A resposta sueca à pandemia, foi descrita por muitos como uma experiência arriscada.
“Suécia resiste à tendência global com estratégia experimental de vírus” – Financial Times, 25/03/2020
Hoje, passado um ano, podemos avaliar a “sua experiência”.
O início
Fomos todos apanhados pelas notícias e imagens desta nova pandemia.
Na televisão e em redes sociais circulavam imagens de pessoas mortas nas ruas da China; imagens com filas de caixões em Itália que eram de 2013, títulos falsos que reportavam várias dezenas de crianças em estado grave em Portugal (ainda mal tinha começado a epidemia) ou mensagens de whatsapp encenadas.
Tal como a maioria, fui levado a acreditar que uma tragédia se aproximava e que, muito, provavelmente, só com medidas extremas a poderíamos mitigar.
A comunicação da OMS reforçava essa perspetiva. Dados iniciais apontavam que 20% dos pacientes seriam casos severos, com necessidade de hospitalização, e 5% teriam de ser admitidos nos cuidados intensivos.
Já em Março de 2020, a OMS indica uma taxa de letalidade (infetados) de 3,4% que resultava de praticamente todos desenvolverem a doença (99%). Era um vírus extremamente lento e por isso possível de conter.
País após país seguiram o exemplo chinês, impondo lockdowns mais ou menos restritos. Uma avalancha mediática carregada de dramatismo, contadores de casos e de mortes, e modelos matemáticos apocalíticos tornaram outro tipo de resposta complicada para qualquer governo, mesmo quando tinham o aval dos seus conselhos científicos ou grupos de especialistas (como no caso do Reino Unido ou de Portugal).
Tal como o vírus, os lockdowns revelaram-se bastante contagiosos.
Se em termos políticos o consenso era elevado, em termos científicos nem por isso e muitos cientistas levantaram reservas, pelo menos, até terem dados mais fiáveis sobre a doença.
A nível de países, a Suécia incorporou essa posição.
“A experiência sueca”
Assisti a algumas das primeiras entrevistas de Tegnell- chefe epidemiologista sueco. Resumidamente, dizia que ia seguir os procedimentos mais convencionais pois não achava que os dados conhecidos justificassem proceder de outra forma. Não descartava a possibilidade de alterar a política, perante novas evidências.
Johan Giesecke, outro dos epidemiologistas responsáveis pela resposta sueca, afirmou “que nós e o governo sueco, decidimos cedo, em janeiro, que as medidas que devemos tomar devem ser baseadas na evidência”.
Na altura afirmava: “se começarmos a olhar para as medidas que estão a ser tomadas por diferentes países verificamos que muito poucas têm “vestígios” de serem baseadas em evidência”.
Apesar das tentativas de fortalecer a posição do governo na gestão da pandemia, e da enorme pressão que viriam a sofrer, podemos dizer que o Instituto Sueco se manteve sempre no comando da estratégia. Alguns ajustamentos foram feitos, mas isso fazia parte do seu modelo. As linhas gerais foram muito consistentes e não sentiram necessidade de as alterar.
Assim, ao contrário da generalidade dos países, os suecos não impuseram um confinamento obrigatório à população. Isso não significa que não tenham tomado várias medidas, a maioria sob a forma de recomendação.
Algumas medidas tomadas no início:
Recomendações:
- Ficar em casa em caso sintomas de doença, mesmo que ligeiros
- Lavar as mãos frequentemente com água e sabão
- Manter a distância para outras pessoas
- Trabalhar em casa, se possível
- Evitar funerais, batismos, festas ou casamentos
- Não viajar em horários mais concorridos, se possível
- Viajar apenas se necessário
- Quem tem 70 anos ou mais, evitar ao máximo os contatos sociais e lugares de reunião
- Recomendação de que escolas de ensino médio, universidades e ensino superior adotem o ensino à distância
Proibições:
- Eventos públicos com mais de 50 pessoas
- Entrada em viagens em todo o espaço de Schengen.
- Aglomeração em restaurantes, cafés e bares;
- Visitas aos lares
As principais diferenças foram não terem tornado obrigatório “ficar em casa”, manterem as escolas abertas até ao secundário, não fecharem a generalidade do comércio e terem restrições significativamente inferiores na concentração de pessoas. Mesmo com poucas medidas obrigatórias, não deixaram de dar fortes recomendações.
Se consultarmos as orientações atuais podemos constatar que são surpreendentemente semelhantes. Especialmente, se compararmos com outros países, em que as alterações foram frequentes ao longo do tempo.
Se observarmos o guia da OMS para o combate a pandemias em vigor na altura, verificamos que foram os suecos quem mais o cumpriu. A generalidade das medidas sugeridas consta do documento. O confinamento geral de pessoas saudáveis não consta, nem sequer na nova versão.
Posteriormente a generalidade dos países adotou a obrigatoriedade do uso de máscaras em várias circunstâncias. Também aqui a Suécia se distinguiu. Não só não o tornou obrigatório, como nem sequer recomendou o seu uso (exceto em circunstâncias muito particulares). No entanto, aí já não estiveram sozinhos e outros países como os nórdicos tiveram posições semelhantes.
De qualquer forma, apesar da OMS ter passado a recomendar o seu uso de forma condicional para o público, reconhece que é apenas baseado em “evidências científicas limitadas e inconsistentes”, incluindo para o SARS-CoV-2” (p. 8) e que “há uma qualidade geral moderada de evidência de que as máscaras faciais não têm um efeito substancial na transmissão do vírus influenza”. (p. 26).
No seu guia, a OMS apenas recomenda o seu uso na comunidade em situações de epidemia/ pandemia com uma severidade “alta” ou “extraordinária”.
Previsões e modelos
Uma das bases dos lockdowns foram os modelos matemáticos que estimavam o desenrolar da pandemia. Académicos, principalmente matemáticos, vieram a público apresentar previsões catastrofistas que assustaram as populações e pressionaram os políticos a atuar de forma drástica.
Mesmo algumas instituições mais especializadas em epidemiologia previram cenários dantescos. Uma das mais conhecidas e que teve grande impacto foi o Imperial College.
No seu relatório “Impacto das intervenções não farmacêuticas (NPIs) para reduzir a mortalidade por COVID-19 e a procura de saúde” de 16 de março de 2020, era referido:
“Talvez a nossa conclusão mais significativa seja que é improvável que a mitigação seja viável sem que os limites de capacidade de surto de emergência dos sistemas de saúde do Reino Unido e dos EUA sejam excedidos muitas vezes.
Na estratégia de mitigação mais eficaz examinada, o que leva a uma epidemia única e relativamente curta (isolamento de caso, quarentena domiciliar e distanciamento social dos idosos), os limites de pico para camas de enfermaria geral e de UCI seriam excedidos em pelo menos 8 vezes sob o cenário mais otimista para os requisitos de cuidados intensivos que examinamos.
Além disso, mesmo se todos os pacientes pudessem ser tratados, prevemos que ainda haveria cerca de 250.000 mortes na GB e 1,1-1,2 milhões nos Estados Unidos. “
A Suécia também teve direito aos seus modelos. Num deles, investigadores da universidade de Uppsala (Suécia) e de outras instituições basearam-se no modelo do Imperial College e adaptaram-no para a Suécia.
Em baixo estão as estimativas consideradas pelos próprios como ”conservadoras” e que indicavam que “com as medidas atuais na Suécia necessitariam de pelo menos 40 vezes mais do que a capacidade de terapia intensiva sueca pré-pandémica” (pag. 5).
Para as mortes projetaram, com a abordagem que foi seguida pelas autoridades suecas “aproximadamente 96 000 mortes (95% CI 52,000 a 183,000) antes de 1 de julho de 2020” (pág. 17).
Críticas na imprensa
Apesar da estratégia ser radicalmente diferente da seguida pela maioria dos países, muito poucas críticas diretas aconteceram por partes de políticos ou mesmo da OMS, que a espaços até a elogiou.
O mesmo não se pode dizer da imprensa internacional. A estratégia mais convencional da Suécia contrariava toda a narrativa mediática. Além disso, ao terem números de infeção iniciais elevados tornaram-se um alvo fácil para demonstrar que a não tomada de medidas mais extremas teria resultados desastrosos.
Desde o início, os ataques foram constantes e violentos.
Tornaram-se comuns as notícias e artigos de opinião sobre terem alterado a estratégia, estarem arrependidos, terem uma estratégia de imunidade de grupo ou a apresentação frequente de comparações descontextualizadas da mortalidade (sem considerar, por exemplo, a população atual).
- “Especialistas em saúde “profundamente preocupados” com a resposta sueca” – The Guardian 23/ 03/ 2020
- “Eles estão a levar-nos à catástrofe: o estoicismo no coronavírus da Suécia começa a “vacilar” -.” The Guardian. 30/ 03/ 2020
- “ A política Covid-19 da Suécia é um modelo para a “direita”. Também é uma loucura mortal.” – The Guardian 23/ 05/ 2020
- “A Suécia tornou-se o conto de advertência do mundo” – The New Times – 08/ 07/ 2020
- “A resposta sueca do Covid-19 é um desastre. Não deveria ser um modelo para o resto do mundo.”- Time 27/ 07/2020
- “A Suécia está a afastar-se da sua estratégia sem lockdown e a preparar novas regras restritivas face ao aumento dos casos de coronavírus” – Insider- 18/ 10/ 2020
- “Suécia, que recusou o bloqueio durante a primeira onda da COVID, impõe restrições à medida que os casos aumentam” – Newsweek – 19/10/20
- “Suécia tenta um novo status: Estado pária” (excluído internacionalmente)- The New York Times- 15/12/2020
Muitas desta notícias e opiniões eram publicadas em jornais de referência e depois replicadas, normalmente de modo literal, pelos média de todo o mundo. Entre esses jornais destaque para o The Guardian, The New York Times, Financial Times e, mais recentemente, o Blomberg.
Essa avalanche informativa negativa condicionou muito a perceção das populações sobre o desempenho sueco. À medida que os seus resultados se foram revelando muito diferentes do desastre previsto, o enfoque na Suécia caiu a pique.
Passaram a surgir apenas notícias pontuais, como quando houve aumento de casos ou quando o rei reconheceu alguns erros.
Resultados
Mortalidade por Covid e serviços de saúde
Apesar da morte por Covid não ser o melhor indicador para comparação, ele é o mais amplamente considerado. A Suécia parece ter um dos sistemas mais abrangente de contagem. Por exemplo, consideram todas as mortes ocorridas dentro dos 30 dias de um teste positivo e incluem as mortes ocorridas em lares.
A Suécia começou por ser um dos países mais afetados pela doença. Entre as causas apontadas por Tegnell estão a grande introdução inicial do vírus no país e os maus resultados na contenção da doença nos grandes lares de Estocolmo e arredores.
No entanto, com o passar do tempo a Suécia foi descendo consistentemente nos rankings de mortalidade da doença. É atualmente o 21ª entre os países considerados no Worldometer com mais de um milhão de habitantes..
Alguns dos países com que eram muito comparados subiram vertiginosamente nesse indesejado indicador, como a República Checa (1ª) ou Portugal (12ª).
Em relação às previsões, enquanto a estimativa média era de 96 000 mortes “antes de 1º de julho de 2020” a Suécia tinha nessa altura 5 475.
Quanto à necessidade de camas em UCI ser “pelo menos 40 vezes maior do que a capacidade de camas em UCI pré-pandémica, sem considerar admissões por outras condições”, com algum aumento de capacidade nunca foram esgotadas.
De recordar que um dos argumentos usados contra a estratégia sueca era o facto de apresentar lacunas importantes, nomeadamente ser dos países com menor capacidade geral em termos de camas e também especificamente de UCIs, na europa.
O próprio Ferguson, responsável pelos modelos do Imperial College, que serviu de base a essas previsões para a Suécia e para as respostas do Reino Unido e EUA, dizia numa entrevista a 25 de abril de 2020:
“Acho que veremos as suas mortes diárias aumentarem dia para dia. É claramente uma decisão do governo sueco se deseja tolerar isso.”
Na realidade, o contrário aconteceu. Os números começaram a baixar a partir desse momento. Comparando com o Reino Unido, que seguiu uma política semelhante no início, mas que optou depois por vários lockdowns, a Suécia evoluiu para números inferiores.
Quem parece ter acertado nas previsões foi Johan Giesecke, que se tinha mostrado muito surpreendido pelo Reino Unido, ter invertido a estratégia inicial.
Há quase um ano disse:
“Lockdowns apenas atrasam a propagação, não a impedem. Deve comparar a Suécia com outros países daqui a um ano.”
Economia
Apesar de ter sentido o impacto negativo da pandemia, foi dos países europeus com menor recessão, muito abaixo da média europeia. Isto, apesar de ser um país exportador e, por isso, muito dependente das restantes economias.
Mortalidade Geral
Tal como reconhecido pela OMS, o melhor e mais fiável indicador é o da mortalidade geral. Nele se pode verificar o real impacto da doença, bem como possíveis efeitos colaterais das medidas para a combater.
Apesar de um ano de 2019 de baixa mortalidade, existindo muita população vulnerável a esta e a outras doenças, e do número elevado de mortes associadas à Covid, a mortalidade geral não foi muito expressiva.
Numa análise do Centre for Evidence-Based Medicine da Universidade de Oxford, a Suécia aparece mesmo como sendo um dos países menos atingidos em termos de mortalidade geral.
Comparação com vizinhos
À medida que os resultados se mostraram melhores que de muitos países com os quais eram comparados, os seus vizinhos nórdicos passaram a ser a referência principal para comparação.
Em relação a esses vizinhos, continuaram a ter valores de mortalidade bastante superiores, especialmente da Noruega e da Finlândia que apresentam os valores mais baixos de toda a europa.
No entanto, em relação a esses dois países, e ao contrário da primeira vaga da pandemia, a Suécia tem medidas mais restritivas do que eles. Mesmo com menos medidas, Noruega e Finlândia, continuam a ter valores de infeções e mortalidade por Covid, muito inferiores.
As entidades públicas norueguesas chegaram mesmo a reconhecer que, na primeira vaga, não tinham tido necessidade de confinar a população e a assumir o erro de fechar as escolas.
Apenas a Dinamarca continuou a optar por algumas medidas mais restritivas e obrigatórias. Continua com mortalidade Covid significativamente inferior à Suécia, embora não tanto como outros países nórdicos.
Para além do possível efeito das medidas tomadas, as eventuais causas das diferenças entre países são muitas e variadas como: as diferenças na atribuição de morte Covid, as características da população (idade, saúde, imunidade, hábitos) ou a geografia/ clima.
No caso sueco eles apresentam alguns aspetos que podem ter ajudado a controlar a pandemia como: poucos residentes por habitação, elevado nível de cumprimento de recomendações ou hábitos sociais que envolvem menor contacto físico.
Por outro lado, alguns pontos poderão ter dificultado o seu controlo como: a dimensão inicial da epidemia, terem lares de idosos bastante numerosos ou uma concentração relativamente alta nas grandes cidades.
Notas finais
Apesar de todas as pressões, críticas e até insultos que sofreram, os suecos mantiveram a sua estratégia. Tal só foi possível devido ao prestígio e, principalmente, à forte independência, formal e informal, que a sua agência de saúde possui.
Em vez de reagirem a perceções populares, de que provavelmente ficariam reféns, mantiveram a estratégia geral baseada em medidas de maior evidência e tradição.
Distinguiram-se igualmente, por avaliarem a cada momento os prós e os contras de cada medida numa perspetiva mais holística, evitando estar centrados numa única doença.
Assim, preservaram a saúde pública (refletida por exemplo na mortalidade geral), asseguraram a normal educação dos mais jovens, permitiram o convívio social e mantiveram a atividade económica.
Sabemos hoje, que a doença tendo desafios importantes, especialmente para pessoas idosas e frágeis, não tem nem a perigosidade nem as características inicialmente apontadas.
Apesar de muitas das assunções sobre a doença se terem revelado erradas, muitos países continuam a implementar medidas extremas, algumas inéditas em democracia, como: os confinamentos gerais, as limitações de circulação, o uso obrigatório de máscaras (ou até respiradores), o encerramento de escolas e muitas outras.
Assistimos a pessoas saudáveis serem obrigadas a ficar em casa, crianças sem poderem brincar nos parques, comerciantes obrigados a encerrar a sua fonte de sustento, denúncias públicas ou até na comunicação social de comportamentos “prevaricadores”, mães separadas dos filhos à nascença devido a um teste positivo.
Instalou-se um clima de medo constante, em que muitos veem em cada contacto humano, um perigo de morte.
Sem dúvida que esta pandemia representou uma enorme experiência social.
Mas terão sido os suecos as cobaias?