Ao contrÔrio do que percecionamos, os nossos inimigos não são os que discordam de nós.
Mesmo que as suas opiniões nos pareçam inconscientes, loucas, estúpidas ou até perigosas, não são eles os verdadeiros inimigos.
Na verdade, eles tambĆ©m podem pensar o mesmo de nós. Por incrĆvel que pareƧa, as suas opiniƵes podem ter algum fundamento ou atĆ© fundamento maior do que as nossas.
Mas nada disso é o essencial. Não são eles o inimigo.
Os nossos inimigos são quem defende que:
ā Só opiniƵes maioritĆ”rias sĆ£o vĆ”lidas (se forem as deles claro);
ā A maioria (ou o poder) tem o direito de impor uma narrativa;
ā āCancelarā vozes dissonantes Ć© uma alternativa vĆ”lida Ć apresentação de argumentos e evidĆŖncias.
Esses sim, são os nossos inimigos.
OpiniƵes maioritƔrias, narrativas e censura
Muitas opiniões maioritÔrias são feitas sem uma anÔlise aprofundada da maioria dos seus defensores. Muitos seguem a visão de colegas ou de figuras vistas como autoridade na matéria (nem sempre o são). Infelizmente, também nem sempre usam evidências de qualidade ou estão isentos de conflitos de interesses.
Fenómenos como o pensamento de grupo ou o conformismo social amplificam essas visões, mesmo que pouco sustentadas. O investimento que peritos de referência e seus seguidores fazem numa perspetiva é um grande obstÔculo para uma anÔlise objetiva que lhes permita mudar de posição perante novos dados.
Por outro lado, as visƵes percecionadas como consensuais, muitas vezes nĆ£o o sĆ£o. Nem sempre os melhores especialistas tĆŖm o talento (ou o tempo) para a comunicação social. Ā Se contrariarem as narrativas (mediĆ”ticas, polĆticas ou sociais) Ć© provĆ”vel que, mesmo querendo, nĆ£o tenham essa oportunidade. Por outro lado, Ć© usual autocensurarem-se com receios (muitas vezes reais) de serem prejudicados por irem ācontra a correnteā.
A possibilidade de governos, da comunicação social ou das redes sociais poderem censurar Ć© tĆpica de paĆses nĆ£o democrĆ”ticos e sem liberdade de expressĆ£o. A tentação de censurar quem vai contra a narrativa, que eles próprios ajudaram a construir e da qual dependem de alguma forma, Ć© difĆcil de resistir.
O abandono do āmercado de ideiasā transforma hipóteses em dogmas. Certas ideias, por mais infundadas que sejam, ficam protegidas pela ausĆŖncia de contraditório e livres para se disseminarem.
Esse sim Ć© o maior dos perigos. Independentemente do lado em que estejamos conjunturalmente.
Todos temos de fazer um esforço para ouvir, considerar e escrutinar o que outros dizem, mesmo quando o que dizem nos parece, à primeira vista, estúpido ou até perigoso. Temos de estar abertos a integrar novas perspetivas ou até mudar de posição. Só assim podemos exigir o mesmo de outros.
Temos de defender o direito à liberdade de expressão, por muito que isso por vezes nos custe.
Se o fizermos, apesar dos instintos tribais nos dizerem o contrĆ”rio, teremos aliados mesmo entre os que discordam de nós. Ā
Se não o fizermos, o nosso verdadeiro inimigo seremos nós próprios.