Desde a proibição de livros e filmes na URSS, passando pela Grande Firewall na China e pela atual proibição de sites e limitação de opiniões nos países ocidentais, nenhum dos governos acha os cidadãos suficientemente capazes de procurar a verdade por si próprios.
Comecemos com um pouco de História: em 1948, a URSS comprou o filme americano “As Vinhas da Ira” para mostrar à sua população todas “as mazelas do capitalismo”. Mas a exibição pública do filme nos cinemas soviéticos foi quase imediatamente proibida sem se saber porquê. Suspeita-se que foi por o filme mostrar como os pobres agricultores americanos viviam um pouco melhor do que se imaginava.
Outros filmes estrangeiros proibidos na URSS incluem “E Tudo o Vento Levou”, “O Padrinho” e até a “Guerra das Estrelas”. Neste último, os censores viram na “força negra” (dark force) uma alusão à URSS. A censura soviética justificava o carácter “prejudicial” de determinada obra por ela “distorcer os factos históricos”, ou “colocar figuras decadentes no lugar de personagens positivas”.
O Estado chegava a proibir filmes produzidos no próprio país: de 1926 a 1984, foi cancelada a exibição de 97 filmes de ficção de realizadores soviéticos. O mesmo se passava com livros, peças de teatro e até obras musicais nacionais. Embora estes factos sejam sobejamente conhecidos, é importante recordá-los para enquadrar a situação em que actualmente vivemos no “Mundo Livre”.
Voltemos ao nosso século. Na China, o sistema de censura na Internet, conhecido como a Grande Firewall, existe desde 2000, quando o Ministério da Segurança Pública lançou o Projeto Golden Shield – um mecanismo gigante de censura e vigilância destinado a restringir conteúdo, identificar e localizar indivíduos e fornecer acesso imediato a dados pessoais. Sites como o Gmail, Google, YouTube, Facebook, Instagram, Twitter, bem como todas as edições da Wikipédia, estão bloqueados na China. O mesmo acontece com o WhatsApp, Messenger, Telegram, Signal, Line ou Viber. Os cidadãos chineses, que usam versões domésticas similares, podem ser presos por vender VPNs ou multados por simplesmente usá-las. As informações críticas em relação ao governo são consideradas “antipatrióticas”, vindas de “forças anti-China”. É importante dizer que os jovens chineses, especialmente os que começaram a faculdade depois de Xi Jinping assumir o poder, estão entre os que defendem e apoiam a Grande Firewall.
E nós, somos diferentes?
O mais triste disto tudo não é estes dois grandes países orientais limitarem claramente a liberdade de expressão e de pensamento: afinal todos os regimes autoritários no mundo sempre o fizeram para manter o poder. Ou talvez esses povos gostem de viver assim. O mais triste é estarmos nós, no Ocidente dos direitos humanos, a trilhar o mesmo caminho.
Na União Europeia, entrou em vigor este ano a Lei dos Serviços Digitais, anunciada como destinada a “proteger” os cidadãos da “desinformação”. Conceitos como “controlar as práticas online”, “moderar conteúdos”, “denunciar conteúdos ilegais” passaram a fazer parte do léxico dos nossos legisladores.
No Canadá, Justin Trudeau está a tentar aprovar o projeto de lei C-63, que tornará ilegal “expressar ódio na Internet”. O novo projeto de lei prevê multas e pena de prisão para “crimes de ódio”, que podem ir até à prisão perpétua. A lei também dará aos juízes o poder de colocar um cidadão em prisão domiciliária se temerem que ele possa cometer um crime de ódio no futuro. Os críticos alertam que o projeto de lei draconiano representa um abuso de poder e pode sufocar a liberdade de expressão e discussões complexas, pois não distingue entre manifestações de ativismo político e “discurso ofensivo”. Muitas formas de expressão podem ser interpretadas como “odiosas”.
“Como algo saído de uma fantasia de terror de ficção científica, o projeto de lei permite ao governo condenar, multar e prender para o resto da vida pessoas que não cometeram nenhum crime de expressão, mas que poderão fazê-lo no futuro”, disse o apresentador Bob Metz no programa de rádio Just Right.
Na Escócia, entrou em vigor este mês uma lei similar (The Hate Crime and Public Order Bill), que cria um novo crime de “incitamento ao ódio”, com penas de até sete anos de prisão. Em Israel, o Parlamento aprovou uma lei que permite ao Ministério das Comunicações impedir as emissões e confiscar equipamento de televisões estrangeiras, quando as considere uma ameaça à segurança nacional.
Ucrânia, uma guerra de percepções
Após o início da guerra na Ucrânia, a União Europeia e os EUA bloquearam diversos meios de comunicação russos (RT, Channel 1, Sputnik). A UE criou um serviço especial para combater a chamada “desinformação russa”. Bruxelas não quer que os cidadãos europeus tenham acesso à informação do país adversário.
Como sabemos, os líderes políticos de todos os grandes países utilizam os mass media para tentar inibir ações contrárias aos seus interesses e promover as suas próprias ideologias. Além disso, utilizam as companhias de “big data” para recolher dados e fazer avaliações.
Assim sendo, esquecem-se os decisores europeus que a “nossa” informação nos media tradicionais, longe de ser sempre verdadeira, é igualmente produto da nossa “comunicação estratégica”.
Estamos ou não em guerra com a Rússia? A julgar pelos esforços no fornecimento de armas, pelos milhares de milhões de euros canalizados para Kiev, já estamos. Ora, se estamos em guerra, então já somos todos alvo, no Ocidente, das “nossas” campanhas de comunicação para preparar e modelar a opinião pública, ou seja, para ganhar “os corações e as mentes” das populações.
Como os militares saberão melhor que eu, estas campanhas visam mudar as percepções. Sabemos que a percepção da população é um elemento fundamental para o sucesso de qualquer missão militar e que esta não é só uma guerra no sentido tradicional do termo, como também um conflito de interpretações.
Nenhum dos governos acha os cidadãos suficientemente capazes de procurar a verdade por si próprios. Na verdade, ninguém quer que encontremos a verdade.
Já que, como cidadãos, estamos a ser alvo de campanhas de comunicação quer da potência hegemónica e seus aliados, quer das grandes potências ascendentes, há que ter noção de que os apelos a limitar a “desinformação” não passam de tentativas de limitar a informação “inconveniente” vinda dos adversários, sejam eles externos ou internos.
“Combater a desinformação” é um subterfúgio para obrigar os cidadãos a aceitar apenas a “nossa” informação – e aceitar só aquela que é permitida pela chamada “moderação de conteúdos”, ou seja, pela censura.
E que tal ensinar os cidadãos a pensar? Estimular o espírito crítico, a saber, distinguir informação verídica de informação manipulada? Estimular o uso de instrumentos para procurar a verdade neste caos informativo? E que tal não taxar liminarmente uma caricatura, um meme, como “fake news” ou “discurso de ódio”, mas ensinar a distinguir o humor, o sarcasmo como algo permitido numa sociedade livre?
Nos anos do Estalinismo, quem contasse qualquer anedota política podia ser acusado de ser “inimigo do povo” e preso.
Hoje, no nosso “mundo livre” estamos muito perto disso.
Cristina Mestre
Psicóloga e tradutora
Licenciada em Neuropsicologia pela Universidade de Moscovo (MSU), nos últimos anos tem trabalhado principalmente como tradutora e editora em agências de notícias do Leste da Europa.