A justificação inicial para a proliferação de fact checkers era denunciar informação comprovadamente falsa. Mas será que é isso que estamos a assistir? Mostramos os argumentos usados pelos verificadores de factos que levaram o Facebook a censurar quem partilha um artigo científico publicado na revista Nature.
O aviso de que dois fact-checkers denunciaram um artigo da Nature, quando se pretende partilhar ou publicar o artigo no Facebook é mais um exemplo do papel que os “verificadores de factos” têm desempenhado nos últimos anos.
O que diz o estudo
O estudo da Nature relata um aumento de 25% no volume de chamadas de paragem cardíaca (Cardiac arrest- CA) e síndrome coronária aguda (acute coronary syndrome- ACS), em comparação com 2019-2020, na população dos 16 aos 39 anos.
As contagens semanais de chamadas de emergência médica para os serviços de saúde foram significativamente associadas às primeiras e segundas doses de vacina administradas a esta faixa etária.
Por outro lado, não foram associadas a taxas de infeção COVID-19.
Os autores concluem:
“Embora não estabeleçam relações causais, os resultados levantam preocupações relativamente aos efeitos secundários cardiovasculares graves não detetados pela vacina e sublinham a relação causal já estabelecida entre vacinas e miocardite, uma causa frequente de paragem cardíaca inesperada em indivíduos jovens.”
Para esta análise, os investigadores utilizaram os dados do Serviço Nacional de Emergência Médica (EMS) de Israel de 2019 a 2021.
Salientam que existem várias outras evidências de associação de incidentes cardíacos com a vacinação, como por exemplo, na Escócia, mas também, da ausência de correlação dessas ocorrências com a incidência de Covid.
O que dizem os fact checkers em que o Facebook se baseia para censurar este estudo?
O fact check da THIP
Neste artigo de fact checking da THIP, uma empresa sediada na Índia, é colocada a pergunta: “Israel viu aumento dos eventos cardiovasculares de emergência relacionados com a covid”?
“Não há provas suficientes. A investigação chegou à conclusão com base no aumento das chamadas dos Serviços nacionais de Emergência (EMS). Mas o jornal [revista Nature] não confirma se o resultado principal representa apenas os casos de paragem cardíaca e síndrome coronária aguda. Além disso, o jornal não mostra quais os indivíduos que tinham vacinas covid ou covid durante a amostragem.”
É, desta forma, lançada a dúvida sobre se os casos declarados pelos Serviços Nacionais de Emergência correspondem, de facto, a essas situações.
Isso, só é possível porque é ignorada a descrição precisa, presente na metodologia da Nature, em que é explicado a forma rigorosa como são confirmados esses diagnósticos. Entre os esclarecimentos, os autores indicam:
“Os códigos de chamada utilizados para identificar chamadas CA e ACS são determinados pelas equipas em EMS com base em protocolos definidos do IEMS.
“O diagnóstico de CA foi feito com base nas circunstâncias de colapso descritas por quem contactou a equipa destacada, no eletrocardiograma da vítima de CA (ECG), obtido através de um desfibrilhador externo automatizado, e através de indicadores comuns de AC observados pelos paramédicos que respondem (por exemplo, paciente sem resposta, respiração agonal).”
“O diagnóstico de ACS foi feito com base no ECG de 12 canais do paciente (foi realizado um ECG de 12 canais em todos os pacientes suspeitos de ACS para confirmar o diagnóstico), sintomas (por exemplo, dor no peito, falta de ar), histórico médico e exame físico, como obtido pelos paramédicos que respondem.”
Não é apresentada qualquer crítica aos protocolos nem tão pouco aos meios de diagnóstico utilizados por parte do fact checker THIP. Também não é referida qualquer tentativa de contacto com os autores do estudo ou com as entidades israelitas para esclarecer dúvidas que eventualmente existam.
É igualmente afirmado que “o jornal não mostra quais os indivíduos que tinham vacinas covid ou covid durante a amostragem”. Ora, o estudo não tinha esse desenho. Estuda a correlação entre as ondas de covid e a campanha de vacinação com os números de casos de emergência cardíaca reportados.
Está bastante explícito que o estudo da Nature não pretende substituir outras metodologias, mas sim ser mais uma forma de enriquecer os atuais sistemas de vigilância da vacina com fontes de dados adicionais para poder melhorar a compreensão da segurança das vacinas covid-19”.
Omissão de dados
Outro argumento usado pela THIP é o facto de a conclusão ser tirada com base numa diferença de 39 chamadas telefónicas.
“Ao ler o artigo, achámos que a conclusão era confusa porque 39 chamadas de 2 milhões de pessoas com uma diferença relativa de 25% não é justificável com os dados disponíveis. “
Essa declaração não é totalmente verdadeira. A diferença diz apenas respeito a um tipo de emergência – a paragem cardíaca -, uma situação de gravidade máxima.
O autor desta suposta verificação de factos, omitiu a restante parte da tabela, concretamente os valores relativos à síndrome coronária aguda (que pode resultar de um ataque cardíaco). Neste caso, a diferença é de 163.
Assim, a diferença total é de 202 casos de emergência, não os 39 como referido.
Esta diferença, estatisticamente significativa, corresponde a uma comparação de apenas 5 meses de casos registados por contacto telefónico e numa faixa etária em que este tipo de eventos é naturalmente raro.
Conclusão pouco fundamentada
Na sua conclusão, os fact checkers da THIP citam a frase dos autores do estudo em que referem que:
“os resultados suscitam preocupações relativamente aos efeitos secundários graves não detetados pela vacina e sublinham a relação causal já estabelecida entre vacinas e miocardite, causa frequente de paragem cardíaca inesperada em indivíduos jovens”.
Sobre essa mesma frase, consideram que: “Assim, a alegação permanece maioritariamente falsa até prova em contrário.”
De que alegação falam? Do facto de, perante os dados apurados, os autores ficarem preocupados? Ou é falso que ficam preocupados?
Será que é por considerarem que eles sublinham “a relação causal já estabelecida entre vacinas e miocardite, causa frequente de paragem cardíaca inesperada em indivíduos jovens”?
Mas, já na altura do estudo, inúmeras investigações comprovavam a existência dessa reação adversa grave (miocardite) à vacina (não detetada nos ensaios clínicos da Pfizer) [1] [2] [3] [4] [6] [7] [8] [9] [10] [11] [12].
É igualmente surpreendente que tenha sido ignorado o rigoroso estudo populacional (com mais de 23 milhões de pessoas) levado a cabo por entidades nórdicas de saúde e que comprovou o grande aumento desta condição nos escalões em causa devido à vacinação mRNA.
Também aqui, este estudo foi publicado antes e, como é óbvio, fortalece a hipótese avançada pelos autores da Nature, dado que as miocardites são causa frequente das duas situações de emergência estudadas.
Os autores do estudo não alegam que a vacinação provocou garantidamente o aumento de emergências, apenas que estes resultados “sublinham” os estudos que confirmam que a vacinação mRNA aumenta os casos de miocardites nestes escalões e que isso provoca este tipo de situações raras, mas dramáticas.
É perfeitamente possível questionar se as preocupações dos autores do estudo são mais ou menos justificadas. Alguns investigadores poderão achar que são exageradas, outros demasiado conservadoras.
Outra coisa é alguém, pouco habilitado para a análise deste tipo de evidência, afirmar que a preocupação, manifestada por investigadores numa revista científica e com inúmeras evidências bem documentados, é uma alegação que “permanece maioritariamente falsa até prova em contrário.”
O fact check da Lead Stories
O fact check da norte-americana Lead Stories baseia-se essencialmente na opinião de peritos.
Em primeiro lugar apresenta a opinião de um cardiologista, Jason H. Wasfy, do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos. Citam-no a afirmar:
“Embora os dados mostrem um aumento nas chamadas para os serviços médicos de emergência (EMS) para este tipo de eventos, não é claro se os diagnósticos finais destes casos representam “paragem cardíaca e/ou síndromes coronárias agudas sequer” ”.
Tal como no fact check anterior, é ignorada toda a descrição detalhada que consta do estudo da Nature sobre os protocolos seguidos e meios de confirmação de diagnóstico utilizados.
O perito selecionado argumenta apenas que “esses diagnósticos muitas vezes não são feitos até que os resultados laboratoriais e de radiologia estejam disponíveis a partir do internamento posterior. Como tal, não é claro que os principais resultados deste estudo realmente representam a paragem cardíaca e/ou síndromes coronárias agudas.”
Mas se o perito levanta questões sobre a confirmação final do diagnóstico e sugere outras formas de o confirmar, o jornalista da Lead Stories que escreve o fact check vai muito mais longe.
Usa as dúvidas do cardiologista convidado, para afirmar com certeza que não houve aumento de casos de emergência.
“A população sub-40 de Israel experimentou um aumento em “eventos cardiovasculares de emergência” durante o lançamento de vacinas COVID-19 e a terceira vaga do vírus? Não, não há provas que o apoiem.”
Ou seja, apesar de uma extensa explicação do protocolo e dos critérios utilizados pelo próprio sistema de Emergência Nacional de Israel, basta uma opinião que afirma não ser totalmente claro esse diagnóstico final para inequivocamente negar que houve sequer qualquer aumentos de casos.
Falácia do espantalho
Depois, de forma surpreendente, é colocada a hipótese que tinha acabado de ser rejeitada:
“Se mais jovens em Israel, no seu conjunto, tiveram mesmo síndromes coronárias cardíacas e/ou agudas em 2021 em relação a 2020 ou 2019, houve muitas outras causas potenciais para essas mudanças ao longo do tempo, para além da vacinação covid. Atribuir estas alterações à vacinação covid é realmente especulativo – pode ser muitas outras coisas.”
Nesta afirmação é negado algo que os autores nunca afirmaram, ou seja, que se pode, desde já, atribuir esse aumento à vacinação. Trata-se, portanto, de um argumento falacioso.
A falácia do espantalho é uma falácia em que o argumento de um oponente é sobrestimado ou mal representado para ser mais facilmente atacado ou refutado.
Acusação de cherry picking
Recorrem depois a outro médico, Dr. Matt Robinson, um especialista em doenças infeciosas da Johns Hopkins Medicine, dos EUA, que sugeriu que o estudo recorreu a cherry picking.
Robinson, usa argumentos como:
“Ao escolherem intervalos de tempo, os autores encontram uma correlação muito fraca entre a vacinação COVID-19 e tais chamadas. Destacam-se então um aumento destas chamadas nos primeiros meses de 2021, quando a vacinação COVID-19 estava em curso, em comparação com 2020, antes de estarem disponíveis.”
“Como a análise só analisa os números totais de chamadas e doses de vacinas administradas, não há como saber que as pessoas que tiveram paragens cardíacas e ataques cardíacos foram as que receberam vacinas.”
Ora, se o estudo procurava detetar correlações entre a covid-19 e a vacinação com as emergências cardíacas, só poderia escolher os intervalos de tempo em que existiram ondas de covid e campanhas de vacinação.
O cherry picking é o ato de apontar para casos ou dados particulares que parecem confirmar uma determinada posição, ignorando uma parte significativa de casos ou dados relacionados e similares que possam contradizer essa posição.
Não é isso que acontece com o estudo da Nature.
O perito refere-se a um aumento de casos já em 2020, mas os dados desse ano são profundamente analisados e é concluído que não existem diferenças estatísticas significativas em relação ao ano anterior.
Não é feita qualquer referência ou crítica à análise estatística utilizada.
Pedido de esclarecimentos às farmacêuticas
Após a Lead Stories repetir algumas das mesmas críticas, já abordadas no fact check anterior da THIP, são colocadas reações da Pfizer (a Moderna não terá respondido).
Em sua defesa, a Pfizer refere nomeadamente a sua preocupação com a segurança e salienta os mecanismos de regulação e vigilância existentes.
Curiosamente, em nenhum dos fact checks é referido qualquer tipo de pedido de explicação aos autores do estudo publicado na Nature.
Quem são estas empresas de fact checking?
A THIP, cujas iniciais significam Projeto Indiano da Saúde, é um projeto privado criado em 2013. Recebeu um financiamento de quase 32 mil dólares da Google em 2020. O seu site indica que a sua maior fonte de rendimento é a Meta, através do fact-check do Facebook e WhatsApp.
A Lead Stories é uma empresa norte-americana dedicada ao fact-checking. Foi fundada em 2015 e tem como principais clientes o Facebook e a ByteDance, dona do TikTok.
Notas finais
Apesar deste estudo publicado na Nature ter já sido revisto por pares, não está de forma alguma imune a críticas ou, até, revisões no futuro. Não existem estudos perfeitos e a ciência apenas evolui se estiver sujeita a um constante escrutínio.
Não é, no entanto, o papel de jornalistas, sem habilitações adequadas, diretamente ou através de especialistas, escolhidos de forma discricionária, decretar que estudos publicados são “fake news”.
Nesse caso, a utilização de opiniões, que apenas vão num dado sentido, e a ocultação de outras igualmente qualificadas, constitui, em si mesmo, uma forma de manipulação.
Ainda menos aceitável é que esses artigos, com falhas evidentes e claros enviesamentos, sirvam para redes sociais, neste caso o Facebook, censurarem conteúdos científicos e a sua divulgação.
Referências:
[1] Husby A, Hansen JV, Fosbøl E, et al. SARS-CoV-2 vaccination and myocarditis or myopericarditis: population based cohort study. BMJ. 2021;375:e068665. doi:10.1136/bmj-2021-068665
[2] Vogel, G. & Couzin-Frankel, J. Israel reports link between rare cases of heart inflammation and COVID-19 vaccination in young men. https://www.sciencemag.org/news/2021/06/israel-reports-link-between-rare-cases-heart-inflammation-and-covid-19-vaccination (2021).
[3] Larson, K. F. et al. Myocarditis after BNT162b2 and mRNA-1273 vaccination. Circulation https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.121.055913 (2021).
[4] Bozkurt, B., Kamat, I. & Hotez, P. J. Myocarditis with COVID-19 mRNA vaccines. Circulation 144, 471–484 (2021).
[5] Verma, A. K., Lavine, K. J. & Lin, C.-Y. Myocarditis after Covid-19 mRNA vaccination. N. Engl. J. Med. https://doi.org/10.1056/NEJMc2109975 (2021).
[6] Choi, S. et al. Myocarditis-induced sudden death after BNT162b2 mRNA COVID-19 vaccination in Korea: Case report focusing on histopathological findings. J. Korean Med. Sci. 36, 66 (2021).
[7] Oster ME, et al. Myocarditis Cases Reported After mRNA-Based COVID-19 Vaccination in the US From December 2020 to August 2021. JAMA. 2022 Jan 25;327(4):331-340. doi: 10.1001/jama.2021.24110. PMID: 35076665; PMCID: PMC8790664.
[8] Weiss SR. Myocarditis Cases After mRNA-Based COVID-19 Vaccination in the US. JAMA. 2022 May 24;327(20):2019-2020. doi: 10.1001/jama.2022.5131. PMID: 35608592
[9] Husby A, et al. SARS-CoV-2 vaccination and myocarditis or myopericarditis: population based cohort study. BMJ. 2021 Dec 16;375:e068665. doi: 10.1136/bmj-2021-068665. PMID: 34916207 Free PMC article.
[10] Dionne A, et al. Association of Myocarditis With BNT162b2 Messenger RNA COVID-19 Vaccine in a Case Series of Children. JAMA Cardiol. 2021 Dec 1;6(12):1446-1450. doi: 10.1001/jamacardio.2021.3471. PMID: 34374740
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[12] Karlstad Ø, Hovi P, Husby A, et al. SARS-CoV-2 Vaccination and Myocarditis in a Nordic Cohort Study of 23 Million Residents. JAMA Cardiol. 2022;7(6):600–612. doi:10.1001/jamacardio.2022.0583
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