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As “casas inteligentes” e a nova moralidade

Maio de 2023, um engenheiro da Microsoft, de seu nome Brandon Jackson foi falsamente acusado de racismo por um estafeta que se preparava para lhe entregar uma encomenda em casa. Como resultado dessa acusação, a Amazon desativou a sua conta e todos os dispositivos da sua “casa inteligente”, o que gerou muita confusão.

Quanto ao real sucedido: o estafeta tocou à campainha, e a “campainha inteligente” do residente Brandon Jackson respondeu “Desculpe, posso ajudar?”. O estafeta, prontamente fez acusações de racismo por ter entendido mal a voz do dispositivo, ou por má-fé. Brandon, chegou mesmo a provar a sua inocência, com imagens de videovigilância que mostravam que este não se encontrava em casa na altura da entrega da encomenda.

Porém, mesmo após a prova inequívoca da sua inocência, a Amazon perdurou durante alguns dias com a sua conta desativada, e, por consequência, com os seus dispositivos da sua casa inteligente também desativados. E jamais a Amazon pediu desculpas a Brandon. Isto significa que Brandon Jackson ficou sem campainha de casa durante este período, derivado deste incidente. Importa também referir que Jackson é proveniente do Estado de Baltimore, bairro maioritariamente negro, e pasme-se, é ele próprio, negro.

 

Fotografia de Brandon Jackson retirada de: https://www.wionews.com/world/amazon[1]shuts-down-customers-smart-home-devices-over-false-racism-claims-605214

Não obstante, a resposta de Brandon Jackson é evidente do grau de insanidade a que a nova moralidade trouxe uma grande parte da civilização ocidental, e demonstra também a relação intrínseca entre o novo estado de vigilância orwelliana e esta mesma nova moralidade: quando confrontado com a situação, Brandon Jackson referiu que é a favor de medidas de contenção deste tipo de situações, mas achou excessiva a desativação total da sua conta.

Por outras palavras, Brandon Jackson, a vítima, apresenta todos os sinais típicos da atual Síndrome de Estocolmo social, na qual a nova moralidade, neste caso associada ao racismo, se sobrepõe à sua própria ideia de indivíduo soberano na sua esfera privada. Para Brandon, o caminho é melhorar a punição, e não retirar a punição. Ou seja, se por acaso Brandon Jackson tivesse tecido comentários racistas, e por acaso, tivesse uma fechadura inteligente, tantas vezes combinada com as campainhas inteligentes da Amazon, este seria impedido de entrar na sua própria casa. E o pior? Aparentemente, este acharia justo, ou pelo menos, pouco condenável. Este é então, talvez, o maior dos perigos associados às casas e fechaduras inteligentes na contemporaneidade.

O estado tecnocrático atual, não terá problemas em moralizar a tecnologia, e aparentemente, poderá vir a ter o aplauso das próprias vítimas. A habilidade de ser um cidadão normal (entrar em casa, por exemplo) de determinada sociedade, poderá então ser cortado por meras alegações de “ter feito a coisa errada”. Um conjunto de leis extrajudiciais corporativas e meras (infundadas) acusações são suficientes para a punição, sem nenhum tipo de investigação feita primeiramente. Tratado como culpado até ser provado inocente, eis o novo mote.

Porém, uma casa inteligente acarreta mais perigos do que aqueles que um utilizador pode antecipar. Nomeadamente, um dos grandes exemplos são os aspiradores inteligentes Roomba, por exemplo, que de forma a aspirarem a casa com precisão, terão de utilizar um processo de mapeamento da casa dos moradores onde a informação sobre o tamanho, a planta e a localização dos objetos dessa mesma casa passa a estar disponível no banco de dados da Roomba (agora Amazon).

No ano passado, um incidente envolvendo um aspirador Roomba gerou controvérsia quando fotos de uma mulher e de uma criança na casa de banho foram capturadas pelo sistema automático do dispositivo. Essas imagens acabaram enviadas para a Scale AI, uma startup que contrata trabalhadores ao redor do mundo para trabalhar dados de áudio, foto e vídeo usados no treino de inteligência artificial. Pelo menos 15 fotos tiradas pelo Roomba circularam nas redes sociais, causando preocupações com a privacidade e a segurança dos dados recolhidos pelos dispositivos. A iRobot, principal fornecedora mundial de aspiradores robôs, confirmou a autenticidade das imagens capturadas pelos Roombas em 2020.

E se seria de esperar que os dados coletados ficassem somente no domínio da empresa que os coletava, desengane-se. Os dados, para além de vendidos a terceiros, como já se verificou no caso da Roomba, têm sido frequentemente entregues a entidades governamentais. Por todo o mundo, de 2015 a 2018, cerca de 300 pedidos governamentais para aceder aos dados e às imagens da assistente virtual da Google Nest, foram aceites por vários tribunais para tratar casos relacionados com crime. Como seria de esperar, na sua fase embrionária, as casas inteligentes e as preocupações relacionadas com privacidade e segurança, serão glorificadas como parte de um movimento super-heróico, no qual a Siri, ou a Alexa irão combater o crime.

Foi assim no caso em que uma mulher, durante uma discussão acesa com o marido chamou a polícia através da Siri. Mas o que fazer quando a tecnologia das casas inteligentes estiver sob o domínio total da nova moralidade? Um comentário ofensivo entre marido e mulher, uma piada mais agressiva, ou até mesmo um genuíno grito de pais para filhos, poderão ser vigiados, monitorizados, e pior… punidos com a disfuncionalidade total da vida doméstica.

James Clapper, ex-diretor da Inteligência Nacional norte-americana, trouxe a lume a questão de que qualquer aparelho inteligente numa determinada casa é utilizado para espiar e recolher dados sobre os cidadãos. A escolha parece simples: abandonar os dispositivos inteligentes da nossa casa, de forma a não correr riscos desnecessários em nome do conforto.

Porém, como já se tem verificado, cada vez é maior a pressão do mercado para que, por exemplo, a nossa televisão seja inteligente. Existem até vários websites e fóruns que tentam explicar a forma como alguém ainda pode comprar uma “televisão burra” ou não inteligente. Com a substituição, no mercado, dos dispositivos tradicionais para dispositivos inteligentes, será o consumidor o maior responsável por entender como poderá contornar e eliminar por completo estes dispositivos de suas casas. Se quiser, claro, proceder ao exorcismo desta maldição disfarçada de conforto do seu lar.

Assinado por: Tiago Martins, Sociólogo e fundador do Blog “Tratado”

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