Um fact check do jornal Observador, sobre os ensaios clínicos da Pfizer, desmente declarações anónimas que são verdadeiras. Por outro lado, a frase presente no título do artigo, que realmente é falsa, não é atribuída a ninguém em concreto. Além disso, são feitas várias afirmações especulativas.
O fact check do Observador tem como título: “Pfizer admitiu que mentiu sobre testes à capacidade de a vacina contra a Covid-19 travar a transmissão do vírus?”. O artigo começa por salientar que os ensaios clínicos da Pfizer não se centraram na transmissão.
De facto, a diretora da Pfizer, Janine Small, referiu no Parlamento Europeu, a 10 de outubro, que os ensaios clínicos que sustentaram a autorização de emergência e a subsequente entrada das vacinas no mercado não testaram a sua eficácia relativamente à transmissão. Conforme já foi referido no editorial do The Blind Spot, a afirmação da representante da Pfizer não trouxe nada de novo.
Há muito que se sabia isso. A FDA estabeleceu a eficácia mínima de 50% contra a infeção sintomática e as farmacêuticas orientaram-se naturalmente para esse objetivo. De facto, os ensaios clínicos iniciais da Pfizer não incidem na transmissão da doença.
Portanto, os dados iniciais apresentados no fact check não estão errados.
Classificar de “errado” o que está “certo”
Sem referir fonte nem autores, é afirmado que existem publicações nas redes sociais a inferir, a partir das declarações da responsável da Pfizer, que a farmacêutica mentiu sobre os ensaios clínicos da vacina.
Tal terá provavelmente acontecido. As pessoas tiram as suas próprias conclusões sempre que passam a conhecer um “novo facto”. Muitas dessas conclusões estão erradas ou mal formuladas.
No entanto, no destaque do artigo é enfatizada uma citação diferente de um “utilizador do Facebook”, bem como a sua classificação de “errado”.
Ao contrário da afirmação inicial que dá o título ao artigo, esta frase é totalmente correta e corresponde ao que realmente aconteceu.
Aliás, tal é reconhecido literalmente na conclusão do artigo:
“A farmacêutica admitiu que não testou a vacina para a capacidade de travar a transmissão do vírus (…)”
Mas para além desta incongruência, o artigo tem outros problemas óbvios.
Afirmação não sustentadas – 1
De facto, essa responsável da Pfizer disse a verdade, quando afirmou que a transmissão não fazia parte dos “end points” dos ensaios clínicos.
No entanto, o artigo vai muito para além disso, ao concluir que:
“Não é verdade que a Pfizer tenha mentido sobre os ensaios clínicos que desenvolveu com a vacina contra a Covid-19 elaborada em parceria com a BioNTech.”
Ou seja, a partir de uma declaração particular sobre uma questão muito específica, óbvia e comprovável, a autora do artigo conclui que a Pfizer (ou seja, todos que a representam) nunca mentiu em relação sobre nenhum aspecto dos ensaios clínicos.
Mesmo não considerando as suspeitas que recaem sobre estes ensaios clínicos ou até do seu historial não muito abonatório, não é razoável que um fact checker faça uma afirmação destas. Simplesmente, porque não dispõe de evidência suficiente para a suportar.
Apesar do direito geral de presunção de inocência, não é normal um meio de comunicação social, ilibar à partida de qualquer possível falha uma empresa privada ou, para este efeito, qualquer pessoa ou instituição em geral. Porque fazê-lo com a Pfizer?
Afirmação não sustentada – 2
No meio do artigo é referido que o eurodeputado, Rob Roos, “utilizou os esclarecimentos da presidente de mercados internacionais da Pfizer para afirmar que a farmacêutica norte-americana mentiu sobre a vacina ter sido testada para travar a transmissão do coronavírus.”
No entanto, não apresenta qualquer citação ou referência que confirme tal declaração.
No vídeo que publicou no YouTube, Roos cita afirmações que salientam a importância da vacinação covid para “a sociedade”, indiciando a presunção de que as vacinas evitam a transmissão. Por isso, ele sugere mesmo que essas declarações tenham sido enganadoras ou mesmo falsas.
No entanto, ele cita especificamente o primeiro-ministro e a ministra da saúde holandeses. Em momento algum, ele afirma que “a Pfizer mentiu sobre a transmissão do vírus”.
Portanto, o que este eurodeputado diz é que, sabendo que os ensaios clínicos da Pfizer não deram qualquer indicação relativa à transmissão, os decisores políticos “enganaram a população”.
Independentemente de uma análise subjetiva da sua posição, ela parece ser bem diferente da que é apresentada no artigo. Em lado algum encontramos declarações do político a afirmar que a Pfizer “mentiu” e o próprio artigo não dá qualquer referência de que isso tenha realmente acontecido.
Afirmação não sustentada- 3
Ainda em relação ao mesmo eurodeputado, a autora do artigo refere-o como alguém “que representa um partido que nega as alterações climáticas”.
Não se tratando de um artigo de opinião, mas de uma “verificação de factos”, é estranho que não se centre nos mesmos para os “verificar” e entre por outros temas.
Neste caso, parece mesmo tratar-se de um ataque ad hominen para descredibilizar uma posição sobre o facto em análise. Porque é alguém numa “verificação de factos” recorre a uma falácia? Neste caso, na que consiste em procurar negar uma afirmação com uma crítica ao seu autor e não ao seu conteúdo.
Para agravar a situação, também aqui não é revelada a fonte que suporta essa afirmação, que aparentemente também não parece ser verdadeira. Pelo menos no site do partido de Roos, o JA21, é dito que o partido “quer parar a atual política climática inviável e inacessível que coloca em risco a prosperidade do nosso país”.
Ora “parar a atual política climática inviável e inacessível” é bem diferente que dizer que não existem alterações climáticas. Portanto, na melhor das hipóteses trata-se de uma enorme falta de rigor.
Veredito Final do “fact check”
No veredito final do artigo é referido que as principais alegações “são factualmente imprecisas”. Mas de que alegações se tratam?
Será por causa da frase atribuída a um “utilizador de Facebook”, que é completamente verdadeira, apesar de ter, de forma enganosa, um “errado” à frente?
Ou será devido à declaração atribuída a um eurodeputado, sem citação nem referência de onde terá sido feita?
Apenas a frase do título do artigo, que afirma que a “Pfizer admitu que mentiu sobre testes à capacidade de a vacina contra a Covid-19 travar a transmissão do vírus”, parece ser falsa.
No entanto, essa afirmação não é atribuída a ninguém, em concreto. Apenas é referido que “há publicações nas redes” que a partir das declarações da diretora da Pfizer concluem que “isso comprova que a farmacêutica mentiu sobre os ensaios clínicos da vacina”.
Portanto, neste caso, será numa alegada “alegação” que esta “verificação de factos” se terá centrado e, neste caso, desmentido.
Ideias finais
É estranho que um artigo que se deveria cingir a factos para os comprovar ou desmentir, tenha tamanha falta de rigor e transparência. Levantam-se, por isso, várias questões.
Por que razão “o facto” que se pretende desmentir não está bem identificado?
Por que motivo é desmentido um título que não é suportado por nenhuma citação em concreto?
Por que razão se desmente, com grande destaque, uma afirmação verdadeira?
Porque é que numa “verificação” sobre um “facto” concreto, se misturam outro temas e se fazem ataques pessoais?
Por que motivo se afirma genericamente que uma empresa privada “não mentiu” sobre um tema, quando não tem se dados que o comprovem?
Como é possível tanta imprecisão e falta de transparência num tipo de artigo que deveria ser, pela sua natureza, o mais rigoroso e objetivo possível?