Para o cidadão comum, as cidades de 15 minutos parecem uma coisa boa. O mais curioso é que elas já existiram há décadas na Europa de Leste, mas nessa altura foram construídas por outros motivos, ou melhor, tinham os mesmos motivos, só que não eram disfarçados.
A ideia de as pessoas terem tudo à mão e não precisarem de se deslocar para outras zonas da cidade para trabalhar ou fazer compras à primeira vista parece vantajosa. O conceito está a ser disseminado e promovido na Europa e prevê que todas as actividades dos cidadãos nas grandes cidades (trabalho, casa, alimentação, saúde, educação, cultura e lazer) possam ser realizadas num raio de 15 minutos a pé ou de bicicleta. Os carros parecem estar excluídos ou limitados. Em Lisboa o processo já começou.
Mas este conceito já existiu no passado, na antiga URSS, altura em que eu própria vivi durante alguns anos numa zona dessas e pude observar como funcionava.
Uma cidade que «tem tudo à mão»
Mudemos de geografia e recuemos na história.
Em 1918, o governo bolchevique decidiu mudar a capital de Petrogrado (atual São Petersburgo) para Moscovo, considerada menos vulnerável a um possível avanço do Exército alemão. Nos primeiros anos, os milhares de novos funcionários do governo e militares viviam nos hotéis e palácios entretanto expropriados.
Em 1927, as autoridades soviéticas decidiram construir um complexo residencial especial para os altos funcionários e respectivas famílias, não muito longe do Kremlin. Com 400 mil metros quadrados, 10 andares e 505 apartamentos, o complexo era o maior da cidade nessa época. Os apartamentos foram atribuídos à elite soviética, a escritores e a militares. A inovação deste enorme completo era que, nos andares inferiores, possuía dois teatros, um cinema, uma sala de jantar/cantina, um café, lojas, uma lavandaria, correios, um jardim de infância, uma barbearia, um ginásio, uma biblioteca e um posto médico. Ou seja, tinha tudo para as famílias residentes não precisarem se deslocar para fora do complexo.
Parece óbvio que juntar todas as figuras da elite num mesmo sítio não tinha apenas o objectivo de lhes proporcionar uma vida confortável. O complexo também dispunha de apartamentos secretos de tchekistas (serviços secretos). Eles trabalhavam sob o disfarce de administradores e ascensoristas, encontravam-se com informadores nos seus apartamentos e escondiam inquilinos secretos. Mais tarde, descobriu-se que os informadores eram os zeladores, que tinham as chaves de todos os apartamentos: os comissários do NKVD nem precisavam bater à porta. Durante o terror bolchevique na segunda metade da década de 1930, muitos moradores do edifício foram presos ou mortos. Acreditava-se que haveria escutas nos apartamentos por entre as paredes.
Este modelo de arquitectura “de 15 minutos” foi replicado nas famosas “Sete Irmãs”, grupo de enormes edifícios residenciais de estilo estalinista em Moscovo, num dos quais vivi durante 2 anos na década de 80. As residências coletivas dos “limitchiki” (trabalhadores da indústria de outras regiões que só eram autorizados a viver em Moscovo por quotas, ou limites), as cidades científicas, destinadas a residência e trabalho dos investigadores, e as cidades fechadas dos militares (que não existiam no mapa nem tinham nome), seguiam o mesmo conceito “de ter tudo à mão”.
Conforto ou controlo? Ambos
No prédio principal da Universidade de Moscovo onde vivi era esse o sistema. O bonito complexo de edifícios incluía tanto a reitoria, quanto muitas das próprias faculdades e também servia de residência. Era ali que viviam estudantes dos últimos anos e muitos professores.
Tínhamos tudo à mão: várias cantinas (a dos professores era mais luxuosa e a comida mais variada), biblioteca, uma enorme sala de espectáculos com colunas brancas, lavandaria, pequenas livrarias, posto médico, ginásio.
Viver nestes complexos era muito cómodo e prestigiante, especialmente porque o pagamento da residência era simbólico. Em princípio, alguns estudantes podiam passar meses sem sair do local (obviamente que os estudantes portugueses não se resignavam a tal sorte e saíam regularmente).
As vantagens de ter todos os serviços no mesmo lugar era acompanhado por um rigoroso controlo dos residentes. A questão é que só quem pertencia oficialmente à universidade podia entrar: em todas as portas exteriores estavam dois polícias que impediam qualquer veleidade e controlavam ao pormenor os cartões de identificação. Um amigo, um colega de outra universidade, uma visita, um namorado, um familiar, não podiam entrar, a não ser após um longo processo burocrático de autorização que demorava dias e cujo resultado não era garantido. Eram permitidas apenas algumas visitas de familiares por ano. O mesmo sistema de controlo vigorava nos hotéis, nas cidades “fechadas” e nas outras residências estudantis da cidade (onde se suspeitava que os dispositivos contra-incêndio no tecto dos quartos na realidade fossem escutas).
De 1985 aos dias de hoje muita coisa mudou.
Voltando à atualidade e à Europa, vemos que o processo de organizar as chamadas cidades de 15 minutos também usa como justificação a conveniência, a “qualidade de vida” que tal sistema pode aparentemente proporcionar. Ir às compras semanais de bicicleta ou a pé supostamente seria mais confortável que usar o carro.
Quando as autoridades de Oxford, na Inglaterra, decidiram implementar este conceito na cidade, as coisas não correram bem. Suspeito que em Portugal, que tem um povo mais passivo, as coisas podem correr “melhor”.
A ideia é instalar “filtros de tráfego”, câmeras que registam as matrículas dos carros para controlar o trânsito. Os que não têm autorização de residência ou alguma isenção serão multados. Tais filtros visam limitar as viagens de carro particular diretas entre os vários bairros, numa primeira fase só durante o dia. Ou se tem autorização para passar por estes dispositivos ou se arrisca uma multa ao passar por eles.
Na China, o sistema é até mais “cómodo”: nalgumas zonas de certas cidades existem cancelas semelhantes às do metro à saída dos bairros e as pessoas só passam a pé ou de bicicleta se tiverem um código especial.
Segundo os adeptos da ideia, pretende-se reduzir o trânsito, baixar a poluição.
Só que essa é apenas uma boa desculpa.
«Parar de andar de um lado para o outro» ou violação dos direitos civis?
O autor moderno do conceito, Carlos Moreno, explicou claramente:
“A cidade de 15 minutos é um novo paradigma para combater as mudanças climáticas. Se queremos reduzir radicalmente as emissões de CO2 precisamos parar de andar de um lado para o outro, de reduzir as distâncias que percorremos. E, quando tivermos de as percorrer, que seja a pé ou de bicicleta. A ideia é que temos de reduzir, mesmo radicalmente, a mobilidade nas cidades.”
Resumindo, a ideia é desencorajar e depois impedir as pessoas de deixarem os seus bairros e “de andarem de um lado para o outro”. Ora isso tem um nome: violação dos direitos civis.
O atual desenvolvimento tecnológico (vigilância em massa, identificação facial, IA) permite efectuar um controlo muito mais facilmente e de forma muito menos perceptível que os dois polícias na portaria da universidade.
O deputado britânico Nick Fletcher disse que este é um conceito socialista que nos vai custar a nossa liberdade pessoal. Não é apenas socialista, é neo-ditatorial.
Algumas décadas depois de se ter introduzido a liberdade de circulação nos 4.422.773 km² da União Europeia, a ideia é agora que as pessoas fiquem confinadas nos seus bairros e deixem de viajar.
Houve um senhor importante no século XVII que foi atirado pela janela. Talvez devêssemos fazer algo semelhante agora.
Cristina Mestre, psicóloga e tradutora