O júbilo injectado pela recente celebração de um compromisso de segurança entre os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japão em vários meios, académicos e não académicos, levaram-me a questionar se tal sentimento de fundava no wishful thinking ou na ignorância da história. Por isso, esta simples reflexão. Haverá, no fim de contas, assim tantos motivos para júbilo?
O júbilo injectado pela recente celebração de um compromisso de segurança entre os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japão em vários meios, académicos e não académicos, levaram-me a questionar se tal sentimento se fundava no wishful thinking ou na ignorância da história. Por isso, esta simples reflexão.
Comecemos por invocar George Kennan, que dividiu a política externa dos Estados Unidos em dois períodos: de 1776 a meados do século XIX e desta altura até ao presente.
No primeiro período – realista –, os EUA pretenderam alcançar objectivos básicos que encontraram expressão em documentos como a Declaração de Independência e a Constituição. Os objectivos americanos encontravam-se fixados, limitados e desprovidos de pretensões de benevolência internacional ou de assunções de superioridade moral.
No segundo período – idealista –, os EUA terão perdido a noção do factor de poder e substituíram-no por assunções e objectivos legalistas e moralistas, passando a cultivar um certo espírito de romantismo. Esta mutação, segundo Kennan, pode ser considerada natural e inevitável. Os norte-americanos estavam então satisfeitos com as suas fronteiras e era-lhes grato imaginar um mundo em que os todos os povos se encontrassem também satisfeitos com as suas. Em conformidade, projectaram para o quadro internacional assunções baseadas na sua própria experiência nacional. Acreditando que o seu modelo político e legal tinha contribuído decisivamente para a tranquilidade interna, Washington insistiu na criação de uma ordem internacional equivalente.
Esta tendência foi reforçada no fim da I Guerra Mundial com as ideias do Presidente Wilson de criação de um sistema de segurança colectiva (Sociedade das Nações) e reinventada em 1945 com as Nações Unidas e o sistema de Bretton Woods. Em conformidade com esta lógica e no âmbito da política de contenção, também ela formulada por Kennan, os Estados Unidos forjaram desde o início da Guerra Fria uma rede de alianças (uma das quais a OTAN), que os envolveu na defesa de mais de 50 Estados.
Esta realidade só seria alterada em finais dos anos 1960, quando as circunstâncias induziram Washington a adoptar uma política de retrenchment, em resultado da qual se operou a diluição gradual dos fundamentos da política de contenção. A redefinição da conduta internacional e das prioridades nacionais dos Estados Unidos acabou por ser consagrada pela doutrina Nixon, enunciada publicamente em Guam, em 1969. Assim, da pactomania típica do pós-guerra, Washington passou a uma maior selectividade dos seus compromissos.
A reconstrução da ordem internacional após o fim da Guerra Fria abriu caminho à difusão de um modelo “homogeneizador”, identificado, no plano político, pela democracia representativa e pelos direitos humanos e, no plano económico, pela economia de mercado. Com efeito, as ordens hegemónicas internacionais procuram expandir tanto a sua estrutura política e social como o seu sistema económico (Robert Cox).
Estabelecido que está o quadro geral – dominante – da potência hegemónica, vejamos agora alguns aspectos que ameaçam debilitar (ou debilitam ab initio) os pilares deste compromisso de segurança.
A relação entre os EUA e o Japão ressente-se poderosamente de alguns aspectos que para os vencedores podem ser facilmente esquecidos, mas que não o são pelos vencidos. Assim, temos desde logo o lançamento das duas bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki, em Agosto de 1945. No mês seguinte, teve início “a era da revolução americana” (François Joyaux), durante a qual os americanos vão liderar e pôr em prática um vasto conjunto de medidas visando a erradicação total da velha ordem sociopolítica japonesa e criar as condições para lançar as bases de uma sociedade democrática. Em 1947, os EUA “ofereciam” a Tóquio uma Constituição pela qual o povo japonês renunciava à guerra enquanto direito soberano da nação e o Japão se comprometia a não manter quaisquer forças militares, reais ou potenciais. Por fim, mas não menos importante, refira-se que, durante o período oficial de ocupação (1945-1952), os norte-americanos construíram várias bases militares em Okinawa, a maior das ilhas do arquipélago das Ryukyu. Em 1952, nos acordos para o fim da ocupação, o Japão permitiu que os Estados Unidos conservassem a administração do território, situação que persistiu até 1972. Se Tóquio recuperou o controlo do território, as bases americanas mantiveram-se, ao abrigo do tratado de segurança bilateral de 1960. Não obstante, desde o início que se verificam regularmente manifestações na ilha contra a presença americana, que continua a ser vista como um marco da “colonização” (sic) americana.
Um outro elemento porventura ainda mais fracturante deste compromisso de segurança é a relação entre o Japão e a Coreia do Sul, conhecido que é o “ódio de estimação” que esta nutre por aquele. Recordemos muito sucintamente os motivos que estão na base desta atitude. Após a vitória do Japão na Guerra Russo-Japonesa, Tóquio formalizou o seu controlo sobre a Península Coreana, o que foi consumado em 1905 através do Tratado de Eulsa, que transformou a Coreia num protectorado japonês. Durante o período da ocupação, que durou até 1945, a sociedade e os costumes coreanos modificaram-se profundamente, a indústria e a economia integraram-se por completo no sistema de produção japonesa. O japonês tornou-se a língua oficial com vista a erradicar a identidade nacional coreana e as tropas de ocupação neutralizaram todas as tentativas de rebelião. A partir de 1939, as autoridades nipónicas recrutaram mais de cinco milhões de coreanos para trabalhos forçados e dezenas de milhares de homens foram obrigados a servir no exército japonês. Milhares de jovens e mulheres foram forçadas à escravidão sexual pelos militares japoneses.
Estabelecemos, pois, os fortes aspectos que ameaçam a solidez do compromisso de segurança que abordamos.
Por outro lado, os Estados Unidos regressaram – e este é apenas mais um exemplo – à pactomania tradicional de potência hegemónica, facto que nos traz à memória o que Paul Kennedy escreveu em 1987: “(…) os Estados Unidos correm agora o risco (…) do que poderia ser genericamente chamado «sobre-extensão imperial»: isto é, os decisores em Washington devem enfrentar o facto estranho e duradouro de que a soma total dos interesses e das obrigações globais dos Estados Unidos é hoje muito maior do que o poder do país para os defender todos simultaneamente”.
Por fim, mas não menos importante, tudo isto permite concluir que Washington honrará os seus compromissos, ainda que formalmente institucionalizados? Recordemos apenas, porque o espaço é exímio, o episódio da “crise do Suez”, em que Washington se colocou ao lado do Egipto do seu adversário Nasser contra os seus aliados Israel, França e Inglaterra, estes últimos membros da NATO.
Haverá, no fim de contas, assim tantos motivos para júbilo?
Sérgio Vieira da Silva
Nascido em Lourenço Marques em 1962. Licenciado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa e Doutor em Ciências Políticas pela Universidade Católica de Lovaina (Louvain-la-Neuve). Professor universitário desde 1986 na Universidade Lusíada (1986-2011) e na Universidade Lusófona (desde 2009). Estruturou e criou a licenciatura em Estudos de Segurança da Universidade Lusófona, que dirige desde 2009.