores sugerem a realização de estudos adicionais para confirmar.
Idade e fatores ambientais
Outras das razões poderão estar relacionadas com a juventude relativa dos africanos. A sua média de idades é de 19 anos, comparados com os 43 da Europa e os 38 dos Estados Unidos. Perto de dois terços da população da região subsaariana de África tem menos de 25 anos e apenas 3% da população tem mais de 65 anos. Tal representa que muito menos pessoas, comparativamente, viveram o tempo suficiente para desenvolverem problemas de saúde (doenças cardiovasculares, diabetes, doenças crónicas respiratórias e cancro) que podem aumentar significativamente o risco de doença grave e morte por Covid-19. Jovens infetados pelos coronavírus são geralmente assintomáticos, o que pode ter contribuído para o baixo número de casos reportados.
Na complexidade da análise da influência dos vários fatores que contribuem para a disseminação de doenças, as temperaturas elevadas dos países africanos e o facto de grande parte do tempo ser passado no exterior poderão ter tido impacto positivo na prevenção. Além disso, as carências nutritivas, que contribuem para o flagelo da fome em África, não permitem os níveis de obesidade dos países mais ricos, uma das causas para contrair formas graves da doença e morte. A infraestrutura reduzida de transportes públicos e a pobreza contribuem para hábitos de vida que potenciam o exercício físico.
Desde que a Covid-19 atingiu o sul e o sudeste da Ásia no ano passado, tornou-se mais difícil aceitar estas teorias. Afinal, a população da Índia é também jovem, com uma média de idade de 28 anos, e as temperaturas no país são também relativamente altas. Mas os investigadores, citados no artigo do The New York Times, verificaram que a variante Delta causou milhões de mortes na Índia, muitos mais que os 400 mil reportados oficialmente. Além disso, as taxas de infeção com malária e outros coronavírus são elevadas em alguns lugares, como a Índia, que também tem taxas elevadas de mortes por Covid-19.
No entanto, conforme o The Blind Spot noticiou em dezembro de 2021, um estudo publicado no The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, conclui que o impacto da Covid-19 nesta região é residual em relação à malária, à tuberculose e ao VIH/SIDA, tendo como base os anos de vida de qualidade, na África Subsariana. Essas três doenças mantêm-se como as maiores prioridades de saúde e, de acordo com as conclusões do estudo, o desvio de recursos para a Covid-19 representa um risco elevado de aumentar a carga global da doença e causar danos líquidos, aumentando assim ainda mais as desigualdades globais na saúde e na esperança de vida.