Durante dois anos, fiz parte da chamada nomenclatura da URSS. Acabada a universidade em Moscovo, achei que, em vez de procurar emprego em Portugal, seria mais interessante trabalhar para uma agência ligada ao governo soviético. Não que eu gostasse particularmente do governo, mas as condições eram irrecusáveis: um ordenado de 400 rublos (quando o salário médio local rondava os 190), casa mobilada e diversas outras benesses. Vinda de uma família pobre, a possibilidade de franca ascensão social era muito tentadora.
Eu tinha a perfeita noção de que passava a estar numa situação privilegiada. A parte que mais me agradava era poder comprar em lojas que estavam oficialmente proibidas aos cidadãos soviéticos comuns. As chamadas berioskas eram uma espécie de supermercados com bens ocidentais e produtos de luxo de produção local, onde se pagava exclusivamente em dólares ou outras divisas fortes.
Alguns soviéticos com acesso oficial a divisas podiam comprar nestas lojas, mas quase toda a nomenclatura usufruía da chamada “distribuição especial”: nos órgãos do governo, nas diversas agências do Estado, eram regularmente entregues aos altos funcionários bens de consumo que não estavam disponíveis no comércio em geral (destinado às massas). Podiam ser latas de caviar, produtos alimentares importados e até mobiliário de qualidade.
Se no país do planeamento centralizado ninguém passava fome, para a população em geral não se pode dizer que havia abundância. Em 1982, o PCUS adota um programa que prevê o aumento, até 1990, do consumo diário per capita de diversos produtos alimentares: para 190 gramas de carne; 52 gramas de peixe e marisco; 930 gramas de laticínios; 0,72 unidades de ovos; 370 gramas de legumes e 190 gramas de fruta.
A chamada nomenclatura (classe dirigente) vivia muito melhor. Na URSS, o consumo e o acesso aos melhores bens dependiam, não do dinheiro disponível, mas da lealdade ao Governo e da posição na hierarquia governante. Quanto maior a lealdade e mais alto o cargo, mais fácil era o acesso aos bens e serviços, especialmente aos de maior qualidade.
Nas décadas que se seguiram, este sistema foi totalmente abandonado após a Rússia adoptar a economia de mercado.
Teria o modelo soviético influenciado algumas das práticas atuais? A influência centralizada e hierarquizada do partido governante na economia continua a existir na China, país que avançou exponencialmente quer no crescimento económico, quer nos métodos de vigilância e controlo da população.
O que é afinal o sistema de crédito ou pontuação social chinês?
O chamado sistema de crédito social, é um programa do governo para monitorar e avaliar o comportamento e a confiabilidade de indivíduos e empresas com base nas suas ações. O objectivo declarado do sistema parece justo e meritório: promover a confiança e a honestidade entre pessoas e empresas. Por meio de um sistema de incentivos e penalidades, ele visa monitorar, avaliar e controlar o comportamento financeiro, social, moral e potencialmente político dos cidadãos chineses. Aos indivíduos “confiáveis” são dados benefícios, enquanto aqueles considerados “não confiáveis” são punidos.
Os cidadãos são classificados diretamente no cartão de identificação numa escala de 0 a 950. Com 950 pontos, é um cidadão modelo; com 500 ou menos, é um cidadão “problemático”, “pouco confiável”. O sistema envolve uma extensa coleta de dados para avaliar o comportamento e atribuir pontuações.
O mecanismo de recompensas para motivar o “comportamento positivo” inclui: condições preferenciais de acesso aos serviços financeiros, procedimentos administrativos simplificados e acesso prioritário a serviços públicos; facilidades em viagens, nomeadamente em aeroportos e estações de comboio.
Já as punições para indivíduos “não confiáveis” podem ser as seguintes: acesso restrito a serviços financeiros (recusa de crédito, por exemplo); restrições na compra de bilhetes de comboio ou avião; dificuldades na obtenção de emprego; exposição pública de comportamento reprovável; limitações de acesso a determinados estabelecimentos comerciais; baixa prioridade ou acesso reduzido a serviços públicos, como saúde ou educação.
Como funciona o sistema na prática?
Através da interligação de todas as informações que o Estado possui do cidadão (bancárias, de saúde, da justiça, dos transportes, da rede comercial, das redes sociais, etc.) são coletados dados abrangentes sobre cada pessoa, complementados pelo sistema centralizado de videovigilância.
As relações pessoais também são consideradas, com fatores como a pontuação de crédito de amigos e familiares sendo levados em consideração. A isso acresce o sistema de denúncia por parte dos outros cidadãos nos casos em que uma dada pessoa comete algo “reprovável” (por exemplo. deitou um papel para o chão, atravessou fora da passadeira, discutiu com um polícia ou com o professor dos filhos, fumou num local público ou espalhou notícias falsas nas redes sociais, etc).
Por cada comportamento “reprovável”, são retirados pontos no cartão de cidadão e isso fica imediatamente visível para todos os leitores de documentos de identificação no país. O sistema de pontuação da China tem implicações significativas para a vida pessoal e profissional.
Houve casos de indivíduos cujo acesso a serviços e oportunidades foi negado devido à baixa pontuação.
Estado de vigilância
A implementação deste sistema levanta grandes preocupações sobre privacidade e vigilância. A recolha de grandes quantidades de dados sobre indivíduos e empresas, juntamente com o uso de tecnologias avançadas como reconhecimento facial e a IA, gera temores de que o governo chinês esteja a criar um estado de vigilância distópico.
O sistema carece de transparência e pode ser usado para suprimir a dissidência e punir aqueles que desafiam a autoridade do governo. Além disso, pode ser usado para discriminar indivíduos de determinados grupos étnicos ou religiosos, que podem ser alvo de um maior escrutínio e monitorização.
Diminuir a pontuação pode significar a desqualificação de uma pessoa e sua exclusão social. Este é um grande instrumento de controlo ideológico, com que Estaline e o KGB nunca sonharam.
A existência de estratificação social e de classes sociais é uma realidade em todo o mundo. Ainda assim, na maioria dos países, os governos mantêm na lei a noção de igualdade, ou seja, por mais diferentes que sejam as tuas convicções políticas, cada pessoa deve ter acesso igual aos serviços do Estado e das empresas.
Mas não é assim agora na China: embora o dinheiro continue lá a exercer o papel central no acesso aos bens, a lealdade ao governo e ao respectivo sistema político determina, de forma directa, a posição que cada cidadão possui na sociedade.
Esta é uma engenhosa maneira de manter um constante controlo sobre as pessoas, que na China é vista como uma espécie de “concurso”, enquanto dissuade qualquer forma de dissidência face ao poder constituído.
Não é segredo que a Europa está a “importar” muitas práticas chinesas ou inspiradas nelas, nomeadamente a videovigilância massiva nas ruas ou o rastreador digital de pegada de carbono para monitorizar o que se compra, o que se come e para onde/como se viaja.
Se os europeus acabarem por importar também o sistema de crédito social, transformar-nos-emos – de cidadãos parcialmente livres para seres amestrados, fáceis de controlar e, em última análise, de ligar e desligar com um clic.
Cristina Mestre
Psicóloga e Tradutora