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Indústrias farmacêuticas financiam reguladores de medicamentos

Um artigo de investigação publicado no BMJ relata o crescimento substancial do financiamento dos reguladores de medicamentos pela indústria. Além disso, revela conflitos de interesse generalizados, “portas giratórias” entre reguladores e regulados e falta de transparência. São, por isso, levantadas dúvidas sobre a real independência destas entidades.

Em 1992 foi aprovado pelo Congresso a Lei de Taxa de Utilização de Medicamentos (PDUFA), permitindo que a indústria financie diretamente a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA para apoiar o custo da revisão acelerada dos pedidos de medicamentos.

Com esta lei, a FDA passou de uma entidade totalmente financiada pelos contribuintes para uma entidade com financiamento da indústria farmacêutica). Já as comissões da PDUFA, aumentaram de cerca de 29 milhões de dólares em 1993 para 884 milhões em 2016.

A situação na Europa não é diferente, com as taxas da indústria a financiarem em 89% a Agência Europeia de Medicamentos (EMA), quando em 1995 esse valor era de 20%. 

Posto isto, foi avaliado em 2005 pelo Comité de Saúde da Câmara dos Comuns do Reino Unido o impacto da indústria farmacêutica na política de saúde, incluindo a Autoridade Reguladora de Medicamentos e Produtos de Saúde (MHRA).

Duas décadas depois, pouco mudou, e o financiamento da indústria por parte dos reguladores de medicamentos tornou-se a norma internacional.

O BMJ colocou uma série de perguntas sobre as fontes de financiamento e a velocidade com que novos medicamentos são levados ao mercado de seis grandes reguladores na Austrália, Canadá, Europa, Japão, Reino Unido e EUA.

Assim, descobriram que o dinheiro da indústria financia os principais reguladores do mundo, levantando-se questões sobre a sua independência, principalmente após uma série de escândalos envolvendo drogas e dispositivos.

Taxas

Dos seis reguladores, quem tem a maior parcela do orçamento de despesas do setor (96%) é a Austrália, com mais de nove em cada 10 solicitações de empresas farmacêuticas aprovadas em 2020 e 2021. Isto levou a que especialistas pedissem revisão completa da estrutura e função da TGA, argumentando que a agência está muito próxima da indústria.

Donald Light, sociólogo da Rowan University em Nova Jérsia, disse: “Assim como a FDA, a TGA foi criada como uma agência independente. As taxas cobradas pelas empresas são um exemplo clássico de conflitos de interesse fundamentais e corrupção institucional”.

Consultores externos

Uma investigação realizada pelo BMJ no ano passado descobriu que vários consultores especializados dos comités consultivos de vacinas Covid-19 no Reino Unido e nos EUA tinham vínculos financeiros com fabricantes de vacinas.

Um investigador de políticas de drogas da Universidade de York, em Toronto, Joel Lexchin, disse: “As pessoas devem estar cientes de quaisquer conflitos de interesse financeiros daqueles que dão conselhos para que possam avaliar se eles estão a influenciar os conselhos que estão a ouvir. As pessoas precisam de ser capazes de confiar no que ouvem das autoridades de saúde pública e a falta de transparência corrói a confiança.”

Aprovações rápidas

Em seguimento à crise da SIDA nas décadas de 1980 e 1990, nos EUA foi introduzida a “taxa de utilização” para financiar pessoal adicional para ajudar a acelerar a aprovação de novos tratamentos.

Atualmente, todas as principais agências reguladoras oferecem vias rápidas para uma grande percentagem de aprovação de novos medicamentos. Em 2020, 68% das aprovações de medicamentos nos EUA foram aceleradas. Na Europa 50% e 36% no Reino Unido.

De acordo com o BMJ, os críticos argumentam que uma “porta giratória” viu muitos funcionários das agências a acabarem a trabalhar ou consultar nas mesmas empresas que supervisionam.

No FDA, nove em cada 10 dos seus ex-comissários passaram a ocupar cargos relacionados a empresas farmacêuticas entre 2006 e 2019.

Em fevereiro, o Senado dos EUA confirmou o cardiologista Robert Califf como chefe da FDA, cargo que ocupou anteriormente durante o governo de Obama. Califf recebeu 2,7 milhões de dólares da Verily Life Sciences e atuara nos conselhos de duas empresas farmacêuticas, AmyriAD e Centessa Pharmaceuticals, em 2021, de acordo com os formulários de divulgação financeira.

Além da FDA, Ian Hudson, que foi presidente executivo da MHRA UK de 2013 a 2019, agora faz parte do conselho da empresa de biotecnologia Sensyne Health e é consultor sénior da Fundação Bill & Melinda Gates. Antes de ingressar na MHRA, Hudson ocupou vários cargos seniores na gigante farmacêutica SmithKline Beecham.

Mudança 

Kesselheim, professor de medicina em Harvard, diz que é crucial a FDA reexaminar a sua abordagem às aprovações aceleradas. “Tem de haver mais clareza sobre os pontos finais e qual a base científica para escolher um ponto final.” 

“São necessárias maiores garantias de que os pontos finais selecionados são verdadeiramente ‘razoavelmente prováveis’ para prever o benefício clínico, como exige o padrão de aprovação acelerada da FDA”, afirma Kesselheim.

Já Donald Light, recomenda a criação de organizações sem fins lucrativos, como o Instituto Alemão de Qualidade e Eficiência em Saúde, que foi criado para a realização de avaliações independentes da indústria, rigorosas, imparciais e transparentes de medicamentos aprovados.

“A questão é: porque é que os reguladores de medicamentos não estavam a fazer este trabalho de confiança, transparente, rigoroso e imparcial em primeiro lugar?”, disse Light.

O sociólogo recomenda  ainda a criação de um conselho de segurança para drogas e vacinas para investigar incidentes de danos causados aos pacientes.

“Os países têm quadros de segurança independentes para as companhias aéreas e os seus passageiros. Por que não também para medicamentos e pacientes ?”, afirma Light.

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