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Tudo o que se relatou no artigo anterior não constitui certamente grande novidade. São questões de ordem conjuntural e concernem factos no terreno que vamos analisando com a passagem dos dias. As situações de guerra real ou virtual, dado o seu imediatismo e o temor que as caracteriza, focalizam naturalmente a nossa atenção. Não obstante, subsistem questões de ordem estrutural que têm merecido uma atenção menos ponderada, quiçá displicente, desinteressada ou, mesmo, relegada a uma certa marginalidade e que podem revelar-se bem mais importantes que os cenários de guerra referenciados

Temos perante nós 2 questões de fundo: a Nova ordem digital global e as guerras culturais em curso, i.e. o confronto de valores, princípios e referências.

A Nova Ordem digital global não é dirigida por nenhum país. Não se trata de um mundo, uni, bi ou multipolar, conceitos que aqui não têm cabimento. Trata-se, outrossim, do controlo global, sem fronteiras ou baias, pelas empresas de alta tecnologia digital, que lidam com a Inteligência Artificial, com a nanotecnologia, com a robótica avançada e com os algoritmos. Deparamo-nos com uma tecnologia dominante e que a breve trecho será preponderante e exclusiva, Se as guerras na Ucrânia e na Palestina já são conduzidas e controladas pela alta tecnologia digital, entre outros domínios: nos sectores das telecomunicações, da informação e contrainformação, dos mísseis balísticos e das defesas anti-mísseis, etc..  A ordem digital também permite – e de que maneira – a desinformação, a propaganda, a proliferação das teorias da conspiração, o mundo virtual fake e, acima de tudo, o controlo total dos cidadãos. O caminho para o globalismo transhumanista está, pois, aberto. Por conseguinte, a partir do momento, em que tudo isto foge ao controlo dos estados democráticos, a democracia acabou e a distopia orwelliana instala-se.

No que respeita às guerras culturais em curso, por culpas próprias e não só, a civilização e cultura ocidentais estão aparentemente num beco sem saída, num fim de ciclo ou, mesmo, segundo alguns, a entrar em colapso.

A religião woke, porque de uma religião se trata, com a sua fé arreigada, os seus dogmas, os seus mandamentos, os seus pecados originais, os seus rituais, passou da anglo-esfera disseminando-se por todo o mundo ocidental e contaminando a sociedade. Não se trata de um epifenómeno ou de uma moda efémera, mas algo que veio para ficar que tem raízes e que marca a agenda política.

Podemos definir “woke”, como um movimento que defende a justiça social, numa perspectiva radical de esquerda, relativamente a temas, tais como, o  racismo, o sexismo, a homofobia, a transfobia, o ambientalismo, o vegetarianismo, no quadro de um combate activo e militante a todas as formas de discriminação e que implica um corte com o passado, porquanto se visa a criação de uma nova cultura e ipso facto  o cancelamento de qualquer voz dissonante.   

Trata-se, pois, de uma batalha cultural sem quartel em que se pretende impor, pela via totalitária, uma alteração da matriz cultural do Ocidente, visando-se criar o homem novo numa sociedade nova, erradicando-se, assim, o passado, por definição, nefasto.   

O que o escritor inglês Douglas Murray nos diz, logo na introdução da sua obra “The War on the West”, é claríssimo “Nos últimos anos, tornou-se evidente que há uma guerra em curso: uma guerra contra o Ocidente. Isto não é como nas guerras anteriores, onde os exércitos se chocam e os vitoriosos são declarados. É uma guerra cultural, e está a ser travada sem remorsos contra todas as raízes da tradição ocidental e contra tudo de bom que a tradição ocidental tem produzido”.

O  wokismo obedece a 7 ou 8 grandes linhas de força:

– a justiça social é o objectivo último a alcançar,

– a justiça social salienta a representação, inclusão e valorização de grupos historicamente marginalizados (étnicos, de género, de minorias sexuais, religiosos, linguísticos, nacionais, de regimes alimentares,  de incapacidade física e/ou motora, de protecção ou de preservação ambiental, etc) que não se quadram completamente na sociedade e nos parâmetros políticos, sociais e culturais por aquela definidos e genericamente aceites

– o acento tónico recai na identidade individual e colectiva (entenda-se a identidade própria do  grupo “oprimido”)

– a ideologia de género é, na realidade uma construção social, não existindo apenas dois géneros (masculino e feminino), mas uma multiplicidade, espectro ou constelação de géneros  que não se identifica com as designações tradicionais de macho e fêmea, mas antes constitui um produto histórico-cultural da própria sociedade que não tem nada a ver com a biologia, que, aliás, em termos práticos, ignora.

– a interseccionalidade implica a interconexão entre as várias fases de opressão e de discriminação. É o reconhecimento que cada um tem das suas próprias experiências únicas de discriminação e opressão e deve-se  tomar em consideração toda e qualquer característica  que possa marginalizar as pessoas – género, raça, classe, orientação sexual, nacionalidade, capacidade física, etc

– a “correcção política” – a linguagem expressa é fundamental para evitar a marginalização e tudo o  que possa ser percebido como ofensivo. Neste sentido, existem macro e micro ofensas.

– a abolição do discurso de ódio que é de uma enorme abrangência e vacuidade (juridicamente é uma espécie de all and everything, cabe lá tudo e mais alguma coisa), suscitando um sem-número de problemas pertinentes: quem o define? Quem o proíbe? Quem o pune e com que autoridade?

– a cultura de cancelamento é o colmatar desta filosofia: tudo o que soe a discurso de ódio ou não se conforma aos parâmetros “woke” é banido, daí a severidade das acções punitivas que visam a exclusão de quem ofende da vida social (emprego, academia, instituições) e que são amiúde  atentatórias da liberdade de expressão.

Depois desta breve síntese, permitam-me que conclua referindo que permitimos absurda e permissivamente o desenvolvimento de uma  esquerda anti Ocidente, acompanhada e incentivada pelo hiper-liberalismo, pelo egoísmo anti-comunitário, pelo abandono dos valores construídos ao longo do tempo. Tudo isso e muito mais são consequência directa da progressiva relativização dos princípios e da tolerância dela decorrente.

A batalha ainda não está perdida, mas as ameaças são imensas e desconhece-se a nossa vontade e a capacidade real de resiliência.

Francisco Henriques da Silva

Embaixador, Vice-Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Sociedade de Geografia, autor.

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