Quem não sabe história está condenada a repeti-la. A história de hoje procura apresentar uma narrativa que me surpreendeu em 2021. Por altura do segundo confinamento, um amigo partilhou um livro extraordinário de Soshana Zuboff, intitulado A Era do Capitalismo da Vigilância, A Disputa por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder. Andamos tão ensimesmados com a pressão do quotidiano que, por vezes, submersos na especialização do trabalho, nas funções familiares e bombardeados por vagas de estímulos a toda a hora, perdemos a noção do oceano em que navegamos e, às vezes, perdemos até a orientação. Por tal motivo faço-lhe uma pergunta simples: «Quem programa o seu futuro?». A questão é muito mais pertinente do que o leitor ou a leitora possam pensar. Vejamos como e por que razão.
A surpresa que mencionei atrás é a quarta revolução industrial na «era do capitalismo da vigilância». Mas o que é isso? Deve lembrar-se que aprendeu na escola a evolução do capitalismo contemporâneo e, aí, no âmbito da disciplina de História, estudou o capitalismo agrícola, depois o capitalismo industrial e, finalmente, o capitalismo financeiro. Vê como se recorda? Assumo que se possa ter interessado minimamente pelos factos que ia aprendendo. E isto é o mínimo que posso dizer sobre capitalismo, numa espécie de friso cronológico muito resumido, porque não é relevante neste momento dizer que houve outras experiências de capitalismo (como o capitalismo monárquico de Estado, ou o capitalismo de apropriação, de exploração…). Enfim, um capitalismo de geometria variável, conforme a época, as identidades e os regimes envolvendo a dupla «explorador/explorado».
A razão da conversa de hoje é a seguinte. No século XX o capitalismo desenvolveu-se. Teve crises, e as crises geraram guerras. Depois, com o propósito de ultrapassar essas crises, inventou-se a «obsolescência programada» e, assim, de uma forma muito prática, acabou por ter de comprar vários frigoríficos depois de ter casa, já que nenhum deles durou mais de dez anos (e talvez com muita sorte!). Posteriormente entrámos numa nova era – a era da sociedade em rede e da economia da informação, enquanto assistíamos à revolução computacional. E depois …. Ora bem, entrámos na tal fase referida no parágrafo inicial – a «era do capitalismo da vigilância». O que é isso, deve estar a pensar? Sobre – SHOSHANA ZUBOFF
Explicar tudo num artigo é algo complicado. Prefiro contar várias histórias sobre cada um dos aspetos desta nova era do novo anormal. E a história de hoje relaciona o poder da palavra, a sua transformação em declarações que legitimam uma nova realidade. Para concluirmos todos juntos, uma vez mais, que a história se repete. E mantenho uma secreta esperança, a esperança de que dará uma gargalhada quando chegar ao fim desta leitura. Ficará certamente mais rico quando compreender a dimensão do que vivemos hoje e, parafraseando Shoshana Zuboff, como o senhor, a sua vizinha, o cão, o gato, eu e todos sem exceção (exceto alguns) somos objeto de uma operação secreta relativamente à extração de dados privados, ou como há um véu de silêncio sobre um golpe de que ninguém quer falar. É engraçado, não é verdade? O que seria se esta autora, socióloga, não tivesse construído um percurso profissional na universidade de Harvard? Mas vamos andando e vendo como o enredo desta economia «da vigilância» tem sido construído porque, os temas difíceis são o motor do jornal.
A «conquista por declaração»: a imposição de factos ao mundo social
A história conta-nos várias histórias. Todos ouvimos falar de Cristóvão Colombo e da chegada às «Índias Ocidentais». Mas se calhar já não terá ouvido falar tanto de Bartolomeu de Las Casas, frade dominicano, teólogo e jurista espanhol, oriundo de Sevilha (1484 – 1566). Bispo da cidade mexicana Chiapas durante o período da conquista espanhola da América, foi também um defensor dos indígenas e denunciou os moldes da «conquista por declaração».
O que é isso? «Conquista por declaração»? Não sabe? Mas é simples, demasiado simples, aliás. E está à vista de todos, só que nós, ou já nos esquecemos (eu inclusive) ou não estudámos história como devia ser.
Ora uma declaração, segundo o filósofo da linguagem John Searle, tem um poder incomensurável em dois aspetos; primeiro, na medida em que constrói uma nova realidade; segundo, na medida em que visa o convencimento de terceiros a acreditar e a concordar com essa nova realidade. Então, qual a relação de tudo isto com a história e a atualidade?
Pois bem, a história e a atualidade são dois territórios alvo do mesmo tipo de conquista – a «conquista por declaração». Antes, nos anos de quinhentos, os conquistadores espanhóis liam um «obscuro e incompreensível» Édito Monárquico aos índios, e declaravam a imposição de uma nova realidade – os índios tinham de obedecer ao rei espanhol e ser seus vassalos. Pronto, estava tudo dito. Se alguém regateasse ou ousasse manifestar a menor dúvida o castigo era certo e sangrento.
Uns séculos depois, no final do século XX, os novos conquistadores fundadores da Google, também anunciavam seis «obscuras e incompreensíveis declarações críticas» (acordos de utilização) ao mundo, e declaravam a imposição de uma nova realidade – os utilizadores da Google tinham de reconhecer a legitimidade e a inevitabilidade da concentração de conhecimento e de poder da plataforma. De novo, estava tudo dito. Nem valia a pena pedir autorização a algum cliente para recolher os dados, nem valia a pena impedir a evolução das plataformas. A modernização digital tinha vindo, visto e vencido (veni vidi vinci).
Em suma, o padrão de comportamento repete-se com um intervalo de quinhentos anos. Espanhóis e fundadores da Google, despachado o dever de anunciar a declaração e o «dever de informar» os indígenas e os cidadãos do mundo, respetivamente, e o caminho para a «pilhagem e a escravatura» fica livre. Las Casas bem anunciara, constrangido, a inevitabilidade do édito; e Eric Schmidt «pedira que confiássemos nas declarações da Google.». Da conquista quinhentista saíra uma nova ordem internacional, a primeira globalização. Desta conquista em finais do século XX, eram também lançadas as bases para uma nova ordem mundial, muito mais complexa. E que só dá dores de cabeça!
Vitórias declarativas, conquistas e expropriação: o produto somos nós, sabia?
Dito de outro modo, por um lado, Soshana ensina-nos a identificar a semelhança constrangedora entre estas duas situações de conquista; por outro lado, compreendemos que o poder da declaração tem tanto valor que se pode conquistar através dela, em qualquer lugar e em qualquer tempo (e hoje, estará a pensar?).
Se assim é, cabe então identificar quais são essas seis declarações para compreendermos a natureza da nova conquista do século XX.. Basicamente, a ideia geral resumida por Soshana Zuboff, em 2019 e no que dizia respeito à Google, foi a seguinte: declarava-se que esta empresa reivindicava a recolha (gratuita e sem contrapartidas), a propriedade e a transformação de toda a experiência humana, a nova matéria-prima; também ficava declarado que a empresa tinha direito ao novo conhecimento adquirido a partir dos dados recolhidos, assim como ao uso que lhe quisesse dar; e, por fim, declarava-se que a Google tinha o direito de manter as condições que regulavam todo este processo.
É certo que já em 2013 a autora tinha alertado para a forma como se concebia o cidadão, um «indivíduo-mero- fornecedor-de-dados», enquanto se afirmava uma nova lógica social, a lógica da vigilância. Aliás, apenas um ano depois, o escândalo da Cambridge Analytics entre 2014 e 2018 deu o mote para a produção de um documentário transmitido na Netflix em 2019. Dados! Dados! Dados!
Finalmente, os factos da história presente sustentam duas conclusões gerais: a matéria-prima é o(a) senhor(a) leitor(a); e este «capitalismo da vigilância» repete o padrão do pecado original da expropriação de dados. Mas, expropriação? Como e de quê? Pois, quando Shoshana Zuboff fala deste tipo de roubo refere-se aos nossos dados. Sim, na realidade os nossos dados constituem a nova matéria-prima desta nova economia inaugurada em meados da década de noventa do século passado. Uma economia com um novo mercado em ascensão – o «mercado de futuros comportamentais». A título de exemplo, a autora referia em 2019 os seguintes números: o «capitalismo de vigilância», que até as nossas casas controla, representava em 2016 um mercado de 7,5 mil milhões de dólares, em 2017 já constituía um mercado de 14,3 mil milhões de dólares «e relativos a dispositivos domésticos», e previa-se para 2021 um valor de 101 mil milhões de dólares.».
Como tudo isto pode acontecer: o novo produto somos nós
Depois desta história, se ainda não ficou preocupado, continue a ler até ao fim. Pode ser que fique com uma ideia mais nítida acerca dos desafios que enfrentamos: o conformismo ao grupo, aceitando-se todas as declarações que nos queiram impor para o «bem comum».
Vimos como a conquista espanhola usou a palavra para expropriar, apoiada na ponta do bacamarte. Pode estar a pensar que a realidade em 2023 já não é assim, pelo menos para a parte do mundo ocidental. Mas aí é que nos enganámos todos, pois os últimos três anos foram férteis em «experiências fofinhas», sobretudo aquelas ocorridas no Canadá, na Austrália e nos antípodas, na Nova Zelândia, todas ao som de uma sinfonia de traulitadas (atenção que as traulitadas serão o enredo de uma outra história), acompanhada à guitarrada com a «novimúsica» do «vai ficar tudo bem»!
Para já, fica a nossa história, a de todos nós, assinada por vezes com ignorância atrevida e bem-disposta. Vá lá, o que lá vai lá vai, pode estar a pensar. Mas não. Tal como Bill Rice, coloco uma questão inquieta: «Como é que tudo isto aconteceu?»?
Aconteceu e acontecerá sempre que se verifiquem certas condições. Talvez seja esta a maior função do que escrevo. Proporcionar instrumentos de análise, outras leituras e partilhar perplexidades. Porque, como tive a ocasião de escrever na história anterior, e ao contrário do que a generalidade das pessoas possa pensar, a ciência faz-se questionando. Aliás, reformulando, e ao estilo de Thomas Kuhn, as declarações são as possíveis, contingentes a determinado momento, e por consenso, e obsoletas quando não conseguem explicar os problemas.
Solomon Asch explica: aconteceu porque nos submetemos à pressão do grupo
Os factos da II Guerra Mundial geraram grande perplexidade e motivaram o desenho de experiências que permitissem uma melhor compreensão do comportamento humano. Solomon Asch entusiasmou-se com o tema do comportamento humano face à pressão do grupo.
Solomon Eliot Asch (1907- 1996) psicólogo, polaco de nascimento, emigrou para os Estados Unidos da América em 1920. Mas foi na década de cinquenta desse século que desenvolveu um conjunto de experiências que ficaram para a história da Psicologia, pois provou que a pressão grupal tem uma grande força no processo de tomada de decisão do indivíduo.
Várias experiências tiveram como finalidade compreender o limite do conformismo ao grupo, mesmo quando o indivíduo tinha a consciência de que a opinião do grupo era incorreta. Esperava-se que a maioria das pessoas não anuísse à posição do grupo, caso a resposta fosse claramente errada.
E os resultados foram surpreendentes. Mais de trinta por cento dos participantes manifestaram conformidade com a escolha do grupo, mesmo sendo a errada. Mais de setenta e cinco por cento dos participantes cederam pelo menos uma vez à pressão do grupo; e apenas cinco por cento cedeu sempre à pressão grupal.
Já relativamente aos participantes que nunca cederam em qualquer situação, entre vinte e cinco por cento assumiram sempre autonomia face ao grupo, em diversas experiências, e optaram pela resposta correta. E sempre que a resposta a um estímulo era dada por escrito, aumentava a resistência individual à pressão do grupo.
Quer isto dizer que uma significativa parte de uma população (pelo menos no mundo ocidental) cede, pelo menos uma vez, à pressão do grupo quando decide, e mesmo sabendo que a decisão do grupo está errada. Sabia?
Este tipo de conformismo, de natureza comportamental pôde encontrar-se nos recentes desafios vividos à escala mundial. Pense, reflita e, sobretudo, questione. E não julgue porque de boas intenções está o inferno cheio, como diz a sabedoria popular. Em boa verdade, como diz Christine Black, declarações imprecisas podem matar, e os exemplos históricos da II Guerra Mundial e posteriores devem fornecer as lições necessárias e suficientes para a atualidade.
A amabilidade da viagem e a prospetiva histórica: a ética do cuidado com o outro
O legado totalitário nazi foi denunciado por muitos que acabaram por ter igual destino a todos quantos eram não conformes à «narrativa oficial» do poder político. Um dos testemunhos mais conhecidos foi Martin Niemoller (1892-1984). Pastor alemão, foi também teólogo e escritor, tendo ficado conhecido pela oposição ao nazismo, o que lhe valeu a prisão em campos de concentração. Um dos seus poemas mais conhecido ficou e aqui partilho hoje, com o(a) leitor(a) – «E Não sobrou Ninguém» : «Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. /Como não sou judeu, não me incomodei. / No dia seguinte, vieram e levaram/ meu outro vizinho que era comunista. /Como não sou comunista, não me incomodei./ No terceiro dia vieram/ e levaram meu vizinho católico./ Como não sou católico, não me incomodei./ No quarto dia, vieram e me levaram;/ já não havia mais ninguém para reclamar…
A história do futuro, aquela que nos interessa imaginar e antever, está parcialmente contida na história do passado e na do presente. A paleta de respostas humanas aos desafios tem sido estudada. Hoje referimos como é importante compreender o comportamento individual face à pressão do grupo e à experiência de Solomon Asch. Outras histórias virão para as interpretarmos à luz de Solomon Asch. Mas na próxima história analisaremos o conformismo à autoridade e as experiências de Milgram.
Em jeito de despedida e de lhe dizer adeus, tudo corre como sempre correu. Observe à sua volta e verá que estamos no caminho de uma nova revolução em curso, e Davos é apenas uma distração, porque, para citar Shoshana Zuboff, estamos a viver «Uma Nova Ordem Económica que se apropria da experiência humana e a usa de forma encoberta, como matéria-prima em práticas comerciais de extração, previsão e venda.».
Comecei este artigo com a pergunta «Quem programa o seu futuro?». E agora acrescento outras perguntas. Qual a percentagem da escolha do grupo na sua tomada de decisão? Que grupos? Que dados partilha? Qual o seu limite na partilha? Quem decide? É o(a) senhor(a)?
Termino hoje esta história com a certa Fé no discernimento humano, e com as palavras de FernandoPessoa: «Vivemos todos neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros, uma amabilidade de viagem.» (Fernando pessoa, O Livro do Desassossego). Nunca o homem teve tanto potencial para fazer o bem no mundo, como também nunca teve tamanho potencial para destruir a civilização humana. Quem não sabe história está condenada a repeti-la.
Mónica Rodrigues
Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).