A primeira e grande causa da patologia crónica do sistema de justiça português, tem sido o equívoco deliberado do legislador em elaborar quadros normativos que deviam ter como destinatário os interesses e direitos dos cidadãos como consumidores e utentes dessa justiça, como proclama a constituição da república que consagra que a justiça é feita em nome do povo e para o povo. Ao invés veem só e apenas servir o interesse do próprio sistema de justiça em termos orgânicos, funcionais e dos diversos operadores aos mais variados níveis que sem surpresa têm sido os principais mentores e os mais acérrimos defensores dessas causas.
Para tanto, tem bastado ao legislador, na lógica do jargão popular que com papa e bolos se enganam os tolos, fazer aprovar ao longo de décadas pseudas reformas no quadro jurídico normativo, ao sistema organizacional e funcional nas mais variadas áreas da justiça, que ao invés de virem priorizar uma justiça para o cidadãos, tiveram a bondade de virem habilidosamente desproteger e obstaculizar o cidadão do direito à justiça e ao acesso a essa justiça, quer pelos custos processuais, quer pela obrigatoriedade de constituição de advogado na demanda, mesmo em causas de menor relevância, com o artifício que essa desproteção seria alegadamente suprida por um apoio judiciário, mas que só opera na prática ao nível do cidadão indigente. Outra das causas patológicas, que mais não foi que uma forma ardilosa de desproteger o cidadão no seu direito à justiça em beneficio exclusivo do sistema organizacional e dos seus operadores, foi a transformação administrativa de coimas e taxas em dividas fiscais em que o cidadão destinatário da justiça tenha o direito ao contraditório a não ser através do pagamento de uma caução que, em termos práticos, é o mesmo que pagar sem direito a justiça, privilégio esse que também foi estendido ilegitimamente a várias entidades privadas com fundamento na prestação de serviço publico. Em termos orgânicos, a patologia tem também grande causa no fecho de tribunais e, quando não fechando, extinguindo-se valências com fundamento numa especialização com o objectivo de uma pseuda justiça mais célere e eficaz que, como está amplamente comprovado, nunca produziram efeitos positivos, e quando produziram foram sempre no sentido inverso ao proclamado e em prejuízo do cidadão destinatário.
Em termos funcionais, esta patologia tem causa pela aprovação generalizada de um sistema de justiça mercantilizado, em particular dos tribunais criminais que, enquanto, órgãos de soberania, quase foram equiparados a uma autoridade administrativa tributaria e fiscal, com as penas previstas a aplicar a serem quase em exclusivo ou dominantemente de natureza pecuniária, embora se apresente em termos normativos dissimuladas como alternativa ao cumprimento de pena carcerária efectiva, que tem como único objectivo angariar e cobrar receita para o orçamento de estado e não para feitura de justiça na modalidade de prevenção geral ou especial e muito menos retributiva.
Para esta patologia, também não é despiciendo o total silêncio cumplicie dos tribunais como órgãos de soberania, que não só nunca se opuseram contra esta lógica de pseudo reformas de natureza desorgânica, disfuncional e mercantilista, como foram mentores e totalmente coniventes e colaborantes com os órgãos legislativo e executivo, quando era mais que evidentes que estas ao invés de virem em beneficio da justiça e do cidadão utente, vinham apenas obstaculizar ou obstruir a justiça e o acesso a essa justiça, bem como o uso abusivo desses tribunais como mais um órgão para a recolha e cobrança coerciva de receita para o orçamento de estado.
A estas causas pode-se acrescer a imensurável prolixidade de normativos que se sobrepõem ou se contrariam e anulam juridicamente, bem como um imensurável ordenamento jurídico prolixo com a criminalização de desvalores jurídicos sem qualquer relevância penal, a não ser obstaculizar a celeridade ou obstruir o sistema de justiça no seu todo, desvalores que deviam ser apenas sindicados por uma mera autoridade administrativa sem os custos de um órgão de soberania e o ritual processual desajustadamente moroso.
Como última causa para esta patologia crónica e que comparativamente tem maior relevância que todas as outras, é o auto convencimento do operador julgador que a justiça não é para o povo e cidadão, tal como está consagrado constitucionalmente, mas para em exercícios de eloquência e retórica filosófica sem qualquer utilidade ou interesse para o cidadão utente, num ritual processual moroso, exaltar o seu enaltecimento pessoal em relação a todos os outros, ao que acresce um paradigma de narrativa que trilha a prolixidade normativa de páginas e páginas de repositório completamente inútil, ao invés de simples, claro e objectivo com apenas o estritamente exigível e no menor número de páginas.
Não menos importante, o descontrole e falta de escrutínio efectivo aos candidatos a magistrados, seja para a carreira de juiz de direito, seja de procurador do Ministério Público, sobre as origens, graus de parentesco e outros eventuais interesses que representam, mas que todos operadores forenses, poderes legislativos e executivos fingem inexistir só porque são cumpridas certas formalidades legais e aferidos porventura com rigor alguns conhecimentos técnicos.
Para finalizar, dizer que esta patologia tem ainda uma causa indirecta muito pouco ou nada equacionada, que tem a ver com o pouco ou nenhum escrutínio publico do cidadão utente que tem génese na sua enorme iliteracia jurídica, iliteracia essa que é também genericamente acompanhado por muita comunicação social de referência, não só devido à falta de isenção, como ao facto de estarem indubitavelmente comprometidas com os interesses, que tem levado a nunca estarem disponíveis para o escrutínio das causas, mas sempre disponíveis para difundir soluções iníquas para as consequências dessas causas que não escrutinam.
José Ventura
Licenciado em direito, Mestre em ciência jurídica e criminal, Jurista (aposentado)