Editorial: Informar em tempos de ocultação e manipulação de dados

ByNuno Machado

3 de Fevereiro, 2022

– O caso da vacinação pediĆ”trica

Após quase dois anos do início da pandemia, muitas coisas mudaram. Algumas, no entanto, mantêm-se inalteradas como a ocultação de dados, a manipulação dos mesmos e, não raras vezes, a produção de mentiras por pessoas com responsabilidade [1] [2] [3].

Este tipo de comportamento tem passado sem escrutƭnio, sem crƭtica e, pelo contrƔrio, tem sido premiado com maior protagonismo para os seus autores.

O tema que nos Ćŗltimos meses tem confirmado este ā€œnovo normalā€ tem sido a vacinação de crianƧas, mais recentemente entre os cinco e os 11 anos.

A simbiose entre a polĆ­tica e os grandes media

O poder político sempre se mostrou convicto de que a decisão seria no sentido da recomendação, chegando mesmo a encomendar [4] as vacinas pediÔtricas antes da decisão[5] ter sido tomada pelo Grupo de Apoio Técnico à Vacinação.

Também a comunicação social de massas, após um período meritório em que consultou vÔrias vozes contraditórias, tem exercido uma campanha pró-vacinação, ora subtil ora ostensiva. Este tipo de ativismo, que tem caracterizado algum jornalismo durante a pandemia, teve como ponto alto as entrevistas nos centros de vacinação. Muitas vezes, com o recurso a perguntas intrusivas ou sugestivas aos jovens.

AlĆ©m dos evidentes problemas Ć©ticos desta postura, o facto de ser um tema complexo, multifatorial e em que a evidĆŖncia Ć© ainda muito incompleta (apesar de ser comunicada como ā€œinquestionĆ”velā€), torna a situação ainda mais grave. Por um lado, a falta de isenção distorce a perceção de jovens, educadores e sociedade em geral, sobre o conhecimento disponĆ­vel e os fatores em jogo.Ā 

Por outro, levantam questões sobre a capacidade desses órgãos de, perante factos contraditórios às mensagens promovidas anteriormente, de investigar e de divulgar notícias desalinhadas com as narrativas em que se comprometeram.

A propagação de notícias enganosas

Para agravar o problema, alguns profissionais de saúde também têm contribuído para a distorção dos factos. Neste caso em concreto, destaca-se, por exemplo, a Dra. Maria João Brito, Coordenadora da Unidade Infecciologia do Hospital Dona Estefânia.

A Dra. Maria João Brito, que teve um acesso privilegiado aos grandes órgãos de comunicação social, tem lançado números de forma totalmente descontextualizada e alarmista.

Um dos evidentes casos de informação enganosa é a não distinção entre casos com doença aguda e casos com um mero teste positivo, mas com outra causa. Foram assim lançados números de hospitalizações e casos graves, com forte sugestão de que se tratavam de casos provocados (na sua totalidade) pela Covid-19.

Fez afirmaƧƵes como as de que o seu hospital ā€œestaria cheio de Covidā€ e que estavam a ā€œchegar aos 450 doentesā€ [6].

Sabemos pelos dados globais oficiais [7], pelo perfil global da doença e pelo contacto com outros hospitais que tal não pode corresponder a casos de doença aguda Covid.

Eventualmente, estarão incluídos muitos casos com teste positivo ao SARS-CoV-2, que é um procedimento de rotina feito nas admissões por qualquer causa. Tal facto, foi aliÔs salientado pelo pediatra e presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Dr. Jorge Amil Dias[8].

E este tipo de situações, no mínimo enganosas e alarmistas, não é algo novo. Pelo contrÔrio, é recorrente e começou logo nos primórdios da pandemia em Portugal, com a difusão da notícia falsa de que naquele hospital estariam 30 crianças em estado grave associado ao coronavírus [9].

O número de «casos» em crianças

Desde o inĆ­cio do processo de vacinação dos mais jovens que a população estĆ” a ser ā€œbombardeadaā€ com a informação de um grande aumento de casos nestes escalƵes. Muitas vezes, com a referĆŖncia na mesma notĆ­cia aos Ć­ndices de vacinação nestas idades.

Ora sem se saber o total de testes por escalĆ£o etĆ”rio [10], esse valor pouco diz. Por isso, perguntĆ”mos ao INSA que deveria ter esses dados jĆ” que tem o nĆŗmero total de casos e a resposta foi de que nĆ£o disponham, na altura, de ā€œinformação de testagem diĆ”ria agrupada por faixa etĆ”riaā€.

AlĆ©m disso, esse tipo de sugestĆ£o de que a vacinação estĆ” fortemente associada ao nĆŗmero de casos e de que sĆ£o os jovens o ā€œmotorā€ do disparar do nĆŗmero de infeƧƵes Ć© no mĆ­nimo enganadora e carece de forte evidĆŖncia cientĆ­fica (embora estas novas variantes possam ter dinĆ¢micas diferentes).

Pelo contrÔrio, é hoje consensual que a atual vacinação tem, na melhor das hipóteses, um efeito bastante limitado nos contÔgios e na transmissão [11].

A ciĆŖncia do oculto

Também recentemente atingimos um novo marco na falta de rigor e, diríamos mesmo, da irresponsabilidade. Neste caso, com a divulgação da estimativa[12] de que «as miocardites são 60 vezes mais frequentes nas crianças infectadas do que nas vacinadas», afirmação rapidamente propagada por todos os órgãos de comunicação social.

Acontece que a própria coautora reconhece que não foram colocadas no documento todas as referências consultadas [13].

Ou seja, as conclusƵes sĆ£o baseadas em estudos ā€œfantasmaā€, que nĆ£o podem ser escrutinados. Espera-se assim que, num ato de fĆ©, acreditemos na existĆŖncia desses estudos e na correta extrapolação dessa conclusĆ£o por parte dos autores.

Como combater o obscurantismo atual?

Como em tudo, existem sempre argumentos de ambos os lados. Mas o que temos assistido, não tem sido a desejada apresentação de informação completa e transparente.

Muitos dos dados, fundamentais para uma anÔlise completa por especialistas e investigadores, têm sido ocultados ou apresentados de forma fragmentada e enganosa.

Se existe evidência robusta, porque não existe transparência? Se os dados são inequívocos, porque não são apresentados? Se hÔ confiança nas políticas seguidas, porque são apenas suportadas em dados fragmentados e sem contexto?

A proclamação de ā€œcertezas cientĆ­ficasā€ sem a mĆ­nima evidĆŖncia que as comprovem, deve levar-nos a ter muita cautela antes de assumirmos algumas premissas basilares da narrativa oficial.

Ā AtĆ© porque, paradoxalmente, numa altura em que tanto se quer associar a ā€œdesinformaçãoā€ a atividades particulares nas redes sociais, o impacto que órgĆ£os institucionais e dos media de massas tĆŖm na propagação de informação enganosa Ć© incomparavelmente superior e mais transversal na sociedade.

Cabe-nos a todos exigir mais. No tema da vacinação de jovens, como em muitos outros casos, temos de lutar contra o obscurantismo em que estamos mergulhados.

Estamos a fazer a nossa parte e a investigar de modo a poder facultar informação, da forma mais objetiva e completa possível.

Ɖ esse o nosso compromisso.

The Blind Spot

[1] https://www.msn.com/pt-pt/noticias/ultimas/filipe-froes-o-principal-risco-das-vacinas-%C3%A9-n%C3%A3o-serem-administradas-e-exporem-as-pessoas-a-uma-doen%C3%A7a-preven%C3%ADvel-pela-vacina%C3%A7%C3%A3o/ar-BB1g472K

[2] https://www.ema.europa.eu/en/glossary/conditional-marketing-authorisation

[3] https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/baptista-leite-nunca-tinha-visto-tantas-pessoas-morrerem-num-turno-em-que-morreu-uma

[4] https://www.jn.pt/nacional/antecipada-chegada-a-portugal-de-vacinas-para-criancas-14383992.html

[5] https://www.sns.gov.pt/noticias/2021/12/07/covid-19-vacinacao-para-criancas/

[6] https://www.rtp.pt/play/p9816/e591777/e-ou-nao-e-o-grande-debate

[7] https://theblindspot.pt//2022/01/06/analise-da-gravidade-da-covid-19-em-criancas/

[8]Ā https://drive.google.com/file/d/1jKhdG-zvrVnEwj8KG-SctBmzIFZwuj-V/view?usp=sharing

[9] https://executivedigest.sapo.pt/coronavirus-30-criancas-em-estado-grave-no-hospital-dona-estefania/

[10] https://www.facebook.com/TheBlindSpotPT/posts/443213710860364

[11] https://www.youtube.com/watch?v=bnMMYJKZvnU&list=PLTVup05OCqaJOZU5NSwgU8yN8ZapziVdO&index=7

[12] https://www.publico.pt/2022/01/25/sociedade/noticia/covid19-miocardites-60-vezes-frequentes-criancas-infectadas-vacinadas-1993139

[13] https://ionline.sapo.pt/artigo/760629/parecer-da-dgs-sobre-vacinacao-de-criancas-agrava-diverg-ncias