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“Liberdade ou Morte”, a nova heresia e «Quem pode aprender?»

«Quem não sabe história está condenado a repeti-la.». Abril é um mês revolucionário. Abril é o mês em que comemoramos a democracia, os direitos, as liberdades e as garantias do cidadão. Em abril comemoramos a liberdade de pensamento e a liberdade de expressão. Quase cinquenta anos após o 25 de abril de 1974, como celebramos hoje esta liberdade? Menos mal, mas muito longe do que alguma vez foi ousado sonhar. Vivemos hoje com mais consciência sobre a conjuntura de “poli-crises” globais e, talvez por isso mesmo, recordo as palavras de John Kenneth Galbraith quando afirma que “Só o reformador inocente ou o conservador obtuso podem imaginar que o Estado é um instrumento de mudança independente dos interesses e das aspirações que o constituem.”. Os desafios que temos vivido, com particular destaque para a última crise financeira a partir de 2008, colocam-nos apreensivos sobre valores como liberdade e democracia e a sua sustentação, pelo menos no âmbito europeu. Hoje é o tempo de falar sobre liberdade e sobre a educação para a liberdade.

Em boa verdade, e em vésperas de se concretizar a «sociedade mundial em rede», tal como Castells anunciara ao longo da última década no século passado, compreendemos que aquele sonho poderá corresponder, afinal, à visão transhumanista que nos é apresentada, uma visão única, redentora e inevitável. Primeiro, ela é única porque é o resultado da conjunção da melhor ciência, que, entretanto, terá ligado todas as mentes humanas digitalizadas (segundo dizem); segundo, ela é redentora, porque nos conduz à singularidade e, possivelmente, à imortalidade (segundo dizem); terceiro, ela também é inevitável porque, lamento dizer-lhe, não são permitidas outras visões. Pronto. Disse tudo. Bem, disse e não disse porque, se já está a pensar que existe em tudo isto um aspeto desconfortável de coletivismo e de monolitismo … Bingo! Ainda estamos a tempo, quer seja porque ainda não aconteceu, quer seja porque o leitor e a leitora não querem que isso venha a acontecer. E se ainda não aconteceu, pense comigo, é porque ainda há margem para que tal não venha a acontecer. E como, poderá estar já a pensar? Justamente, porque só a educação pode ser o caminho para travar a servidão e promover a emancipação. E é justamente aqui que entra a liberdade, para pensar e para exprimir.

Liberdade, Independência ou Morte

Podemos falar de liberdade? Como e em que contextos? Há cerca de três anos ouvi um slogan numa campanha política – “Comunismo ou Liberdade!”. De imediato pude recordar uma das mais significativas máximas históricas como foi aquela, tão especial, elaborada em setecentos – “Liberdade ou Morte”. Esta declaração foi proferida por Patrick Henry (uma assinalável figura da Revolução Americana), num discurso até hoje lembrado e citado, ”Give me liberty or give me Death” (Dê-me liberdade ou a morte). Recorda-se desta revolução certo? Ocorreu no século XVIII e libertou as treze colónias americanas da tirania anglo-saxónica. Posteriormente confundiu-se com uma outra, atribuída a Dom Pedro quando, nas margens do Ipiranga, teria proclamado a independência do Brasil relativamente ao Reino de Portugal. Mas não teria sido bem assim! Porque, segundo reza a história, Dom Pedro teria antes gritado «Independência ou Morte!». Mas esta história não fica por aqui. Mais recentemente Raymond Aron também referiu o uso da expressão “Liberdade ou morte” pelos operários das fábricas de seda de Lião e por ocasião de um protesto.

Porém, e afinal, quem gritou «Comunismo ou Liberdade!”? Foi a Isabel Díaz Ayuso, líder do PP, tendo aberto um novo capítulo na vida política espanhola porque ganhou a presidência da Comunidade de Madrid, e infligiu uma derrota histórica ao PSOE. Um dos slogans mais mediáticos da sua campanha terá sido “Comunismo ou liberdade”, uma espécie de renovação daquele outro americano, agora adaptado à circunstância espanhola.

Ora para além da força resultante da praxis política, aquela fórmula americana ficou também imortalizada na estética literária de Nikos Kazantzákis quando escreveu “O Capitão Mihális. Liberdade ou Morte.”. Sendo uma das suas obras-primas, publicada em 1953, fez eco da rebelião cretense sufocada pelo dominador turco. Por entre as histórias vivemos as vidas sequestradas por crenças antagónicas (cristã e muçulmana), mas de alguma forma resgatadas por compromissos humanos fiéis a partilhas comuns apesar das diferenças, e num ambiente tão cruel como heroico, que tem tanto de genial como de prosaico.

Resumindo, os tempos passam, a fórmula inicial transforma-se e adapta-se à circunstância histórica, mas permanece na memória coletiva porque exprime um dos valores humanos mais significativos, expressos em fórmulas tão semelhantes como «Liberdade ou Morte!”, “Independência ou Morte!”, “Comunismo ou Liberdade!”.

Mas, e se apagam o «capitão»?

O capitão Mihális e a heresia do lápis azul

A pergunta tem assumido particular relevância nos últimos três anos (vá-se lá saber a razão …) e, como sempre, a doutrina diverge. Desta divergência, a velha doutrina herética da censura ganha tração na atualidade.

Confesso que um profundo conhecimento histórico confere dupla vantagem. Por um lado, porque nos permite detetar logo o padrão da censura usado noutras circunstâncias históricas, e que é aquele que importa para este caso. Deixem-me apenas dar um exemplo que nunca mais esqueci. Logo no meu primeiro ano de faculdade, a professora de civilizações pré-clássicas contava-nos, para espanto da turma, algumas práticas da censura no Antigo Egipto. Em apenas duas décadas, Akenaton mudara a capital do Egipto, impusera mudanças na religião, implementara mudanças na arquitetura e obliterara mesmo nomes e imagens de deuses tradicionais. Mas, como todos os outros faraós, também um dia desapareceu da vida na Terra. E o que aconteceu posteriormente? Tudo voltou ao que tinha sido.

Por outro lado, o conhecimento da história faz-nos compreender a ocorrência de padrões e a sua repetição no longo tempo secular e milenar. Com esta compreensão ganhamos alguma tranquilidade que resulta da velha máxima – na vida, tudo o que nasce também morre. Então podemos dizer que nada é imutável, mas … cuidado, porque o império romano durou cerca de mil anos. Dito de outra forma, os fenómenos sociais têm a duração que tiverem de ter, mas, pergunto eu, e se a duração da minha vida e das próximas gerações ficar integrada numa nova ordem mundial de caráter totalitário, coletivista e monolítico? Quais as implicações para a minha/nossa capacidade de autodeterminação e de emancipação?

Na realidade e em virtude do “capitalismo da vigilância” assistimos hoje, uma vez mais, à revisão das obras literárias. Cancelam-se obras literárias e estátuas. E parece que a tendência do cancelamento veio para ficar. Está mesmo assumida a necessidade de se rever tudo a bem da diversidade e de uma linguagem mais conforme ao politicamente correto. Deste modo evita-se ferir a suscetibilidade de grupos minoritários e, em prol deste novo bem comum, faz-se a revisão da obra do James Bond e de Harry Potter. Enyd Blyton e Agatha Christie (ainda não se lembraram nem de José Saramago nem de António Lobo Antunes, e também não sou eu que os vou lembrar).

Significa isto que a doutrina do politicamente correto impõe uma política censória que «confirma» tudo o que é dito, tudo o que é escrito e, quando necessário, cancela, castiga, muda e reescreve. E esta confirmação é ampliada com as tecnologias e a Inteligência Artificial, reforçadas por um corpo legislativo contínuo que redefine a liberdade de pensamento. Perante tamanha amputação, são poucos aqueles que ousam manifestar-se. Será conformismo? Será obediência ao chefe? Será aquele traço de Lúcifer que existe em todos nós? Ou será tudo isto ainda o resultado de uma educação pobre em pensamento crítico?

Considerando que é de tudo um pouco, importa agora referir a educação para a liberdade e o espírito crítico.

A educação para a liberdade: emancipação ou submissão

Já que falamos de educação para a liberdade, creio que um dos filmes com maior impacto na minha adolescência foi “O Planeta dos Macacos” (o filme “O triunfo dos Porcos” fica para outro episódio). Percebi, naquela altura, que se tratava de uma metáfora com vários significados possíveis. Ou os macacos representavam a ambição totalitária que pode existir em todo o tipo de sociedade (atenção, estávamos em pleno período pós-revolução de abril, e eu ia observando, assustada, os comportamentos sociais). Ou aqueles macacos representavam a tentação totalitária dentro de cada um de nós.

Depois, pensando com mais pormenor, houve um aspeto particular que captou a minha atenção: os seres humanos viviam em jaulas e não sabiam falar. Retive o choque de Charleston Weston quando foi confrontado com seres humanos tratados como animais dentro daquelas jaulas (para onde foi, aliás). Recordando o que tinha lido em “O Arquipélago de Gulag” (não confundir com o outro livro “O Arquipélago Google”) imaginei que: a jaula poderia significar a privação da liberdade de movimento (tal como na antiga URSS, as pessoas estavam privadas de liberdade de movimentos); e a ausência da fala poderia significar a ausência de capacidade de leitura e de pensamento. Claro que, sem livros para aprender (tinham sido todos destruídos), o homem tinha sido reduzido à sua mais ínfima dimensão – a biológica. E por isso, desconhecendo o alfabeto, a fala, a leitura, o pensamento, a comunicação e, por consequência, o espírito crítico, o ser humano era mantido no nível mais básico de sobrevivência e em luta pela satisfação das necessidades fisiológicas.

Se vos trago hoje este filme como exemplo, é para relembrar como podemos escapar à subordinação de matriz coletivista e monolítica. Mas como? Na verdade, a educação é o único caminho para sair do caminho para a servidão. Então, o que é preciso fazer? Por um lado, é preciso saber ler, ter livros, e liberdade para ler sem «lápis azul»! Por outro lado, é preciso incentivar o desenvolvimento da compreensão e do espírito crítico, pois só estas capacidades permitem questionar aquelas crenças alinhadas ao sistema de planeamento central. Por outro lado, ainda, é também preciso incentivar o pluralismo político que represente, efetivamente, todas as ideias e todos os objetivos, inclusive daqueles que pretendem libertar-se do sistema. E onde? Nas instituições como a família, a escola e a universidade porque constituem núcleos geradores de crenças. A educação para a liberdade é isto mesmo: não só prepara o cidadão e a cidadã para a tecno-estrutura; mas também promove e protege todas as estéticas e as sensibilidades.

A família é logo o primeiro círculo de socialização e é nele que podemos aprender os primeiros passos do pensamento crítico. Se os Pais não sabem ou sabem pouco, faça-se várias escolas de Pais! A escola vem logo a seguir, depois a universidade, a empresa e finalmente toda a vida. Todas as ocasiões constituem uma oportunidade para aprender a pensar criticamente, e são o verdadeiro passaporte para recusarmos a submissão e lutarmos pela emancipação.

Então, se é assim tão fácil, por que razão nos encontramos na situação atual? Bem, em boa verdade, no último quartel do século XX Allan Bloom estava pessimista quanto ao estado da educação nos Estados Unidos da América. A sua obra “A Cultura Inculta. Ensaio sobre o declínio da cultura geral. De como a educação superior vem defraudando a democracia e empobrecendo os espíritos dos estudantes de hoje.” foi um marco na época, sobre a crise social, política e intelectual no Ocidente.

Professor na Universidade de Chicago, Allan Bloom era o responsável pela área História das Ideias. Apontou, na altura, vários fatores que tinham concorrido para aquela crise intelectual e de entre os quais destacamos: a falta de conhecimento dos estudantes; a falta de objetivos bem definidos nas universidades; a substituição da razão pela criatividade; a promoção de ideias vulgarizadas como o niilismo, o relativismo, o desespero e a libertação. 

Esta decadência intelectual não parou mais de atrair a atenção de outros estudiosos. Mas confesso que, uma vez mais, foi Shoshana Zuboff que marcou a diferença na compreensão daquele fenómeno quarenta anos depois de Bloom, ao escrever “Assente na pujança das concentrações inéditas de conhecimento e poder, o capitalismo da vigilância alcança o domínio sobre a divisão de aprendizagem na sociedade – o princípio axial da ordem social numa civilização da informação. Este desenvolvimento tornou-se mais perigoso por ser inédito. Não se encaixa num mal familiar e, portanto, não cede facilmente perante as formas familiares de combate.” (“A Era do Capitalismo da Vigilância. A disputa por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder”).

Qual o significado deste “domínio sobre a divisão da aprendizagem na sociedade”? Parece ser simples, no entendimento desta autora, quando afirma que aquela nova divisão suscitou a necessidade de dar novas respostas a três perguntas clássicas: “Quem sabe?” (sobre estarmos ou não incluídos na possibilidade para aprender), “Quem decide?” (quem decide sobre quem vai aprender e o que vai aprender),  “Quem decide quem decide!”(já é uma questão de poder sobre tudo o resto). Posto isto, e a partir de 1988 (data em que publicou o livro “In the Age of the Smart Machine: The Future of Work and Power) as empresas norte americanas decidiram por um modelo de negócio que optou por investir em máquinas e não em pessoas, com a vantagem de redução dos custos, e «orientado para o público de Wall Street que insistia em automatizar e explorar os postos de trabalho em vez de investir nas aptidões digitais e nas competências dos trabalhadores norte americanos.

“Quem sabe?” – sobre estarmos ou não incluídos na possibilidade para aprender

Sabem as máquinas! E aprendem as máquinas!

Não é mau, porque nos facilitam o trabalho. Mas confesso que estou apreensiva relativamente à letargia, ao imobilismo que observo relativamente à educação em Portugal. Então, se as máquinas aprendem, e os homens? Os homens devem aprender também para trabalhar com elas e para as desenhar ainda melhor? E usufruir de mais tempo livre para outras atividades, tempo este financiado por uma nova política fiscal que aplique novos impostos aos negócios e às atividades que utilizem as máquinas. Mas a política educativa é cada vez mais opaca, sem dar resposta visível às mudanças necessárias e urgentes a realizar no setor educativo, em curricula e na habilitação de professores. Ou, tal como Wall Street, é para investir nas máquinas que aprendem e não nos professores?

Tenho visto o esforço hercúleo de professores de todos os níveis de ensino, de centros de formação, de presidentes de escolas, associações e movimentos, todos envolvidos em rede e no desenvolvimento de: literacia matemática, tecnologia, tecnologias aplicadas a várias disciplinas, robótica, inteligência artificial e metodologias STEAM. Todos em rede e a promover ligação com o ensino superior e o mundo concreto do trabalho. São incansáveis, e partilho até o nome de alguns, pedido perdão se não consigo incluir todos. Não há palavras para recordar Ana Cláudia Cohen, Ana Franco, Ana Loureiro, Ana Paula Loureiro, António José Araújo, António Pescada Santos, António Rodrigues, António Sapateiro, Bárbara Gaspar Cleto, Carlos Simões, Cátia Valéria, Cláudia Meirinhos, Damiana Guedes, David Ferreira, Filipa Almeida Chambel, Fernanda Ledesma, Filipe Galego, Isabel Cabo, João Marôco, Joaquim Trovão, José Jorge da Silva Teixeira, Jorge Sottomaior Braga, Jorge Reis, Júlia Branco, Liliana Fernandes, Liliana Melo, Manuel Meirinhos, Marco Bento, Marco Neves, Mário Lima, Ondina Espírito Santo, Paulo Torcato, Samuel Branco, Tiago Costa, Paulo Gafanha, Rui Lima … Sei que não consegui nomear todos. Outras ocasiões virão.

Eu acrescento ainda que, a bem da liberdade que temos, é necessário transformar a escola num ninho de jovens pensadores críticos e ultrapassar o modelo da escola de operários e de técnicos, treinado para sociedade industrial. A quarta revolução industrial concretiza-se com cidadãos e cidadãs críticos e com elevada literacia tecnológica, ética e estética. Caso contrário, se continuarmos a desinvestir na escola, o que vai acontecer aos cidadãos iletrados? E aos meus livros? E aos seus? Serão vendidos? Serão confiscados? Transformam-se num serviço? Serão digitalizados? Ou como o direito à propriedade parece ter sido deitado para trás das costas, serão eles partilhados por outros que não têm nenhum? Ou serão queimados? E como alguém terá dito há algumas dezenas de anos atrás, primeiro queimam-se os livros e depois queimam-se as pessoas.

Efetivamente, o tempo não está para mentiras apesar de convivermos no «tempo da mentira universal» (comentário de José Saramago).

Concluindo, retomamos o pensamento de Galbraith com o qual iniciámos o artigo: “Os interesses e as necessidades do sistema de planeamento manifestam-se de forma subtil e poderosa. Visto que se faz que eles pareçam estar coordenados com os objetivos da sociedade, a ação governamental que sirva as necessidades dos sistema aparenta ter uma grande finalidade social. Resumindo, então qual deve ser a pergunta chave a fazer para nos libertarmos do caminho da servidão – “Quem decide?”, “Quem nos representa?” Ou “Quem pensa por nós?”? Porque, senhor leitor e senhora leitora, isto não vai melhorar … pois não! Todos os meses podem ser revolucionários, acredite. E, como estamos na Primavera, que mil flores possam florescer. «Quem não sabe história está condenado a repeti-la.».

Mónica Rodrigues

Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).

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