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O «Inferno», Milgram e a obediência ao chefe

Quem não sabe história está condenada a repeti-la. Se Dante regressasse dos mortos não resistiria a perguntar-lhe «Olhe lá, quer ir parar ao inferno?». É que, agora digo eu, é muito mau. É tão mau, tão mau que aquele que lá vai parar congela eternamente e, ainda por cima, tem de aturar Satanás já que fica lá a sua residência. Bem, mas isto não é novidade para o cidadão português porque nós também temos o nosso Dante à portuguesa. Quem não se recorda do Auto da Barca do Inferno, magistralmente escrito por Gil Vicente? Já vou explicar por que razão hoje começo com Dante.

A Divina Comédia e o Inferno

Lembrei-me de Dante por duas razões. Primeiro porque, assim que vi o início da cultura de cancelamento e os autos-de-fé dos livros universais, tive a feliz ideia de fazer exatamente o contrário (antes que fosse sujeito às fogueiras). Às vezes é assim, ficou este permanente defeito de pensar livremente e pela minha própria cabeça, fruto de uma educação aprimorada, em casa e na escola. Diziam-me sempre que, na dúvida, era melhor ouvi-la. E, desde então, é assim que tenho feito seguindo, religiosamente, as prédicas de Pai, Mãe, Professores e Mentores de Vida. Segundo porque o estudo da guerra obrigou-me a entrar pelas trincheiras da psicologia para compreender a maldade humana e como é possível obedecer a um chefe maligno. E Stanley Milgram explicou. Mas já lá vamos.

Agora só me falta dizer que Dante é daqueles autores que me ficou na alma. Aliás, desconfio que quanto mais leio Dante mais vou descobrindo o mistério da Vida, e estou a falar a sério. Não sei se sabe mas este mago renascentista deu-se ao trabalho de escrever uma obra – A Divina Comédia. Creio que terá descoberto muitos mistérios, mas, como sabe, na Idade Média não havia liberdade de pensamento como hoje. Nunca! Era exatamente o contrário, com a promessa de fogueira caso ousasse. Por isso, a verdade-não-oficial tinha sempre de ser enroupada por inúmeros véus de desinformação. Tal não é o caso de hoje, bem sei, até porque algumas confusões que terão acontecido já foram esclarecidas com esse salvador dos tempos modernos – Elon Musk.

Vou ser breve: Dante escreveu a tal obra. E, veja só, a primeira parte designou-a como «O Inferno» (as outras duas são «O Purgatório» e o «O Paraíso»). Aaahhh! Esboçou um sorriso, espero, como eu aliás! Sorrio por Gil Vicente. No seu livro, Dante inicia uma viagem guiada por Virgílio, o poeta autor da Eneida. E o inferno é composto por nove círculos, três vales, dez fossos e quatro esferas. Vamos diretamente para o nono e último círculo que é aquele que hoje nos interessa, pois é ali que estão os piores dos homens – os traidores. A traição é, pois, o maior dos pecados humanos devendo, assim, sofrer a máxima punição. Voltaremos a ela porque agora vamos falar desse inferno que existe na terra e que são os traidores.

Ora, é aqui que tudo começa a aquecer. Como terá já certamente ouvido alguém comentar, «O inferno são os outros.». Ora, para Dante, a traição é o crime dos crimes porque é associada à capacidade de planear e executar um crime, não contra desconhecidos, mas contra alguém que nele confia. Está a ver? Confiamos nos chefes, em qualquer lugar. Pois às vezes, fica tudo muito confuso. Veja-se o caso de Hitler. Confiaram tanto nele que, alguns, terminaram num lugar que todos aprendemos na História. Quem não conhece o Holocausto? Os números não importam, pois bastava a traição a um ser humano. Mas não, Hitler não se conformou com um pequeno número e o resultado foi a tragédia que todos temos de conhecer. Esta tamanha maldade intrigou Stanley Milgram.

Milgram e a obediência

Professor na Universidade de Yale, e estudante de Solomon Asch, Milgram interessou-se por compreender a obediência ao chefe e as razões que levariam o ser humano a disponibilizar-se para, obedecendo a ordens, infligir mal aos seus congéneres.

Apesar das limitações éticas dos estudos realizados, e considerando a obediência como o resultado da influência que uma figura de autoridade exerce, através de uma ordem expressa e direta, sobre um indivíduo, este estudo fez escola e continua atual. De salientar que o «obediente» não só segue ordens diretas de alguém cujo elevado estatuto é percebido, mas também as segue na medida em que quer ser socialmente aceite. Esta obediência terá uma contraparte que é, segundo o que é socialmente aceite, garantir a paz e a harmonia.

Três ideias podem, desde já, ser retidas: não só esta vontade de obediência pode ser levada muito mais longe, provocando sofrimento; como ela constitui matéria de inúmeras histórias dentro da História que todos bem conhecemos e aprendidas na escola; mas mais ainda, a intensidade desta vontade de obediência é contingente ao grau de individualismo ou de coletivismo social.

Os estudos iniciais foram desenhados por Milgram para observar e estudar os efeitos da punição na capacidade de aprendizagem. Os indivíduos, voluntários, desempenhavam o papel de professor ou de estudante. Na realidade, o papel de estudante era desempenhado por atores previamente informados sobre a natureza da experiência.

E a experiência era simples. Em divisões separadas, os professores deviam inquirir os estudantes sobre um dado conteúdo. Mas em caso de erro, o «professor» era obrigado a aplicar uma punição – um choque elétrico cuja intensidade ia aumentando à medida que o número de respostas erradas aumentava também, e de acordo com o guião previamente entregue a professores. Atenção, não há margem para perplexidade porque os choques não ocorriam na realidade. Era tudo teatro pois, exceto os indivíduos a exercerem o papel de professores, todos conheciam a experiência.

Na realidade, o que se pretendia verdadeiramente compreender era o grau de obediência à autoridade do chefe. Na realidade, os indivíduos que representaram o papel de professor obedeceram, na maioria, às instruções fornecidas por Stanley Milgran, um reputado professor de Yale.

Milgram repetiu esta experiência posteriormente, em variadas situações, com desenhos diferentes. Mas todas elas produziram um resultado principal – a tendência de uma maioria significativa (mais de setenta por cento) para obedecer à autoridade percecionada. Claro está que esta generalização merecia, e merecerá em próximas análises, a apresentação das devidas limitações.

Mas, para já, fica a ideia mais geral, e fica muito bem. E sabe a razão? Porque é ela que nos permite compreender como foi possível os cidadãos (civis e militares) alemães, outros franceses, e muitos outros ainda, tão europeus ontem como hoje, mais próximos ou mais distantes dos «guetos» e dos campos de concentração, terem obedecido a leis legais tão infames como foram as do período anterior e durante a segunda guerra mundial. E, mais ainda, porque é esta ideia que nos permite antever que, em situações semelhantes, legalmente sustentadas, mas talvez ilegítimas porque contra a natureza humana. Por motivos ideológicos, religiosos, de lucro ou outros, o mesmo guião aparece, como que por magia, sabe-se lá movimentado por quem, e PUFF… transforma-se o cidadão numa marioneta sem sabermos ler nem escrever!

Muito atentos deveremos estar, para que a democracia liberal e a liberdade sejam dois dos legados mais preciosos para as próximas gerações, e para que continue a ser considerada como a «joia da nossa coroa».

Os loucos anos 30, a «Violação da Mente» e a Psicologia do Totalitarismo

Na verdade, o tema mais geral da submissão interessara Joost Merloo desde 1933 e, na década de sessenta, publicara um livro que todo o cidadão deve ler, «A Violação da Mente. A Psicologia do Controlo do Pensamento, o Menticídio e a Lavagem Cerebral». Interessou-se por todos os domínios da vida humana, e da nossa cultura, que pudessem ser utilizados no uso de métodos de pressão, de lavagem cerebral, tortura mental e coerção. Aliás, o seu estudo é considerado, ainda hoje, como uma das melhores armas de análise sistemática relativamente às estratégias totalitárias de psicologia de massas, conducentes, na sua feliz expressão, a uma «violação da mente humana». Nesta aceção, a «Guerra Fria» teria sido um período de terror mental provocado por um nevoeiro linguístico (semântico), usado para gerar a submissão das massas. Nesta nebulosa semântica, onde ficava o «traidor» e o que significava a «lealdade»? Veja, como o tema da traição atraiu Dante e Merloo …

Neste seu livro, os temas estudados têm, ainda hoje, um interesse crescente. São estruturalmente atuais e fundamentais para se compreender o fenómeno da coerção e da propaganda de massas. Refiro apenas alguns dos mais importantes, tais como: totalitarismo e ditadura; contágio mental e deceção das massas; o medo como instrumento do terror; a intrusão do pensamento totalitário; a submissão à medicamentação; a coerção obstrutiva; como a tecnologia invade as nossas mentes; a procura de defesas; a liberdade enquanto suporte mental; a educação para a disciplina e uma moral elevada.

Mais recentemente um outro psicólogo professor universitário acaba de publicar a sua análise sobre a realidade que vivemos nos últimos anos. Matias Desmet, em «A Psicologia do Totalitarismo», demonstra como o totalitarismo não é uma coincidência. Porque não se forma a partir do vazio, este autor mostra como a história nos permitiu reconstituir uma espécie de guião do totalitarismo, que podemos prever, a partir do estudo de experiências da história recente como a Revolução Francesa, o totalitarismo nazi, o totalitarismo soviético e o totalitarismo maoista. Eu acrescento sempre a experiência de Pol Pot, e relembro sempre a exposição impiedosa das crianças à vigilância da família. Eventos recentes, em Inglaterra e durante um dos confinamentos, recordaram-me Hitler, Estaline, Mao ou Pol Pot, naquela particular ocasião em que se pediu às crianças para relatarem a festa de Natal familiar.

«Nascido para Matar»? Kubrik e Norman Mailer

Em suma, todo o processo de desumanização conduz o homem a situações irreparáveis. Creia, não há reparação possível mesmo com um Tribunal de Nuremberga. Não há. Na dúvida, é sempre melhor evitar. Recordemos Kubrik ao expor a tragédia que é a desumanização em «Nascido Para Matar». Este realizador mágico encontrou o narrador perfeito – pela ótica de um marine, mostrou o efeito da desumanização na guerra do Vietname e os horrores diários vividos, no campo de treino e nos combates de rua sangrentos em Hué.

Já anteriormente, o romance «Os Nus e os Mortos» de Norman Mailer tinha sido apontado como o melhor romance sobre a guerra, a desumanização e o homem. Transposto para a sétima arte por Raoul Walsh em 1986, era um dos filmes preferidos do meu Pai, oficial para-quedista. Tive a sorte de ver este filme com ele e ouvir a sua análise. Ele também, quando jovem, oficial tinha lido o livro. E a história trágica da desumanização ali estava, desnuda e fria, como ele ia comentando. Neste romance-filme, jovens soldados norte-americanos eram levados até ao limite da resistência humana em infindáveis combates na ilha de Anopopei, no Pacífico. Restando-lhes apenas uma vontade indómita de sobrevivência, medo e esperança.

E é com este exemplo, de firme e inabalável esperança – tal como aqueles e muitos outros militares -, que termino por hoje. Como estas coisas aconteceram no passado, importava compreendê-las, a fundo, para que nunca mais se repitam. Outrora, pensava-se que, com a informação disponível e a democratização do ensino, a guerra seria erguida ao altar do anátema. Mas não, ainda não é o tempo …

Com Dante iniciei e com Dante termino. Às vezes, podemos pensar que a Vida se assemelha a um inferno. Na Divina Comedia, o portal do inferno não tinha cadeados, portas, portinhas ou portões. Havia um arco no qual estava escrito um aviso sobre a sentença final – era impossível recuar e era possível continuar, tudo parava ali, e o indivíduo deveria despojar-se de toda a esperança que lhe restasse pois nunca veria o céu. Livre-arbítrio? Só na Terra, onde tudo era possível, e aí cada um decidia se queria ir para o céu ou para o inferno.

Em boa verdade, e como vemos na História da Humanidade, o inferno terá descido inúmeras vezes à Terra. Aliás, ainda hoje, a guerra é uma forma desse inferno operacionalizado. Diria mais, a guerra e todas as formas de ditadura onde o mal é perseguido. Mas, no final, tenhamos ou não vindo das estrelas, ainda há margem para confiarmos no nosso dna e na bondade, que também é humana. Porque a nossa vocação é o amor, digam o que disserem. Nunca obedeça a ordens ilegítimas e contra a Humanidade, mesmo que sejam legais. Quem não sabe história está condenada a repeti-la

Mónica Rodrigues

Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).

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