Analisar o nível de conflitualidade atual do Médio Oriente e as suas perspetivas geoestratégicas com base no recente conflito israelo-palestiniano parece-nos reducionista, desfocado e de certa forma obtuso. No entanto, esta é a realidade do momento e é por ela que começamos.
Efetivamente, o conflito subsiste desde a data de criação do Estado de Israel, 14 de maio de 1948, com episódios macabros e sangrentos como a guerra do Yom Kippur, os massacres de Munique, Sabra e Shatila, a operação Vinhas da Ira, as intifadas e um sem número de atentados com milhares de vítimas de ambos os lados. Mais recentemente, os escândalos em torno de Benjamin Netanyahu e do seu partido Likud obrigaram a uma aliança com três partidos ultraortodoxos de extrema-direita, para conseguirem formar governo. Entre eles encontrava-se o Otzma Jehudit, ou Poder Judeu, do extremista Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir. Assente nesta coligação, o governo tem promovido a expansão dos colonatos judaicos ilegais em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia, assumindo inclusivamente o seu desejo de invadir e anexar a Judeia e a Samaria.
Do outro lado, a Autoridade Palestiniana, sob o comando do doente e idoso Abu Mazen, está a tornar-se cada vez mais impopular, dada como inoperante, fraca e corrupta. Assim, à medida que cresciam os ataques dos colonos judeus e do exército israelita, as milícias armadas ganharam apoio entre os palestinianos na Cisjordânia, nomeadamente as Brigadas Jenin e o Hamas. A Faixa de Gaza de há muito que é assumida como o “inferno na Terra”. Densamente povoada, ferozmente bloqueada por Israel e pelo Egipto, a ineficácia da Autoridade Palestiniana empurra os seus habitantes para soluções extremistas e violentas. Foi o que aconteceu a sete de outubro. No entanto, é estranha a proveniência de um tamanho arsenal (quase 10.000 rockets lançados, pelo menos mais 15.000 em stock em Gaza e outros 200.000 com o Hezbollah, provavelmente no sul do Líbano), cuja origem e tipologia não é nunca descrita pela comunicação social. Apesar de se argumentar com a proveniência iraniana e russa deste equipamento, desde há mais de um ano que diversos think-tanks europeus chamam a atenção para a possibilidade de parte do arsenal que os aliados têm colocado na Ucrânia estar a ser desviado pelas mafias e vendido no mercado negro, tendo já sido detetado algum deste equipamento em campos de refugiados no sul do Líbano. O mesmo se poderá dizer do arsenal que as tropas norte-americanas deixaram para trás na sua retirada do Afeganistão. Fazendo face a um fortíssimo bloqueio económico, não surpreenderá que o regime taliban avance também para a venda destes equipamentos no mercado negro. Apesar de não existirem provas, é uma possibilidade a não descartar.
Mas enquanto israelitas e palestinianos se digladiam, o mundo árabe observa atentamente e procura indicações para posicionamento futuro. Como há dias referia um comentador internacional, o futuro do mundo árabe joga-se na Faixa de Gaza. Na primeira linha, com grande atenção, estão a Arábia Saudita, o Irão e sobretudo a Turquia.
Na Arábia Saudita, o rei Salman bin Abdulaziz Al-Saud tem 87 anos e sofre de Alzheimer. Ao contrário do que manda a tradição na Casa de Saud, o rei delegou a pasta de primeiro-ministro no seu filho, o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman bin Abdulaziz Al-Saud. Aos 38 anos de idade, Mohammed bin Salman é o senhor todo poderoso da Arábia Saudita. Os Estados Unidos da América, que através da CIA o implicaram na morte do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018 em Instambul, e que continuam a apelida-lo de ditador, jogaram na carta errada. Mohammed tem-nos feito pagar bem caro: controla a OPEP desprezando os interesses norte-americanos, aderiu aos BRICS em agosto passado e reatou relações com o Irão. São dores de cabeça seguidas para a estratégia norte-americana no Médio Oriente, que não soube entender o potencial deste jovem príncipe no país e no mundo árabe.
Experiente e matreiro como um turco sabe ser, Recep Tayyip Erdogan aguarda pacientemente o desenrolar dos acontecimentos. Os seus objetivos estão traçados há muito: quer expandir a
influência turca numa área cada vez mais alargada e, com base neste neo-colonialismo, quer ver a Turquia na liderança do mundo árabe, tirando deste lugar a Arábia Saudita. Erdogan venceu as eleições presidenciais do passado mês de maio, ganhando à segunda volta a uma coligação de seis partidos, apoiada pelo mundo ocidental. Avança para mais cinco anos de presidência, a juntar aos nove anos anteriores, ao mesmo tempo que o seu partido AKP ganhava a maioria absoluta no parlamento turco. De novo os Estados Unidos da América e o mundo ocidental jogaram na carta errada, e também Erdogan já os está a fazer pagar este erro político, tomando o papel de valete nas conversações entre russos e ucranianos/aliados e intervindo indiretamente em conflitos regionais de países vizinhos, ao mesmo tempo que inviabiliza diversas ações da NATO no conflito ucraniano, aliança na qual possui o segundo maior exército.
A estratégia de expansão turca tem vindo a ser delineada ao longo da presidência de Erdogan e assenta sobretudo em cinco eixos de desenvolvimento: um eixo europeu, focado no bom relacionamento que o país mantém com a Áustria, desde os tempos do Império Austro-Húngaro, e orientado sobretudo para os países dos Balcãs; um segundo eixo, focado nas ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central (Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Uzbequistão); um terceiro eixo, focado nos países do médio oriente (Síria, Iraque e Irão); um quarto eixo, focado no norte de África, nomeadamente no Egipto e Sudão, orientado à proximidade e controlo do Canal do Suez; um quinto eixo, igualmente focado no norte de África mas orientado para a Líbia, com apoio concreto ao governo de Tripoli e com potencial expansionista para a Tunísia e Argélia. Os objetivos diretos desta estratégia são o reforço das parcerias politicas-económicas-militares com estes países, o reforço do posicionamento geoestratégico turco nestas geografias e a captação de recursos naturais. Por vezes, a intervenção inclui também ações militares, que ficam a cargo da PMC (private military company) turca denominada Lobos Cinzentos (Grey Wolves).
Duas chamadas de atenção para duas situações peculiares: a Síria e a questão curda. Quanto à primeira, o presidente Bashar al-Assad foi reabilitado, a Síria foi reintegrada na Liga Árabe e esteve presente na cimeira de Jeddah, na Arábia Saudita. Quanto à segunda, foi notória a capacidade negocial de Erdogan na NATO, condicionando a entrada de Finlândia e da Suécia à repatriação dos dissidentes curdos residentes nesses dois países. A perseguição ao povo curdo não é um exclusivo da Turquia, mas antes uma estratégia regional consertada (Turquia, Síria, Iraque, Geórgia, Arménia e Azerbaijão) que visa empurrar o povo curdo para o Irão.
No que respeita ao Irão, o regime dá mostras de pouca ou nenhuma abertura. Péssimos no que respeita a liberdade e direitos humanos a teocracia iraniana tem, no entanto, progredido em termos de tecnologia militar, nomeadamente na produção e sofisticação de drones, mísseis e outros artefactos. A recente adesão aos BRICS, em simultâneo com a Arábia Saudita, diz muito sobre a nova estratégia de relacionamento entre estes dois países. Até mesmo o conflito no Iémen, que opõe o governo local (apoiado pelos sauditas) e os rebeldes Houti (apoiados pelo Irão), parece estar a entrar numa nova fase, com estes rebeldes a declararem guerra a Israel e a dispararem mísseis contra a Faixa de Gaza. O foco do conflito, que tinha subjacente o controlo do estreito de Bab El-Mandab e a entrada do Mar Vermelho, controlando o seu curso até às barragens do norte do Egipto, parece estar ultrapassado face às circunstâncias atuais.
José Alberto Pereira
PhD, Wagner Watch Project, Eurodefense Portugal
Doutorado em gestão, especialista em geoestratégia, economia da defesa e Grupo Wagner. Professor, investigador, escritor, poeta, viajante e fotógrafo. Rotário, ativista social, melómano e filantropo.
Referências
Carter, J. (2006). Palestine: Peace Not Apartheid. New York, NY: Simon & Schuster
Gelvin, J. (2021). The Israel-Palestine Conflict: A History. Cambridge: Cambridge University Press
Morris, B. (1997). Israel’s Border Wars, 1949-1956: Arab Infiltration, Israeli Retaliation, and the Countdown to the Suez War. Oxford: Clarendon Press
Popovich, E. (2014). A Classical Analysis of the 2014 Israel-Hamas Conflict. in CTC Sentinel, Nov/Dec 2014, vol. 7, nº 11, pp. 20-24.
Roy, S. (2006). Failing Peace: Gaza and the Palestinian-Israeli Conflict. London: PlutoPress
Ver também
HAMAS – ISRAEL PROCURANDO CONHECER AS REGRAS DO JOGO – The Blind Spot