A pandemia, as medidas de combate implementadas e todos os efeitos colaterais associados, como a crise económica, o desemprego, o isolamento social ou as perdas pessoais, são fenómenos que estão a impactar a saúde mental dos portugueses. Rita Amorim*, psicóloga clínica e psicoterapeuta, explicou que os pedidos de ajuda aumentaram neste segundo confinamento e que o país deveria criar estruturas mais ágeis logo nos cuidados de saúde primários, para garantir um apoio mais rápido e evitar quadros psicopatológicos mais graves.
– Qual o impacto que esta pandemia e todas as medidas de combate envolvidas podem vir a ter na saúde mental dos portugueses?
Só teremos uma noção real do impacto mais tarde, naquilo que se sabe ser já uma saúde mental nacional frágil. Mas há um impacto imediato, e eu falo da amostra que é o meu consultório e daquilo que tenho sabido através de conversas com colegas psicoterapeutas e psiquiatras. Tem havido, desde o princípio da pandemia em Portugal, e sobretudo depois de decretado o segundo confinamento, um número crescente de pedidos de ajuda por sofrimento mental/emocional.
– Que perturbações estão a surgir?
A primeira dificuldade, perante a ameaça pandémica, foi colocarmo-nos algures, e de forma equidistante, entre a paranoia e a negação.
A crise atual, vivida como um estado de perigo radical – não só porque representa uma ameaça mortal mas, em larga medida, também porque essa ameaça era indefinida em termos de objeto, duração, técnicas de ataque e meios de defesa – dúvida agora atenuada porque há vacinas, é a combinação mais ameaçadora que podemos conceber: um perigo externo de contornos imprecisos, mal delineado, que dá lugar a cenários internos devastadores.
Há duas reações possíveis face a esta ameaça. Uma rejeita a realidade e a segunda aceita-a e lida com ela. Na posição mais primitiva reagimos, por um lado, com negação e omnipotência e, por outro, com pânico, exagero e desespero. A reação omnipotente procura evitar a dor e a angústia através da sobrevalorização cega das nossas capacidades. Vem, normalmente, acompanhada de desprezo e raiva em relação às regras, negação da magnitude do momento e recusa em obedecer a instruções. A reação de pânico ativa os nossos terrores infantis e profundo desespero.
Há depois quem passe a uma posição mais evoluída e, nesse sentido, mais depressiva, que consiste na aceitação da realidade. A partir desta posição, reconhecemos os perigos externos e a nossa vulnerabilidade perante os mesmos mas, simultaneamente, conseguimos ancorar-nos numa agência interna capaz de lidar com o perigo.
Em todos os casos, o sofrimento mental está presente. Depois, mas igualmente importantes, temos os efeitos colaterais da pandemia, a crise económica, o desemprego, o isolamento social, as perdas pessoais, fenómenos todos eles potencialmente causadores de grande sofrimento que já estão e irão, certamente, amplificar quadros mentais pré-existentes difíceis.
– Estes dois confinamentos impactaram as pessoas de forma diferente?
O primeiro confinamento foi uma novidade brutal. As reações eram muito as que descrevi, uma espécie de choque: entre a paranoia e a negação. Mas vi algumas pessoas bem equipadas para lidar com tudo o que estava a acontecer: gratas por poderem parar e ter tempo em casa e em família, desde que não durasse muito; entusiasmadas a tentar encontrar outras formas de comunicação: jantares por zoom com os amigos, etc.
O segundo confinamento foi decretado na iminência da falência do sistema de saúde, com números muito altos e um risco real de sucumbir à doença por impossibilidade de tratamento. Ou seja, a situação era bastante pior do que em março de 2020. Isso levou a uma aceitação e a uma integração relativamente pacíficas das regras: as pessoas sentiram que, de facto, corriam riscos sérios e por isso aceitaram as medidas.
No entanto, os efeitos do confinamento foram bastante devastadores, porque foram cumulativos. Instalou-se uma mesmidade, uma repetição, um não-tempo nas vidas das pessoas que quase fez esquecer o que era a vida antes de fevereiro de 2020. A vida como ela era está agora mais distante. Como os anos passados numa prisão, anos que não contam, anos em que somos privados dos prazeres e das celebrações de uma vida dita normal: há um efeito de saturação- acabou-se a festa por zoom – mas também de habituação, que é pernicioso, o vazio instala-se e deprimimos.
– Estes números podem voltar a diminuir quando a pandemia for dada como terminada ou, pelo contrário, podem ganhar amplitude?
Penso que os efeitos continuarão a fazer-se sentir por algum tempo. Dependerá, também, da forma como a rede de cuidados de saúde mental responder a este momento de crise e contribuir para prevenir os efeitos devastadores da crise económica que já conseguimos antecipar. Já sabemos que desemprego, pobreza, isolamento social, e outros fenómenos decorrentes de uma crise como esta, têm grande impacto na saúde mental de uma população: não precisamos de esperar para ver.
– O que está a ter um impacto mais negativo?
Todos os fatores têm impacto, o peso depende muito da faixa etária, do tipo de personalidade, do grupo económico-social a que o sujeito pertence, da rede de apoio familiar e social, etc.
– A saúde mental é negligenciada ou vista como menos urgente em Portugal?
É o que tem acontecido. Como se não fosse tudo saúde e a cabeça não fizesse parte do corpo. Há um plano de reforma da saúde mental engavetado há décadas…
Mas estão a ser tomadas medidas para responder rapidamente a estes problemas ou tentar antecipá-los?
Nesta fase dedico-me exclusivamente à prática privada, por isso não posso falar com propriedade. Mas tomei conhecimento que Portugal pretende usar 85 milhões do Plano de Recuperação e Resiliência para retomar a tal reforma da saúde mental. Prevê-se, entre outras medidas, a criação de programas de intervenção não farmacológica nos centros de saúde e a criação de várias equipas comunitárias de intervenção. E é o que faz sentido e já deveria ter sido feito há muito tempo: dotar os cuidados de saúde primários de meios e privilegiar formas de intervenção que não passem, em primeira instância, pela medicalização: dar às pessoas acesso atempado a tratamentos psicológicos para que não se instalem quadros psicopatológicos mais graves.
– Existe ainda preconceito na procura de ajuda?
Existe preconceito, mas cada vez menos. Podemos ver esta tendência na crescente procura de ajuda para as crianças, por exemplo, um fenómeno pré-existente à pandemia. Mas são preconceitos que podem demorar uma ou duas gerações a mudar. A transformação de mentalidades passa não só por comunicar a importância de pedir ajuda quando há sofrimento mental – porque é de saúde que se trata e não pensamos duas vezes em ir ao médico se nos doer a cabeça dias a fio – e por aliviar o estigma associado – mental ou física, é tudo dor, mas também por mudar as mentalidades a partir de dentro.
Enquanto não contratarmos mais psicólogos para centros de saúde e hospitais, para que o acesso aos cuidados seja atempado e verdadeiramente universal, e enquanto as pessoas esperarem um ano por uma consulta de psicologia no SNS, o que é que estamos a comunicar à população? Que a saúde mental pode esperar, que não é assim tão importante.
– Que fatia da população é a mais vulnerável?
Desde logo, e em primeiro lugar, quem tem um quadro de doença mental pré-existente, mas também quem está em situação de maior fragilidade social: duas realidades que, muitas vezes, andam associadas.
– Como é que o encerramento das escolas afetou as famílias em termos psicológicos?
Depende. Uma coisa é ter os filhos em telescola numa casa grande, cada um no seu quarto, computadores para todos, ter oportunidade de estar em teletrabalho, ter, do outro lado, uma escola privada que organiza bem os tempos e que gere as angústias e as dúvidas das crianças, que lhes dá segurança e, em última instância, dá segurança à família. Outra será gerir o dia-a-dia sem estas condições. Para todas, de qualquer forma, representou uma tarefa muito exigente com custos psicológicos mais ou menos evidentes decorrentes da acumulação de papéis e da ausência de limites físicos entre as várias dimensões da vida: ser mãe, pai, professor/a, trabalhador/a, tudo ao mesmo tempo, dentro das mesmas 4 paredes, dia após dia. Para as crianças, sobretudo para as mais pequenas, e independentemente das condições, a privação do convívio presencial com as outras, a ausência da experiência sensorial – fundamental em idades mais precoces, quer para o desenvolvimento cognitivo quer para o desenvolvimento emocional – é terrível e é bom que não dure muito tempo: são oportunidades perdidas em estágios fundamentais do desenvolvimento e que dificilmente se recuperam mais à frente.
– Como vê a saúde mental em Portugal no período pós-pandemia?
Com apreensão mas também com esperança. Na tal reforma.
* Drª Rita Amorim – Mestre em Psicologia Clínica pelo ISPA-IU, Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta, inscrita na Ordem dos Psicólogos Portugueses e membro da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica.