Kambove, RepĆŗblica DemocrĆ”tica do Congo ā A corrida ao cobalto na RepĆŗblica DemocrĆ”tica do Congo transformou o paĆs num fornecedor essencial para a transição global para os veĆculos elĆ©ctricos e as energias renovĆ”veis. Mas para as dezenas de milhares de congoleses que extraem o mineral Ć mĆ£o em condiƧƵes perigosas e nĆ£o regulamentadas, o custo conta-se em vidas perdidas, corpos partidos e futuros roubados.Ā
Nos arredores de Kambove, uma cidade mineira na provĆncia de Haut-Katanga, o solo estĆ” marcado por buracos profundos, alguns escavados ilicitamente por mineiros artesanais que procuram minĆ©rio rico em cobalto. Aqui, grupos de mineiros ā homens, mulheres e crianƧas ā descem a tĆŗneis instĆ”veis com ferramentas rudimentares, sabendo que, a qualquer momento, a terra por cima deles pode desabar. Os desabamentos sĆ£o comuns e, quando ocorrem, os sobreviventes trabalham durante horas ou dias a arranhar os escombros com as mĆ£os nuas, numa tentativa desesperada de resgatar os que estĆ£o enterrados vivos.Ā
Em novembro de 2024, a violĆŖncia eclodiu em Kambove quando um acordo de longa data entre os mineiros artesanais e os militares que guardavam o local da exploração industrial se desfez. Os mineiros, que habitualmente pagavam subornos para ter acesso nĆ£o oficial aos aterros ricos em cobalto, recusaram-se a satisfazer as novas exigĆŖncias dos soldados no local. Quando tentaram entrar sem pagar, o caos instalou-se. Houve tiroteios. Ao cair da noite, pelo menos trĆŖs mineiros tinham morrido, segundo testemunhas, embora algumas estimativas apontem para cinco.Ā
A agitação espalhou-se rapidamente por Kambove, onde os mineiros artesanais furiosos atearam fogo em protesto, lanƧando nuvens de fumo negro sobre as principais estradas da cidade. O governo ainda nĆ£o emitiu uma declaração oficial sobre as mortes, mas Ć medida que as tensƵes aumentam entre os mineiros, as forƧas de seguranƧa e as empresas que controlam as minas industriais, o equilĆbrio precĆ”rio que hĆ” muito define a extração de cobalto na RĆ©publica do Congo, parece cada vez mais insustentĆ”vel.Ā
Um recurso enterrado em sofrimentoĀ
A RepĆŗblica DemocrĆ”tica do Congo possui mais de metade das reservas mundiais de cobalto, um componente essencial das baterias de iƵes de lĆtio utilizadas em smartphones, computadores portĆ”teis e veĆculos elĆ©ctricos. A procura crescente deste mineral tem atraĆdo empresas multinacionais e investidores estrangeiros, sobretudo da China, que domina o sector do cobalto no Congo atravĆ©s de concessƵes mineiras e parcerias com empresas estatais.Ā
No entanto, paralelamente a estas operaƧƵes industriais, cerca de 200.000 congoleses trabalham como mineiros artesanais (ou escavadores), em pequenas minas informais de cobalto, muitas vezes ganhando apenas alguns dólares por dia em condiƧƵes extremas.Ā
āOs riscos estĆ£o em todo o ladoā, disse um mineiro que trabalha em Kambove hĆ” mais de uma dĆ©cada. āSe o tĆŗnel nĆ£o nos cair em cima, o pó mata-nos lentamenteā.Ā
Esse pó, misturado com cobalto e outros metais tóxicos, Ć© inalado diariamente pelos mineiros, provocando doenƧas respiratórias graves e consequĆŖncias para a saĆŗde a longo prazo. Mas a toxicidade do cobalto nĆ£o afecta apenas aqueles que o extraem ā envenena comunidades inteiras.Ā
O Dr. SĆ©bastien Musenzayi, um cirurgiĆ£o craniofacial em Lubumbashi, jĆ” efectuou mais de 5.000 cirurgias a crianƧas que nasceram com graves defeitos congĆ©nitos relacionados com a exposição ao cobalto. āVemos crĆ¢nios desfigurados, membros em falta, espinhas malformadas. A taxa destas deformaƧƵes Ć© inimaginavelmente elevadaā, afirmou. Estudos sugerem que a exposição prolongada ao cobalto e a metais pesados associados conduz a um aumento dos casos de deficiĆŖncias congĆ©nitas, nados-mortos e perturbaƧƵes neurológicas.Ā
Para agravar o sofrimento dos mineiros, os geólogos alertam para o facto de muitos dos depósitos de cobalto do Congo estarem contaminados com urĆ¢nio, um elemento radioativo. No entanto, nĆ£o hĆ” proteção formal para os que trabalham em zonas contaminadas e nem o governo nem as empresas mineiras lhes fornecem equipamento de seguranƧa ou exames de saĆŗde.Ā
Conflitos entre trabalhadores congoleses e chineses nas minasĀ
As tensƵes tambĆ©m estĆ£o a aumentar entre os mineiros congoleses e os trabalhadores das minas chinesas, que sĆ£o cada vez mais acusados de prĆ”ticas de exploração laboral. Em muitas minas industriais de grande escala, os trabalhadores congoleses entraram em conflito com os seus supervisores chineses devido a questƵes como salĆ”rios nĆ£o pagos, longas horas de trabalho e condiƧƵes de trabalho perigosas.Ā
āNĆ£o hĆ” respeito, nĆ£o hĆ” dignidadeā, disse um mineiro empregado numa exploração gerida por chineses, falando sob condição de anonimato. āTrabalhamos como escravos e, se nos queixamos, somos espancados ou despedidosā.Ā Ā
Num incidente particularmente dramĆ”tico, um trabalhador congolĆŖs frustrado apoderou-se de uma escavadora e utilizou-a para demolir vĆ”rios camiƵes pertencentes a uma empresa mineira chinesa. O incidente, que foi registado em vĆdeo, circulou amplamente nas redes sociais, expondo o profundo ressentimento dos trabalhadores locais contra as empresas mineiras estrangeiras.Ā
Os confrontos entre mineiros congoleses e supervisores chineses tornaram-se comuns, com vĆ”rios vĆdeos amadores a mostrarem confrontos violentos. O governo, fortemente dependente do investimento chinĆŖs, tem ignorado em grande medida estes incidentes, deixando os mineiros com poucos recursos contra os maus-tratos.Ā
O preƧo oculto da cadeia de abastecimento globalĀ
Apesar da crescente sensibilização para as violaƧƵes dos direitos humanos no sector do cobalto do Congo, o mineral continua a entrar nas cadeias de abastecimento globais das principais empresas de tecnologia e de companhias de veĆculos elĆ©ctricos.Ā
Em dezembro de 2024, o governo congolĆŖs apresentou queixas-crime contra as filiais da Apple em FranƧa e na BĆ©lgica, alegando que o gigante da tecnologia estava a utilizar minerais de conflito provenientes da RepĆŗblica do Congo. A Apple negou as alegaƧƵes, afirmando que exige que os fornecedores adiram a polĆticas rigorosas de fornecimento Ć©tico.Ā
No entanto, grupos de defesa argumentam que as empresas devem fazer muito mais para garantir que o cobalto seja extraĆdo de forma responsĆ”vel. O recente relatório da Amnistia Internacional, Recharge for Rights, criticou os principais fabricantes de veĆculos elĆ©ctricos por nĆ£o abordarem as violaƧƵes dos direitos humanos nas suas cadeias de abastecimento. āA transição para a energia verde nĆ£o pode ser feita Ć custa de vidas humanasā, afirma o relatório.Ā
Um futuro em equilĆbrioĀ
Enquanto o mundo corre para um futuro elĆ©ctrico, a população da RepĆŗblica do Congo continua presa num ciclo de violĆŖncia, exploração e exposição a substĆ¢ncias tóxicas. Para os mineiros artesanais em locais como Kambove, o cobalto debaixo dos seus pĆ©s Ć© simultaneamente uma fonte de sobrevivĆŖncia e uma ameaƧa sempre presente.Ā
āSe nĆ£o se mina, nĆ£o se comeā, disse Mama Nicole, uma jovem mĆ£e cujo filho, Deomba, morreu numa derrocada de uma mina quando tinha apenas treze anos de idade.Ā Ā
Por enquanto, o brilho do cobalto continua a ser mais intenso nas mĆ£os daqueles que o utilizam ā gigantes da tecnologia, fabricantes de automóveis e consumidores de todo o mundo. Mas nas minas do Congo, onde os corpos sĆ£o enterrados sob o peso da terra e o peso de uma indĆŗstria global, o seu brilho Ć© ofuscado pelo sangue, poeira e tristeza.Ā
Michael Davie ā Realizador
Com mais de 60 filmes no seu currĆculo, o trabalho de Michael Davie Ć© exibido regularmente na National Geographic, Disney+, Netflix, CNN, ABC e OWN. O seu trabalho inclui os filmes āWar Childā e āGorilla Murdersā, vencedores de um Emmy, e o documentĆ”rio āThe Choirā, que recebeu o prĆ©mio AFI de Melhor Realizador.
Em 2021, Davie passou seis semanas a trabalhar num noticiĆ”rio televisivo e num programa de actualidades para a ABC Australia intitulado āBlood Cobaltā. Viajou para a RDC com uma pequena equipa de filmagem e foi exposto pela primeira vez Ć s complexidades polĆticas, Ć corrupção generalizada e Ć s dificuldades humanas que assolam a exploração mineira de cobalto. As suas reportagens desencadearam uma forte ambição de regressar ao Congo para realizar um documentĆ”rio de longa-metragem que explorasse plenamente o verdadeiro custo humano do avanƧo do nosso planeta em direção a um futuro de energia verde.
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