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GUERRAS CULTURAIS – CIVILIZAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ E A AMEAÇA DO WOKISMO

«Raros são esses tempos felizes em que se pode pensar o que se quer e dizer o que se pensa» – Tácito

Como enquadrar o problema?

Encontramo-nos numa fase de declínio civilizacional e cultural, em que está em jogo uma questão existencial, ou seja: a da própria civilização tal como a conhecemos, no conceito corrente de civilização ocidental, tal como a definiu Samuel Huntington, cuja tese geral, como se sabe, consistia em afirmar que na era pós-Guerra Fria, a política global seria definida não por diferenças ideológicas ou económicas, mas por diferenças culturais e religiosas. Nesse sentido os valores e referências da Europa e da América, tais como as liberdades individuais, os direitos humanos divergiam fundamentalmente de outras civilizações, designadamente da islâmica, mas não só, e que o confronto (em inglês clash), a prazo, era inevitável 

Decorre que, para além do confronto externo com outras culturas de matriz distinta e com vocação universalista, o problema, a nosso ver é igualmente ou, principalmente, intra-muros, na medida em que o inimigo interno revela uma autofagia suicidária que, presumivelmente, suplanta a ameaça do exterior.

Com efeito, as ameaças à sociedade, para além de serem, tais como atestadas pela história passada e recente, militares e económicas, são, hoje, essencialmente, culturais. No fundo, está-se a pôr em causa a cultura de matriz ocidental, visando alterá-la de raiz para criar uma outra provida de uma carga ideológica complexa e confusa, de contornos por ora indefinidos, que preconiza como estratégia uma política de tábua rasa marcadamente perigosa porque propõe um ideário antagónico ao pensamento estrutural até agora dominante e que moldou o chamado Ocidente durante mais de 2 milénios. 

O falecido Papa emérito Bento XVI exprimiu, de modo paradigmático, perante o Reichstag, em Berlim, na sua viagem apostólica à Alemanha (22-25 de Setembro de 2011), o verdadeiro significado transcendente dos valores culturais do Ocidente:

“Aqui deveria vir em nossa ajuda o património cultural da Europa. Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade. A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico. “   

Preservar, adaptando-o à evolução dos tempos, o encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma é, pois, uma questão de fundo. Não é algo que se possa levianamente descartar ou considerar como mero devaneio filosófico.

“Alguns pensam que isso não afecta as suas decisões porque se declaram ateus, mas a realidade é que a componente cultural continua presente. Tentar compreender a evolução do Ocidente sem o cristianismo é um disparate.”

Com efeito, apesar das notórias diferenças de apreciação e de múltiplas opiniões variadas e por vezes contraditórias, inúmeros ateus e agnósticos, cientistas, jornalistas e filósofos (entre outros e a título de exemplo – Christopher Hitchens, Richard Dawkins, Carl Sagan, Sam Harris e Bertrand Russell) destacavam e destacam a cultura ocidental e os seus valores. Logo, aquela e estes são verdadeiramente centrais, apanágio e a fonte principal da nossa civilização. 

Ora, neste momento, todo esse legado está a ser posto em causa e concomitantemente a ciência, o conhecimento e a tecnologia alcançada, anunciando-se nessa verdadeira política de terra queimada um “Admirável Novo Mundo,” quiçá semelhante ao que previa Aldous Huxley, no livro homónimo.   

Se o modelo não é este, então que novo modelo nos é proposto? E neste caso interrogamo-nos legitimamente: Onde estão os novos desafios? Onde estão as novas ameaças?

Sob o pano de fundo de uma demografia visivelmente descendente e sem solução à vista (as baixas taxas de natalidade, na Europa, por exemplo são a este respeito eloquentes ), o chamado Ocidente recorre à imigração para compensar este défice demográfico e, em termos genéricos, a Europa e a América do Norte constituem, naturalmente, devido sobretudo à respectiva prosperidade económica, por um lado,  territórios de asilo e acolhimento para refugiados e deslocados, e por outro, um chamariz para a chamada imigração económica. Acresce que, dada a baixa natalidade e as necessidades crescentes de mão-de-obra, as economias ocidentais fomentam, de certo modo, esta imigração, independentemente dos problemas de inclusão social que tais situações geram. Quanto às questões de fundo estas são de natureza essencialmente cultural: com efeito, dizem respeito à não integração destas comunidades por incapacidade de assimilação nas sociedades de acolhimento (divergências de hábitos, de usos, de costumes, normas sociais), máxime ao problema religioso, porque subsistem, nesta matéria, incompatibilidades intransponíveis.

Para além destas questões migratórias e de integração existem outros temas que requerem a nossa atenção, designadamente o feminismo, o racismo, o ambientalismo, o veganismo et alia, mas que, sem prejuízo de um tratamento autónomo, podemos, como tal, abordá-los sob o chapéu-de-chuva do politicamente correcto e do wokismo.

Numa breve síntese, radicado na contracultura do último quartel do século passado, o que se considera ser politicamente correcto ontem, em potência, são todos os ingredientes do que hoje identificamos, à falta de melhor designação, como wokismo (o chamado movimento do “despertar”) e da cultura de cancelamento. Com efeito, o politicamente correcto, porquanto sendo, em nossos entender, um precursor daqueles dois conceitos, surge cronologicamente antes, ou seja, no último quartel do século XX, e o seu objetivo consistia em promover uma linguagem mais inclusiva e respeitosa em relação a grupos considerados marginalizados. O movimento do «despertar» ou «wokismo» e a cultura do cancelamento, por outro lado, são mais recentes e têm como objetivo expor e combater estruturas de poder opressivas em todos os aspetos da vida social, incluindo a linguagem, a cultura popular e as instituições. O wokismo surge como um movimento radical, que visa a alteração em profundidade da sociedade e abraça todas as causas que de algum modo a ponham em causa. Donde confrontamo-nos com um pot-pourri de temas, via de regra, abordados da forma mais intransigente e radical.

Quer queiramos, quer não, Portugal, como parte integrante do Ocidente,  está envolvido nas guerras culturais em curso, não podendo menorizá-las ou descartá-las, alegando tratar-se de meros modismos de importação, ou de tendências com alguma expressão e élan, mas naturalmente efémeras, ou, quando muito, de epifenómenos que, por ora,  não o afectam directamente, uma vez que tudo ou quase tudo se passa fora de portas, no estrangeiro, designadamente na chamada anglo-esfera, com alguma repercussão, porém variável,  noutras regiões do chamado mundo ocidental. Temos, porém, de desmistificar tais conceitos, ilusórios e perigosos, porque eles (os wokes e tudo o que representam) estão entre nós, bem como, os respectivos compagnons de route (designadamente certos sectores da esquerda e os hiperliberais) que lhes facilitam a vida e lhes abrem o caminho.  Os factos, como veremos mais adiante, parecem demonstrar que no mundo globalizado em que vivemos não estamos, por forma alguma imunes a esta contaminação tóxica que, em última análise, põe em causa a civilização ocidental, o seu legado cultural e a própria existência de Portugal, como estado soberano e independente e, bem assim, a nossa cultura multissecular de que não abdicamos.  

Para o historiador Rui Ramos, “o activismo woke não consiste numa qualquer libertação, mas na mais audaciosa proposta de aumento de poder do Estado no Ocidente desde os totalitarismos dos anos 30”. Portanto, subsiste aqui uma questão política de fundo, bastante clara: pretende-se o assalto ao Poder, através da utilização cínica de princípios ditos de equidade e de compaixão, que escamoteiam a prática inescrupulosa de métodos totalitários. É assim em todo o Ocidente e Portugal não foge à regra. 

1 Huntington, Samuel – “O Choque de Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial”, Gradiva, Lisboa 1999

2 https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20110922_reichstag-berlin.html?fbclid=IwAR1jftdqVifDpH7JWhbeDk7oY-BTr6N9GCQjhRBeOKyRSJKV7zTfbDCM-Qo

3 García, Jano – “El Rebaño – Cómo Occidente há sucumbido a la tiranía ideológica”, Esfera de los libros, Madrid, 2021, p. 43

4 O índice de natalidade para Portugal cifra-se em  1,35 filhos por mulher, o que nos coloca no último escalão em termos de fertilidade feminina, donde constam países como Malta, a Itália, a Espanha  , a Grécia (vd. https://www.pordata.pt/europa/indice+sintetico+de+fecundidade-1251). Segundo os peritos, a taxa de substituição de populações deve situar-se nos 2,1, filhos por mulher

5 Um amigo  colega de longa data dizia-me: “A Portugal isto também aparece mas com atraso e é, por ora, epidérmico. No fundo, o fenómeno afecta aí uns 23 ou 24 países ocidentais e só pontualmente está provido de algum radicalismo”. Esta menorização do problema, afigura-se.me de certo modo leviana, pouco maturada e altamente perigosa. Segundo dados revelados em conferência pública pelo Prof. Dr. Jean-François Brausntein, catedrático emérito da Universidade de Paris I – Panteón  (vd. para além dos países anglo-saxónicos,, a França, .Alemanha e Países Baixos são os mias afectados, enquanto que o fenómeno e, por ora, relativamente marginal, no Sul, Espanha,  Itália, Grécia  (e Portugal igualmente). Todavia, o problema existe, solidifica-se e amplifica-se.   

6 Rui Ramos, “O novo totalitarismo”, in “Observador”, de 21 de Julho de 2021. 

Francisco Henriques da Silva

Embaixador, Vice-Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Sociedade de Geografia, autor.

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