Quem não conhece a história está condenado a repeti-la. Depois de uma breve caminhada pelos limites da «declaração», depois de compreendermos o conformismo ao grupo e a obediência ao chefe, chegamos à cereja no topo do bolo com o «Efeito Lúcifer».
Reza a lenda cristã que Lúcifer até era um bom homem, perdão, era um bom anjo. Só que não resistiu à tentação do mal, tornou-se malévolo e foi banido pelas suas ações. Tal como Solomon Ash ou Stanley Milgram, Philip Zimbardo procurou compreender o fenómeno do totalitarismo e a ascensão do «mal» que lhe está associado. E descobriu que boas pessoas podem transformar-se radicalmente em pequenos diabretes. Aliás, fruto das suas investigações, este psicólogo social encontrou uma associação entre obediência à «autoridade» e as «más ações». O que me faz lembrar aquela canção de Eminem, «Evil deeds» (ou Más Ações) que começa assim – «Lord, please forgive for what I do / For I know not what I’ve done/ (…).». Conhece?
Esta crença no perdão acarreta uma escatologia de natureza mais judaico-cristã e menos calvinista, hindu ou talmúdica. São temas que só muito recentemente despertaram a minha curiosidade a partir, talvez, da invasão da Ucrânia. E sim, a crença no perdão é, de algum modo, redentora e libertadora – depois de praticado o crime vem o exame de consciência e a busca do perdão. Mas é sempre assim?
Não, nem sempre… é bem assim. E se calhar, na maior parte das ocasiões, nem é nada assim. Seja ou não, é impossível esquecer ou perdoar atos que assassinam os Direitos Humanos. Tais ações deverão ser, posteriormente, reguladas em sede adequada como os tribunais. E porque não basta pedir perdão, é de capital importância tentar identificar essa linha que medeia o bem e o mal.
Contava Zimbardo que «A linha entre o bem e o mal é permeável e quase todos podem ser induzidos a ultrapassá-la quando pressionado por forças situacionais.». Ora, na verdade, esta linha nem está longe nem só aparece de vez em quando. Pelo contrário, acompanha-nos quotidianamente sempre que tomamos decisões. E sim, para responder à pergunta que já deve estar a imaginar, esta linha é frágil, tão ténue que se pode romper por três dinheiros, os tais que ficaram eternamente associados à traição!
Uma perceção situacional e sistémica: somos todos Lúcifer
Philip Zimbardo é um dos mais reconhecidos psicólogos norte-americanos, e um professor emérito da Universidade de Stanford. Ficou conhecido em 1971 com a célebre Experiência de Stanford. Pese embora algumas críticas posteriores, quer de natureza ética quer de natureza científica, esta experiência foi desenhada num cenário idealizado (uma prisão), e com a participação de voluntários que desempenharam os papéis de guarda e de prisioneiro. Não me vou alongar sobre a experiência. Apenas referirei algumas lições. Está preparado?
Então, primeiro, nem todos somos bonzinhos. O mal e o bem fazem parte deste mundo (de outros, não sei, nunca por lá andei …). Pois é, lamento dececioná-lo. Mas há mais. Continuemos. Segundo, e como referi acima, a linha entre o bem e o mal é mesmo muito ténue. Terceira deceção. Prepare-se, aqui vai: os anjos e os demónios podem trocar de papel. Devo acrescentar, já agora, para sermos precisos, que o «mal» consiste em todo aquele comportamento intencionalmente organizado para infligir abuso, humilhação, rebaixamento, desumanização, em suma, todo o ato que concorre para a destruição do outro. Constituem exemplos do «mal», na aceção de Zimbardo, o genocídio dos Tutsis no Ruanda em inícios dos anos noventa do século passado, e perpetrado pelos Hutus. Ou o genocídio de civis chineses, durante a segunda guerra mundial, e levado a cabo por japoneses.
Então, submetidos a certas situações ou estruturas sociais, a nossa personalidade não é suficientemente consistente. Ela muda, dependendo das circunstâncias. Voltaremos, noutra oportunidade, a esta investigação.
Variações contemporâneas sobre o tema do «mal»: uma sociedade em murmúrio
Hoje saberá, certamente, como a banalidade do mal foi também amplamente analisada por Hannah Arendt e por Ayn Rand. Sabemos, e nunca esqueceremos, como milhões de indivíduos sobreviveram à política de terror imposta por Estaline, dissidentes e não dissidentes, mais ou menos comprometidos com valores como a liberdade e o individualismo. Todos foram despachados para o exílio em terras remotas, ou para campos de trabalho e, em extremo, foram sumariamente executados.
E alguns destes factos foram recolhidos e sistematizados pelo historiador Orlando Figes. Na sua obra, The Wisperers, este especialista expõe histórias exemplares do tempo da URSS, histórias de indivíduos que se conformaram com as leis, internalizaram os valores do sistema soviético e obedeceram ao chefe. Indivíduos com rosto e nome, de carne e osso, em coletivo desespero e carregando o fardo da fome, da perseguição e da mentira, quebrados espiritual e psicologicamente, náufragos sociais em luta pela sobrevivência. Um tipo exuberante de extermínio, o extermínio através do trabalho. Mas foram três traços particulares do regime estalinista luciferiano que me vieram à memória a partir de dezembro de 2020 e à medida que ia tendo notícias sobre a gestão política dos acontecimentos na China, no Canadá, na Nova Zelândia e na Austrália: por um lado, a política de terror; por outro, a política de silenciamento (operacionalizada através de uma rede de «fact-checkers» conluiados); e, por outro lado ainda, a «vigilância mútua». O que gerou em mim alguma perplexidade por duas ordens de razão: por todos os países citados serem Estados de Direito, excetuando a China; e por todos aqueles traços, em circunstâncias históricas anteriores, terem sempre conduzido as sociedades à desumanização inteligente e sádica do «outro».
No futuro não há dúvidas: abaixo o murmúrio e viva a liberdade
Não duvide. Tal como Ronald Reagan terá um dia afirmado, basta uma geração para o património da liberdade e dos direitos humanos sofrer uma erosão sem retorno. Penso que nos encontramos no patamar de um novo reinício civilizacional. Os «resets» da história são mais que muitos. E, para me exprimir francamente, considerando apenas o século XX, o mundo foi «resetado» em 1918 e depois em 1945. A nova ordem de Bretton Woods foi sofrendo alterações e, em meados da década de noventa no século passado, a Organização Mundial do Comércio iniciada um outro regime. Esquecemo-nos frequentemente do que vai acontecendo. Talvez por não termos o acesso completo ao projeto planeado por entidades superiores.
E, em vésperas de comemorarmos os cinquenta anos de liberdade inaugurada em 1974, esperava mais. Quase após cinquenta anos de democratização do ensino, esperava mais curiosidade, pensamento crítico e capacidade dialética. Pese embora o avanço na escolarização, observo a emersão de um padrão de comportamentos muito antigo, e que espelha a tal ação malévola que fez Lúcifer tombar. Tombou Eva e tombou Adão, assim como Caim e Abel. E hoje continuam a cair!
Então, aguardemos pela nova teologia ecuménica, com novo templo inaugurado em setembro do ano transato. Aguardemos pelo novo clero, doutrina e eclésia. Para nos perdoarmos, mesmo que não saibamos a razão, e ao som da balada dos Eminem quando canta «But the curtain just don’t close for me / This ain’t how fame was supposed to be / Where’s the switch I can just turn off and on? This ain’t what I chose to be / So please, God, give me the strength to have what it takes to carry on / ‘Til I pass 50 back the baton, the camera’s on, my soul is gone». Consegue ouvir? Quem não conhece a história está condenado a repeti-la.
Mónica Rodrigues
Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).