Porque não vivemos em democracia

ByMaria Afonso Peixoto

2 de Janeiro, 2025
Primeira Sessão PlenÔria da XVI Legislatura - Eleição do Presidente da Assembleia da República. 26 de março de 2024. 10H00 e 15H00. Sala das Sessões, PalÔcio de São Bento.

Nós, europeus, jĆ” perdemos a conta ao nĆŗmero de vezes que ouvimos concidadĆ£os, agentes polĆ­ticos ou burocratas nĆ£o-eleitos falar da nossas democracias liberais como se fossem o bem mais precioso que temos. Quase nĆ£o passa um dia em que nĆ£o haja alguĆ©m a dissertar no espaƧo pĆŗblico sobre a importĆ¢ncia de proteger a ā€œdemocraciaā€ dos movimentos populistas de direita radical que a ameaƧam.Ā Ā 

No entanto, grande parte destes discursos fervorosos em defesa da democracia denotam uma profunda ignorĆ¢ncia quanto Ć  essĆŖncia de um Estado verdadeiramente democrĆ”tico, repetindo apenas clichĆ©s e frases feitas – que em Portugal, invariavelmente, incluem o 25 de Abril.Ā Ā 

Por outro lado, a hipocrisiaĀ  patente nas ā€˜juras de amor’ que polĆ­ticos e burocratas nĆ£o-eleitos fazem Ć  democracia, nĆ£o obstante serem, os próprios, os responsĆ”veis pela corrosĆ£o dos ideais democrĆ”ticos, Ć© quase insuportĆ”vel.Ā Ā 

Efectivamente, a ā€œdemocraciaā€ que todos estes grupos dizem defender nĆ£o passa de uma fachada. E no livro ā€œDĆ©mocratie: le problĆØmeā€, lanƧado hĆ” 40 anos e traduzido para inglĆŖs em 2011 com o tĆ­tulo ā€œThe problem of democracyā€ [O problema da democracia], o intelectual frĆ¢nces Alain de Benoist explica (muitĆ­ssimo bem) porquĆŖ.Ā 

ā€œUma democracia Ć© a participação de um povo no próprio destinoā€ (Moeller van den Bruck)Ā 

Se concebermos a democracia como um sistema assente no poder do povo atravĆ©s de um envolvimento activo nas decisƵes tomadas, Ć© fĆ”cil concluir que, hoje, esta participação Ć© tĆ£o irrisória e simbólica, que a soberania popular jĆ” Ć© pouco mais do que uma miragem. O poder estĆ” hoje nas mĆ£os de grandes corporaƧƵes ou entidades supranacionais. A ā€˜fatia de leĆ£o’ dos actos decisórios nĆ£o estĆ” sequer no Presidente da RepĆŗblica ou no primeiro-ministro eleitos – em processos que, diga-se, jĆ” em si sĆ£o extremamente questionĆ”veis.Ā 

ā€œO conceito-chave de uma democracia nĆ£o sĆ£o nĆŗmeros, sufrĆ”gios, eleiƧƵes ou representação, mas participação.Ā (…) Portanto, nĆ£o sĆ£o as instituiƧƵes que fazem a democracia, mas sim a participação das pessoas nas instituiƧƵes. O pinĆ”culo de uma democracia nĆ£o reside no ā€˜mĆ”ximo de liberdade’ nem no ā€˜mĆ”ximo de igualdade’, mas no mĆ”ximo de participação.ā€Ā 

Mas mesmo se nos atermos a um nível mais superficial, em que consideramos os partidos políticos como determinantes para a representação democrÔtica do povo, ninguém pode afirmar com seriedade que a democracia é plenamente concretizada.  

Com efeito, tambĆ©m no plano polĆ­tico-partidĆ”rio, tal como Ć© explicado no livro, o cidadĆ£o nĆ£o Ć© mais que ā€œuma peƧa numa engrenagem sob a qual ele nĆ£o tem nenhum controlo, e que Ć© dirigida por polĆ­ticos que, efectivamente, nĆ£o sĆ£o responsabilizadosā€.Ā 

ā€œOs partidos polĆ­ticos nĆ£o operam democraticamente enquanto instituiƧƵes. A tirania do dinheiro ā€˜vicia’ a competição e engendra a corrupção. A votação massiva impede os votos individuais de se tornarem decisivos. Os candidatos eleitos nĆ£o sĆ£o encorajados a manterem os seus compromissos.ā€Ā 

Outra premissa que anda sempre de mĆ£os dadas com a conceptualização moderna da democracia, Ć© a da liberdade de imprensa; tida sempre como essencial para um funcionamento saudĆ”vel do nosso sistema democrĆ”tico. PorĆ©m, de igual modo, a liberdade de imprensa, que tantas paixƵes suscita, tornou-se um mero slogan publicitĆ”rio, pouco efectivado – por muito que o encontremos em todos os jornais. Ɖ como uma promessa que nunca Ć© cumprida. As ideias que vemos replicadas em quase todos os órgĆ£os de comunicação social parecem apenas formas diferentes de dizer o mesmo. HĆ”, claramente, um estrito consenso (sobre os mais diversos temas) que ninguĆ©m pode quebrar, sob pena de ser enxovalhado, excluĆ­do, criticado. AlĆ©m disso, o suposto combate Ć  desinformação tornou-se uma arma persecutória para escorraƧar todos os pensamentos dissidentes. TambĆ©m isto, Ć© belĆ­ssimamente resumido por Alain de Benoist:Ā 

ā€œAs opiniƵes nĆ£o sĆ£o formadas de forma independente: a informação Ć© enviesada (impedindo a livre capacidade de escolha) e uniformizada (reforƧando a tirania da opiniĆ£o pĆŗblica). A tendĆŖncia da padronização das plataformas e dos argumentos polĆ­ticos faz com que seja cada vez mais difĆ­cil distinguir entre diferentes opiniƵes. A vida polĆ­tica torna-se assim puramente negativa e o sufrĆ”gio universal passa a ser percepcionado como uma ilusĆ£o. O resultado Ć© a apatia polĆ­tica – um princĆ­pio que Ć© o oposto da participação, e, portanto, da democracia.ā€Ā 

HĆ” ainda um outro factor crucial, muitas vezes esquecido, que tem vindo a erodir as democracias ocidentais: o ā€˜definhar’ dos povos europeus – atravĆ©s da alarmante queda da natalidade, da perda de um sentimento de pertenƧa ao colectivo (Estado-nação), e de uma imigração massiva, que implica, inevitavelmente, uma assimilação de outras nacionalidades, culturas e religiƵes, e que vai diluindo as das populaƧƵes nativas.Ā Ā Ā 

ā€œUma democracia pressupƵe o poder do povo, ou seja, o poder de uma comunidade orgĆ¢nica que se desenvolveu ao longo da História no contexto de uma ou mais estruturas polĆ­ticas – por exemplo, uma cidade, nação ou impĆ©rio. Quando nĆ£o existe um povo mas apenas um conjunto de Ć”tomos individuais socializados, nĆ£o pode haver nenhuma democracia. Qualquer sistema polĆ­tico que requeira a desintegração ou o nivelamento do povo para poder operar – ou a erosĆ£o do sentimento de pertenƧa dos indivĆ­duos a uma comunidade histórica orgĆ¢nica – nĆ£o pode ser considerado democrĆ”tico.ā€Ā 

E hoje, em Portugal e em diversos paĆ­ses da Europa, cresce vertiginosamente o nĆŗmero de ā€œcidadĆ£osā€ que apenas o sĆ£o no papel, nada partilhando em comum; quer em termos culturais, religiosos ou históricos. Dificilmente, todos juntos, alguma vez farĆ£o um ā€œpovoā€. E sem um povo unificado, como salienta Benoist, nĆ£o pode existir democracia.Ā Ā 

ā€œNum sistema democrĆ”tico, os cidadĆ£os possuem todos direitos polĆ­ticos iguais, nĆ£o por virtude de quaisquer alegados direitos inalienĆ”veis da ā€˜pessoa humana’, mas porque todos pertencem ao mesmo povo enquanto comunidade e nação – isto Ć©, por virtude da sua cidadania. Na base de uma democracia nĆ£o estĆ” a ideia de ā€˜sociedade’, mas de uma comunidade de cidadĆ£os que herdaram todos a mesma história e/ou desejo de continuar essa história rumo a um destino comum. O princĆ­pio fundamental de uma democracia nĆ£o Ć©, pois, ā€˜um homem, um voto’, mas sim ā€˜um cidadĆ£o, um voto’.ā€Ā 

Além destes pontos fundamentais que comprovam a degeneração dos ideais democrÔticos no Ocidente, o autor desmente a noção muito comum de que a democracia é um produto da modernidade, e que é a forma mais desenvolvida de governação. Na verdade, os princípios democrÔticos no Ocidente remontam à Antiguidade. Além disso, muitos reis foram também eleitos democraticamente. A primeira monarquia hereditÔria só seria instaurada em França jÔ no século XIII. Ainda hoje, aliÔs, como vemos em países muito próximos (Espanha e Inglaterra, por exemplo), uma monarquia não é incompatível com os preceitos democrÔticos. 

E, ainda mais importante: Alain de Benoist desfaz vĆ”rios mitos acerca daquilo a que chamamos ā€œdemocraciaā€ e explica como adquiriu um carĆ”cter quase religioso, mas tambĆ©m desprovido de substĆ¢ncia.Ā 

No prefĆ”cio da versĆ£o inglesa as palavras do croata Tomislav Sunic envelheceram como vinho. Sunic estĆ” certo de que, se amanhĆ£ eclodir a Terceira Guerra Mundial, ā€œserĆ” provavelmente racionalizada pelos proponentes da democracia, que invocarĆ£o a jĆ” bem testada frase ā€œVamos tornar o mundo seguro para a democracia!ā€™ā€.Ā