O Campeonato Mundial de Futebol do Catar 2022 está envolto em grandes polémicas. Por todo o lado se vocifera por Direitos Humanos, num Mundial que ficará para sempre marcado pelas acusações por parte da imprensa e ONG’s ocidentais a um suposto número elevadíssimo de migrantes mortos, relacionados com a construção dos estádios para o Mundial. Mas será isso verdade ou será (mais uma) onda gigantesca de desinformação patrocinada pela imprensa mainstream?
Durante meses a fio, temos ouvido na imprensa, vindo das grandes organizações e até nos cafés (quando se fala do Mundial), que os mortos no Catar relacionados com as construções dos estádios são tragicamente altas, e uma falta de respeito para com os Direitos Humanos. A curiosidade abateu-se então sobre mim.
Se por um lado, a imprensa ocidental já nos habituou às suas erróneas representações da realidade, perguntei-me se neste caso em específico, não estaria finalmente a dizer a verdade, e só a verdade. Afinal de contas, o Médio Oriente, e países como o Catar não têm propriamente um sistema laboral vinculado às melhores práticas da dignidade humana. Sistemas de exploração laboral, que incorrem muitas vezes em escravatura e tráfico humano, ainda são frequentes em países do Golfo, através do Sistema de Kafala. O Catar não é exceção.
Abri então uma notícia do Observador, de forma a primeiro pesquisar na imprensa portuguesa algo sobre o fenómeno. Deixo aqui o link: 6.750 trabalhadores migrantes morreram na construção de infraestruturas para acolher o Mundial no Catar
Como seria de esperar, a notícia do Observador é uma mera reciclagem da fonte original, do The Guardian. Após rápida leitura deste artigo, fui ao que realmente interessava: o artigo do The Guardian. Deixo-o já aqui: Revealed: 6,500 migrant workers have died in Qatar since World Cup awarded
Ora, estes orgulham-se de ter sido os primeiros a “revelar” o grande número de migrantes mortos (supostamente) relacionados com o Mundial. Desde mortes devido a causas cardíacas, como mortes em acidentes de trabalho, estas são talvez as duas grandes causas de mortes possivelmente interligadas com o Mundial de Futebol. Analisando o artigo do The Guardian e as fontes de informação e estatísticas do mesmo, podemos retirar algumas notas interessantes:
1) Começando pelo título: “Revealed: 6,500 migrant workers have died in Qatar since World Cup awarded” – em português – “Revelado: 6,500 trabalhadores migrantes morreram no Catar desde que o (local do) Campeonato do Mundo foi decidido”.
Este título requer alguma atenção às subtilezas. Este pretende sugerir ao leitor, num claro exemplo de “doublespeak”, que esses 6.500 migrantes mortos estão relacionados com a construção dos estádios da competição, e logo, requerem a atenção da Fifa e das autoridades. Não obstante, o título (na prática) não mente. Os dados estatísticos de 6500 migrantes mortos são citados de fontes oficiais do Governo, e confiando nos mesmos, estarão certos. Cerca de 6500 migrantes morreram desde 2010 até 2020.
Um olhar mais cuidado da notícia e do título revela que desses 6500 migrantes mortos, não se faz sequer uma mínima ideia de quantos estão relacionados com a construção do Mundial, nem sequer quantos desses trabalham na construção civil ou em atividades relacionadas com o Mundial. Os números apresentados são os números em bruto, provenientes das estatísticas oficiais das mortes de migrantes TOTAIS no Qatar por nacionalidade estrangeira. Neste caso, de migrantes de origem indiana, nepalesa, do Sri Lanka e do Bangladesh.
Concluíndo este primeiro ponto: o título está certo. Cerca de 6500 migrantes morreram desde que o Qatar foi premiado com a realização do Mundial. Porém, estas mortes referem-se ao TOTAL dos migrantes no País. Quantos desses relacionados diretamente com o Mundial? Não se sabe. Podemos, pelo menos estimar, ou aproximar-nos de uma verdade estatística que nos permita descodificar este número redondo? Sim. Lá iremos.
2) Após revelar que o número de trabalhadores migrantes dos 4 países acima referidos chegaram aos 5927 mortos (sem qualquer hiperligação associada), entre 2010 e 2020, o The Guardian, continua no parágrafo seguinte: ”The total death toll is significantly higher, as these figures do not include deaths from a number of countries which send large numbers of workers to Qatar, including the Philippines and Kenya”. No fundo, o The Guardian especula no sentido de um maior número de mortos do que é proposto por esse mesmo jornal, afirmando que as Filipinas e o Quénia não foram inseridos nas estatísticas.
O que podemos considerar relevante nesta frase, que mereça uma análise? Pois bem, a junção das Filipinas com o Quénia, dando a impressão de que ambos são países relativamente próximos no que à contribuição percentual de migrantes para o Catar diz respeito, é no mínimo, desonesta. Num dos relatórios mais completos acerca do assunto, podemos verificar como as Filipinas contribuem com 236 mil migrantes (dados de 2019), ou seja, cerca de 7% da população do Catar, enquanto que o Quénia contribui apenas com 30 mil migrantes, traduzidos em cerca de 1% da população.
Verifica-se uma tentativa do The Guardian em colar ambos os países como grandes contribuidores de migrantes excluídos das estatísticas, como forma de exacerbar a narrativa que os migrantes mortos são muitíssimo superiores aos que o próprio Guardian noticía. Porém, esta escolha de países foi infeliz e pouco rigorosa.
3) O The Guardian adianta, que “apesar dos registos das mortes não serem categorizados por ocupação ou local de trabalho, é possível que muitos dos trabalhadores que morreram, estejam ligados aos projetos das infraestruturas do Campeonato do Mundo”. Para provar o seu ponto, o artigo menciona Nick McGeehan, diretor da FairSquare Projects, no qual este refere que muitos dos migrantes mortos estavam no País pela simples razão do Qatar ter vencido o sorteio da Fifa para ser o anfitrião do Mundial.
Tanto o The Guardian, como Nick McGeehan se limitam à mera especulação da relação das mortes com os projetos abrangidos pelo Mundial, chegando Nick a relacionar o aumento de migrantes para o Qatar com o Mundial, esquecendo as tendências de longo-prazo e até o relativo declínio do número de migrantes a entrarem no Qatar nos últimos anos.
A título de exemplo, o número de migrantes indianos (nacionalidade mais representada no Qatar) a entrarem no País tem apresentado uma significativa desaceleração ao longo dos anos. Se em 2014, entravam cerca de 75 mil migrantes indianos no Qatar, em 2017 e 2018, apenas entraram cerca de 24 mil e 32 mil, respetivamente.
Também tendo em conta os dados de longo prazo, apesar deste recente declínio na proporção de migrantes indianos a entrar no País (talvez fruto da queda da economia do Golfo nos últimos anos), é interessante reparar que esta tendência de entrada de migrantes no País, tem sido um fenómeno a longo prazo, sendo que a população realmente nascida no Qatar diminuiu de 40% para 24% entre 1970 e 2004. Também entre 2004 e 2019, o aumento do número de migrantes resultou numa descida da população nascida no Qatar de 24% para cerca de 10%.
Assim, verifica-se que a tendência de entrada de migrantes no País não se deveu exclusivamente ao Mundial, sendo, no entanto uma tendência a longo prazo. Mas mais surpreendentemente foi a desaceleração da entrada de migrantes no País nos anos mais próximos do Mundial. Nick exagera a realidade com base em suposições não ancoradas nos factos, e o The Guardian vai atrás.
4) Mas em parágrafos subsequentes, o The Guardian admite: “Existiram 37 mortes entre trabalhadores diretamente relacionados com a construção dos estádios do Mundial”. Destes 37, o The Guardian remata, “34 foram classificados como “não relacionados com o trabalho” pelo comité organizador”. Aqui, o The Guardian admite preto no branco que apenas 37 mortes são provados terem sido de migrantes que trabalhavam nos projetos das infraestruturas do Mundial, e que 34 dessas mortes foram classificadas pelo Comité, como não tendo sido relacionadas com acidentes de trabalho.
De 6500 migrantes mortos no título, ficamos reduzidos a 37 (sejam todos ou apenas 3 relacionados com o Mundial). Até o Washington Post reproduziu esta “investigação” do The Guardian de forma descuidada, levando a que mais tarde, um update tivesse que ser publicado no corpo da notícia que reiterava “Uma versão anterior deste post, e a acompanhar o gráfico (que tentava ludibriar o leitor com uma imensidão de mortes), criou a impressão que mais de mil trabalhadores migrantes tivessem morrido no Catar enquanto trabalhavam nas infraestruturas do Mundial. O post deveria ter sido claro, que se tratavam das mortes de TODOS os migrantes no Catar”.
Sim, o Comité e o Governo poderão estar a mentir, ou a encobrir as 34 mortes não relacionadas com acidentes de trabalho. Contudo, provas desse facto são escassas ou nenhumas. E factualmente, passamos de 6500 mortes de migrantes, para apenas 37 mortes de migrantes que trabalhavam nas instalações do Mundial.
5) Mais abaixo, são apresentadas algumas figuras da causa de morte por nacionalidade. Como seria de esperar, a maior causa de morte entre os migrantes indianos e nepaleses, trataram-se de insuficiências cardíacas ou respiratórias, que o Governo do Catar caracteriza como “mortes naturais”. O The Guardian argumenta que estas mortes por insuficiência cardíaca e respiratória mascaram as mortes por extremo calor em condições de grande fragilidade laboral.
Mais uma vez, sem qualquer tipo de fundamento, estas afirmações do The Guardian, não passam de especulações. Surpreendentemente ou não, as estatísticas das mortes dos trabalhadores indianos e nepaleses, estão em linha com as principais causas de morte no mundo: as duas primeiras relacionadas com insuficiência cardíaca e a 4ª com infeções respiratórias. Números da OMS. Resumindo: a causa de morte dos migrantes, está em linha com a causa de morte natural em todo o mundo. Nada de anormal. Assim, o ónus da prova que estas mortes são anormais, passa para o The Guardian, e não para o Governo do Catar ou para a Fifa.
Talvez ainda mais revelador sejam as restantes causas de morte: na comunidade indiana, 4% por acidentes no trabalho, 10% por acidentes na estrada, e 6% por suicídio. Revela-nos o próprio The Guardian, que só poderemos apurar, com total certeza, que 4% das mortes dos migrantes indianos, possam, de alguma forma, estar relacionados com o Mundial, apesar de no subgrupo dos acidentes no trabalho, não possamos saber ao certo, o número de mortos relacionados com o Mundial. Talvez também os suicídios possam estar relacionados com a pressão laboral. Porém, os suicídios são um indicador cada vez mais alto em todo o mundo, e pouco ou nada podemos aferir da relação entre suicídios e os projetos do Mundial.
6) Já desfeito o mito de que todas as mortes enunciadas no título estão sequer remotamente relacionadas com as construções para o Mundial, passando a figura de uns exuberantes 6500 migrantes mortos, para 37, podemos subdividir ainda mais o número total de mortos, até chegarmos ao número aproximado do real. O Catar e a Fifa falam em 3. Se assim for, será um número totalmente em linha com a média natural (talvez até um pouco abaixo) de mortos na construção de grandes infraestruturas para mega eventos. No Mundial do Brasil de 2014, morreram 7 trabalhadores, 5 na Rússia e 20 no Euro da Ucrânia/Polónia. Coloco aqui o link para esses números: https://www.ituc-csi.org/IMG/pdf/the_case_against_qatar_en_web170314.pdf
É interessante até ver como esse mesmo relatório que analisa as mortes dos outros eventos desportivos, comete o mesmo erro que o The Guardian, no que toca ao Catar, fazendo parecer que as mortes no Mundial de 2022 foram 200 ou 300% maiores que o normal. Não admira que o título do relatório seja “THE CASE AGAINST QATAR” e comece com a seguinte frase: “O Catar é um País sem consciência”. Citando zero fontes de investigação para chegarem aos dados, afirmam que o Catar já conta com cerca de 100 mortos relacionados com o Mundial.
7) As construções das infraestruturas em torno do Mundial (novo aeroporto, estradas, novas linhas de transporte, etc) começaram em 2010 assim que foi anunciado o vencedor do sorteio para anfitrião deste Mundial. Assim, podemos então comparar a taxa de mortalidade total e até na população migrante ao longo dos anos. Uma real tragédia de mortes, iria certamente ser notada na percentagem de mortes.
Assim, começando pela percentagem de mortalidade ao longo dos anos, desde os anos 2000 que a percentagem da população do Catar que morre por ano tem decrescido consideravelmente. Esperaríamos um aumento de percentagem das mortes compreendidas entre 2010 e 2019 (excluímos os anos de 2020 e 2021 porque as medidas contra a COVID-19 mataram desproporcionalmente em todos os países), mas o contrário é verdade. Em 2010, 0.13% da população morreu, número que tem descido até 2015 ser 0.10%, continuando neste valor até 2019. Assim, pelo menos nas mortes totais por ano, não foram sentidos quaisquer efeitos da suposta tragédia do Mundial.
8) Passemos a um artigo de grande relevância para o tópico que analisou as mortes no Catar, codificando as mesmas em população Catari e não-Catari (ou seja, migrantes). Na verdade, o estudo aponta que o número de mortes no Qatar tem vindo a descer a pique, tanto nos nativos do Catar, como na população migrante. O estudo aponta a melhoria das condições socioeconómicas no Catar, ao longo do tempo como uma das causas da redução da mortalidade, mas também da melhoria do sistema de saúde do Qatar, considerado por rankings internacionais ligados à OMS, como o melhor sistema de saúde do Médio Oriente e o 13º do mundo.
Um olhar detalhado dos números deste estudo, revela que na população migrante, a mortalidade por quedas (logo, mais associadas a acidentes de trabalho), decresceu de 2001 para 2014 de 5.1 para 2.6 por 100 mil habitantes. Estes números indicam como afinal, morre-se de forma natural no Catar.
O estudo também comparou o Catar e os EUA no que concerne a mortes por lesões no trabalho, concluindo que as condições laborais no Catar melhoraram durante o tempo, levando a que migrantes no Catar tivessem uma menor taxa de mortes por acidente no trabalho por 100 mil habitantes (os tais 2.6 em 2014), quando comparados com os 3.4 por 100 mil habitantes nos EUA.
9) Um excelente artigo de análise a esta hype em torno das mortes no Catar, analisou os números e comparou os números do Qatar, com os números nos EUA, chegando a concluir que através de uma amostra aleatória de pessoas entre os 25 e os 44 anos, seria de esperar que 3.280 de cada 2 milhões morressem num único ano civil nos EUA, com base em dados do governo de 2019.
Ora, atirar o número bruto de 6500 migrantes mortos para a frente de ataque é uma das maiores desonestidades estatísticas, quando não existe sequer uma única comparação que possa contextualizar essas mortes. Sim, são mortes. Sim, são trágicas. Mas, lamento ser eu a trazer as más notícias à redação do The Guardian: as pessoas morrem. Todas. Até hoje, sem exceção.
10) Concluíndo, o The Guardian e maioria da imprensa ocidental regurgitante de fontes secundárias, leva a cabo mais uma campanha de pânico desta vez patrocinada por forças geopolíticas que se sobrepõem ao rigor e integridade jornalístico e estatístico. As mesmas táticas de terrível representação estatística utilizada na cobertura da Pandemia de Covid-19, levaram a que certas medidas fossem tomadas, que se vieram a provar desastrosas. O mesmo efeito, tenta-se agora com um evento desportivo.
O Catar é um País com claros problemas laborais e sociais. Não só pelo seu sistema de Kafala que abre caminho a abusos dos direitos humanos e a situações de escravatura, mas também pelas próprias más condições laborais dos trabalhadores em todo o País, independentemente do evento. Porém, o leitor poderá ser surpreendido por saber que o Catar é o país com a menor taxa de mortalidade no mundo. Para ser ter uma ideia, o Qatar tem 1.6 mortes / 1000 habitantes, ao passo que Portugal possui 10.8 mortos / 1000 habitantes. O Catar possui um dos sistemas de saúde mais prestigiados no mundo, e a percentagem de mortes no País tem decaído ao longo dos anos, como vimos no ponto 7).
Não é o sistema ditatorial do Qatar que deve permitir que a “nossa” imprensa tenha o direito de não ser rigorosa no trabalho que faz. Devemos nós passar uma imagem falsa para mostrar uma realidade? Não. Mas é o que é praticado todos os dias nos nossos media. Ao quererem demonstrar as fracas condições de trabalho dos migrantes no Catar, acabam por expôr a sua fome por escândalos e por manipulação de massas, colocando a busca pelos factos no lixo. Não admira que digam que estamos na Era das Fake News.
Assinado por: Tiago Martins, Sociólogo e fundador do Blog “Tratado”
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