Em 2019, diversos fóruns e entidades europeias preparavam as linhas condutoras para a nova estratégia de investimento da economia da defesa europeia, que viria a dar origem à vertente económica do Conceito Estratégico de Defesa Europeu, publicado em março de 2022 e que ficou conhecido como Strategic Compass. Tive a oportunidade de acompanhar alguns dos trabalhos preparatórios deste documento e ser confrontado com os constrangimentos que se colocam ao desenvolvimento da indústria de defesa europeia (centralismo da Comissão Europeia, miopia em torno do Fundo Europeu de Defesa, intransigência e fundamentalismo relativamente aos critérios ESG, irredutibilidade do Banco Europeu de Investimentos em financiar empresas que queiram participar na indústria de defesa europeia, isto só para falar dos mais importantes) .
No entanto, o Conceito Estratégico de Defesa da NATO, divulgado na Cimeira de Madrid de 29 de Junho de 2022, ao apontar a Rússia como principal inimigo do mundo ocidental e a China como principal ameaça, deitou por água todo este trabalho, colocando a NATO no centro das decisões e a União Europeia como mero follower, situação a que muito ajudou o mau desempenho das instituições europeias. Hoje a Europa é uma sombra de si própria, uma filial dos EUA a nível militar e geoestratégico, tendo reduzido substancialmente as trocas comerciais com os blocos que aos americanos não interessam: China, Rússia, Médio Oriente, África e até mesmo Índia.
Estamos cada vez mais isolados e dependentes dos norte-americanos, sujeitos a que Donald Trump, caso venha a ser presidente (tudo aponta para isso), faça à Europa o mesmo que fez à Grã-Bretanha no dia seguinte à vitória do Brexit, isto é, nos deixe entregues à nossa sorte. Os EUA têm vindo a eliminar as nossas possibilidades de sermos independentes em termos energéticos, militares, comerciais ou financeiros.
O resto temos feito nós, sobretudo os setores mais fundamentalistas do ambiente, que fazem aprovar leis cada vez mais exigentes para a agricultura, a indústria, o turismo e todas as atividades económicas, quando a Europa é responsável apenas por 6,7% das emissões de gases de estufa mundiais.
Em termos militares, a maioria dos decisores idolatram os EUA e sentir-se-iam quase órfãos se a sua influência diminuísse na Europa. Desde sempre habituados a trabalhar com equipamento americano, manifestam reservas relativamente às opções europeias, que preferem não utilizar.
A recente introdução do tema do perigo de invasão russa e da necessidade de desenvolver a indústria de defesa europeia tem muito mais de político que de eficácia militar. Já a pensar nas próximas eleições europeias em junho, não é dado especial relevo ao aumento da capacidade de produção, mas sim ao financiamento e coordenação entre os Estados-Membros nas aquisições de equipamento. Mais uma vez, para além dos soundbites da comunicação social, “a montanha pariu um rato”.
A nova Estratégia Industrial de Defesa Europeia (EIDE), lançada com pompa e circunstância a 5 de março pela Comissão Europeia, é curta e ineficaz, limitando-se a quantificar o foco na compra de equipamentos militares, sem apontar diretamente caminhos para resolver os principais problemas existentes: como fomentar a recuperação da indústria e defesa europeia e como financiar este objetivo. Quanto ao primeiro, a EIDE aponta a BTIDE (Base Tecnológica de Indústrias de Defesa Europeias) como alavanca para a recuperação deste setor, limitando-se a sublinhar o papel do Fundo Europeu de Defesa (FED) no apoio à inovação e a necessidade de coordenação entre Estados-Membros na prossecução deste objetivo e na segurança da cadeia de fornecimentos.
No que respeita ao financiamento, apesar de disponibilizar 1,5 biliões de euros para aumentar a “prontidão” da indústria de defesa europeia, a EIDE limita-se a reforçar a necessidade de acesso da BTIDE ao financiamento, admitindo que este possa ser quer público quer privado (bancos e/ou investidores). Relativamente ao Banco Europeu de Investimentos (BEI), a Comissão Europeia vem agora dar um prazo até ao final de 2024 para que esta instituição possa rever as suas políticas de crédito, limitando-se a reafirmar que a indústria de defesa europeia cumpre os critérios ESG (environmental, social and governance) e a taxonomia associada.
Na realidade, o desenvolvimento da indústria de defesa europeia carece de fortes investimentos no recondicionamento das empresas, investimentos esses que o Fundo Europeu de Defesa não apoia e que o Banco Europeu de Investimentos e os outros bancos não financiam. Depois, nada ficará operacional antes de 3 a 5 anos, os produtos não ficarão no mercado antes de 5 a 10 anos, não serão competitivos antes de 10 a 15 anos. Por outro lado, dominada por ideologias liberais, a Europa decerto não irá adotar medidas protecionistas para com os equipamentos de defesa europeus, em detrimento dos equipamentos norte-americanos. Segundos informação da EDA (European Defense Agency), entre as 10 maiores empresas mundiais do setor da defesa, seis são americanas (as cinco primeiras e a oitava), 3 são chinesas e uma é britânica. Os equipamentos europeus continuarão a estar anos-luz atrás dos norte-americanos e, quanto aos investimentos em defesa associados às diversas Leis de Programação Militar que se sucederem no tempo, os equipamentos norte-americanos continuarão a ser preferidos.
Um aspeto interessante é o compromisso da Comissão Europeia, no quadro da EIDE, para iniciar em parceria com os Estados-Membros um diálogo de alto nível com bancos e investidores para intensificar a sua participação no financiamento da indústria de defesa europeia, identificar dificuldades e encontrar formas de estimular o sector privado para apoiar investimentos em defesa. Sabe-se que existem, sobretudo na Europa Ocidental (Holanda, Alemanha, Bélgica, Áustria, Dinamarca e outros países), capitais privados interessados em investir na indústria de defesa europeia (sobretudo fundos de pensões associados ao setor público administrativo). Existem já contatos mantidos com a DEFIS (a Diretoria-Geral para a Indústria da Defesa e Espaço da Comissão Europeia) e com o SEDE (Sub-Comité de Segurança e Defesa do Parlamento Europeu), mas o grande obstáculo até ao momento tem sido a irredutibilidade dos Estados-Membros em aceitarem este financiamento privado nos seus investimentos em defesa, mesmo que num modelo de parcerias público-privadas, no qual cada Estado manterá o total controlo e decisão sobre cada investimento.
José Alberto Pereira
PhD, Wagner Watch Project, Observatório Segurança & Defesa SEDES