«Quem não sabe história está condenado a repeti-la.». Certamente que já se familiarizou com esta máxima de Edmund Burke … Nunca, como hoje, se imaginou tanto e se mentiu tanto. Aliás, como terá comentado um prémio nobel um século depois de Karl Marx, «O tempo das verdades plurais acabou. Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto. Vivemos na mentira todos os dias.» (se estiver a pensar numa passerelle de hipotéticos Nobel esqueça, hoje não vou desvendar quem foi o autor …. no próximo artigo já desvendo o mistério). E, sem que a mudança fosse percetível e objetiva, aquela pluralidade foi cedendo o lugar à chamada «pós-verdade» enquanto, simultaneamente, a mentira aumentava geometricamente proporcional ao desenvolvimento tecnológico.
Assim sendo, considerando um certo estado de cegueira em que vivemos, é pertinente relembrar como um certo pessimismo se instalou em organizações que avaliam o estado de saúde da democracia no mundo – a democracia estaria a regredir, em certos parâmetros, concluíam, nomeadamente quanto à liberdade de expressão.
Então, seremos nós meros «espetadores comprometidos» com o ocaso da democracia de matriz ocidental, e tal como a conhecemos no século XX, e seus liquidatários? Se recordarmos que, nem no espaço europeu ela constituiu uma regularidade ao longo do século XX, será possível imaginar que a democracia não passou de um mero «fresco colorido» da moral greco-romana, embora exuberantemente retratado como um Canaletto?
Reformulando para concretizar melhor, pode, este exercício incontrolável da imaginação e de mentira significar que a democracia, tal como a conhecemos no século passado, já não existe? Devemos concluir pelo declínio do Ocidente? Ou, devemos antes considerar o declínio do império anglo-saxónico? Porque, em boa razão e tal como Marx teria dito um dia, o capital não teria Pátria e Samarcanda poderá ser a candidata ideal ao estatuto de «centro» de uma nova ordem multipolar. Confesso que nem consultei oráculos nem líderes de vocação extraordinária. Também não calhou falar com o Homer Simpson. E também confesso que não tenho nenhuma carta na manga, embora já me tenha passado pela ideia compreender melhor alguns jogos de cartas futuristas que por aí circulam … Quem sabe se não faço um curso de tarot geoestratégico (já fiz tantos, como comentam os amigos mais próximos, que já se devem estar a rir….) e me dedico à cartomancia geopolítica.
A democracia: acidente histórico ou democracia totalitária?
Para tentar responder a estas perguntas inquietas destes nossos tempos, recordo como Jean-François Revel, em inícios dos anos oitenta do século passado, considerou uma hipótese arrojada na altura: a hipótese de se considerar a democracia como um «acidente na história» dada a evolução das forças conluiadas no seu ocaso.
Na década posterior, Matthieu Baumier reforçou aquela hipótese quando analisou uma nova tendência que parecia desenhar-se no horizonte: o nascimento daquilo que ele batizou como «democracia totalitária», já que lhe parecia que o Estado alargava a sua gestão a domínios que tradicionalmente não eram seu atributo. Na verdade, e inspirado pela queda do Muro de Berlim e pela derrocada das peças do dominó dos sovietes, o autor viu no pós comunismo o berço da pós-democracia – vendo nesta a substituição da democracia real pela democracia formal, na medida em que a lei não seria «tão» respeitada e a realidade seria ainda mais mediatizada e geradora de uma imagem do mundo mais afastada do real. Como a maioria do ser humano é conformista, veja o potencial à nossa frente já nos próximos meses relativamente, por exemplo, ao processo de revisão da Constituição Portuguesa. Sabia que estava em curso?
A democracia sob o signo da contradição
Ora, falar verdade a mentir é uma arte que requer pena e talento. Com mais ou menos democracia, o século XX, que mundializou a guerra e gerou dois «resets», foi também o século em que a vida humana mais se exprimiu sob o signo da contradição, tendo desaguado na «civilização da fantasia» – que é aquela em que hoje vivemos. Um exemplo de novos sonhos fantasiosos, levados à prática, é a cultura do cancelamento adjuvado por fanáticos e crentes. Veremos, já de seguida, como a atualidade pode refletir estas contradições.
Contradição porque colocou no pináculo a liberdade de pensamento e a liberdade de expressão, mas foi o berço do princípio contemporâneo do extermínio, quando inventou a fórmula totalitária moderna e institucionalizou o conformismo àquele princípio. Assim foi quando o homem, ressentido e neurótico, inaugurou o século XX com a mundialização da guerra e testou os limites da perversão humana – primeiro, com a experiência bolchevique, logo seguida pela nazi, e progressivamente melhorada com a imaginação chinesa e a vietnamita. Por exemplo, imaginou-se como seria possível convencer os cidadãos a transformarem-se em novos homens. Mas era necessário mudar muito, na opinião de alguns, ou, na opinião de outras mentes mais radicais, mudar tudo. Então foi ensaiada a prática da delação porque dá sempre muitos e rápidos resultados (como era sabido desde tempos imemoriais, como o exemplo de judas e como o exemplo das inquisições europeias, luteranas e romanas). Resultado, foi um fartote de denúncias, no país dos sovietes (sem o Tintim), no país do nazismo e no país dos maoistas: a mulher denunciou o marido mas o marido denunciou a mulher; o filho denunciou o pai mas o pai também denunciou o filho; o professor denunciou o aluno mas o aluno também denunciou o professor. Mais recentemente, apenas há três anos, por altura de um confinamento natalício, a imaginação humana criou um novo «mito urbano» no Reino Unido: ter-se-á espalhado um rumor segundo o qual, retomadas as aulas em janeiro e após a quadra natalícia, os professores deveriam perguntar aos alunos onde e com quem tinham passado aquelas festas. Teria sido verdade, poderá estar a perguntar? Ou teria sido mentira? Prefiro acreditar que foi imaginação a mais.
Contradição porque celebrou as virtudes da diversidade, mas obrigou ao conformismo quando abraçou a cultura do cancelamento. Assim foi quando se construiu uma nova ideologia que pregava novas virtudes identitárias e minoritárias, com a vocação de se construir o tal homem novo (já está a compreender, nesta altura, o padrão – é sempre aquela nova velha ideia do homem novo…). Por exemplo, reacenderam-se processos e fogueiras, desenharam-se novas declarações e novas «operações especiais», e redigiram-se tratados como se acenderam novas guerras. Mas, de novo, era necessário mudar muito, na opinião de alguns ou, na opinião de outros mais radicais, mudar tudo. Então foi ensaiada a prática de cancelamento. E cancelaram-se estátuas, personalidades vivas, e livros. Do cancelamento passou-se à queima de livros. O que é perigosíssimo porque, como um poeta terá dito um dia (e não há muito tempo), os povos começam a queimar livros e acabam a queimar pessoas. Mais recentemente, apenas há quatro anos, renovámos esta tradição dos autos-de-fé no Canadá, pelo menos. E hoje, já certamente ouviu falar das brigadas dos novos zelotas comprometidos com a tarefa de escrever, com nova linguagem, as histórias do Bond («shaken not stirred») ou as histórias de Miss Marple.
Concluindo, o processo é o seguinte. Começa-se por ignorar o real, depois imaginam-se hipóteses e, a seguir, estas são transformadas em verdades universais. O exemplo mais conhecido será a hipótese do bom selvagem rousseauniana. No estado natureza, o homem nasce livre e em igualdade com os seus semelhantes. A desigualdade chega com a propriedade. Portanto, como dizia alguém, não há «gordos» nem «lingrinhas», nem «coxos» ou «mancos», nem bonitos nem feios, nem inteligentes nem «burros» (como não imaginar na risota que este politicamente correto poderia suscitar a José Saramago ou a António Lobo Antunes???).
Nunca, como hoje, a imaginação conheceu o seu esplendor dado o poder amplificador da tecnologia. Mas não poderia terminar, desta vez, sem um pensamento de Nietzsche muito especial, tão adequado aos momentos em que vivemos, tão acertado e tão premonitório do que ainda haveremos de viver. Veja por si mesmo, «As águas da religião refluem e deixam atrás de si pântanos ou charcos; as nações voltam a opor-se umas às outras em fortes hostilidades e tentam destruir-se. As ciências, praticadas de forma desmesurada e com mais cega incúria, desfazem e dissolvem tudo o que era objeto de uma crença firme; as classes instruídas e os Estados civilizados são varridos por uma corrente de negócios magnificamente desdenhosos. Nunca um século foi tão secular, mais pobre de amor e bondade. Os meios intelectuais não passam de faróis ou abrigos no meio deste turbilhão de ambições concretas. De dia para dia, eles próprios se tornam mais instáveis, mais vazios de pensamento e de amor. Tudo está ao serviço da barbárie iminente, tudo, incluindo a arte e a ciência deste tempo.» (Nietzsche, considerações Extemporâneas, III, 4). Agora, deixo-lhe uma pergunta: quem é esta barbárie? Pois …. Já deve estar a compreender, não é verdade? Agora deixo ao seu critério a resposta, a não ser que conheça os jogos de cartas de geoestratégia ou tenha perguntado ao Homer. Quem não conhece a história está condenada a repeti-la.
Mónica Rodrigues
Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).