A inutilidade da moral para ler a guerra
Todas as guerras são condenáveis, a paz é um bem inestimável, todos os povos têm direito a escolher os seus destinos, todos os combates causam sofrimento, mortes, destruições e deslocações. A guerra é sempre uma amálgama de corpos, de sangue e de ruínas. Todos os seres humanos dotados de um mínimo de humanidade são contra a guerra. Contudo, a guerra é a mais antiga e continuada ação humana. A condenação moral da guerra nunca evitou a guerra, nem construiu a paz.
O primeiro dado de partida para a análise de qualquer guerra é não haver moral, mas apenas interesses. Os direitos dos povos e a moral não são elementos do jogo. Nunca são. Na Ucrânia não se defende a liberdade, nem o direito, como não se defenderam esses valores noutras invasões próximas de nós no tempo, a do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, da Síria. Como não foram para os defender que se desencadearam as guerras no Vietname ou, mais atrás, as invasões da Hungria e da Checoslováquia. Como, ainda mais atrás, não foi pela defesa de valores morais que ocorreu a divisão da península da Coreia.
O segundo dado é o de a guerra ter como motivo a conquista de vantagens, ou a defesa de situações e de os pretendentes à conquista desses dois objetivos estarem dispostos a utilizar a violência para os alcançar. Não há guerra sem violência.
O terceiro: a guerra é um fenómeno político e social total. Isto é, envolve não só as sociedades organizadas, os estados contendores, mas os que com eles se relacionam. A guerra nunca é uma luta de um contra um. Atrás de cada contendor posicionam-se os seus apoiantes e, muitas vezes, os seus mentores. Como nas lutas de galos, os verdadeiros contendores são aqueles que os criam e lhes colocam espigões de aço nas pernas!
Uma arena – um palco
O conflito na Ucrânia deve ser entendido vendo a Ucrânia como uma arena onde se defrontam os dois contendores reais: os Estados Unidos e a Rússia. A Ucrânia desempenha hoje, em 2022, o mesmo papel que o Vietname desempenhou nos anos 60 do século passado: um palco, ou uma arena onde uma superpotência utiliza um território exterior para defrontar de forma indireta outra superpotência. Angola pós independência (1975) é outro exemplo deste tipo de conflitos indiretos jogados em territórios exteriores.
O que está em jogo na Ucrânia é uma disputa por zonas de influência e por estatuto de potência planetária entre os Estados Unidos e a Rússia, além de apropriação de recursos por parte dos grupos dominantes. Todos os Estados, embora independentes, detêm apenas uma soberania limitada. O Ultimato Inglês a Portugal no século dezanove é um exemplo. A utilização da Base das Lages na Guerra dos 6 Dias. Outro ainda, mais recente, foi o 25 de Novembro de 1975, quando os EUA e os Estados Europeus impuseram a Portugal um regime padronizado pelas democracias europeias, sem qualquer veleidade de inovações resultantes da revolução do 25 de Abril de 1974.
Restos da II Guerra Mundial e da Guerra Fria
O conflito na Ucrânia é ainda o resultado da divisão do mundo em duas áreas dominadas pelas potências vencedoras da II Guerra Mundial: os EUA e a URSS.
Entretanto ocorreram tentativas de criar espaços alternativos, caso do Terceiro Mundo e do Movimento dos Não-alinhados, que não se impuseram, e a China começou a emergir como uma superpotência desafiante das outras duas, com o sucesso visível. Nixon insuflou a estratégia da China no processo de conquista do estatuto de superpotência, seguindo o princípio de que o inimigo do meu inimigo (URSS) é meu amigo. A promoção e o êxito do maoismo nos anos 60 e 70 do século passado como fenómeno de moda nas juventudes ocidentais não foram inocentes. Foram atos de manipulação política.
A CEE, que deu origem à atual União Europeia, é um espaço secundário, como o foi o Terceiro Mundo, mas por razões várias optou pelo alinhamento com os Estados Unidos, abdicou de ser um espaço autónomo e os ingleses encarregaram-se de sabotar qualquer tentativa de autonomia, isto é, que a União Europeia fosse uma aliança estratégica com uma estrutura e um projeto. De Tatcher a Blair os chefes de governo do Reino Unido recusaram aceitar que o projeto europeu fosse mais do que uma mera zona de comércio. Era assim que Boris Johnson pensava em 2016, quando o Reino Unido estava na União Europeia e a Ucrânia manifestou interesse em aderir. Boris Johnson opôs-se à entrada da Ucrânia na União Europeia porque isso fortaleceria a UE num tempo em que os Estados Unidos ainda não estavam interessados em afrontar a Rússia. Entretanto ocorreu o Brexit e Trump foi substituído por Biden. Este defende outras abordagens para garantir os interesses da oligarquia americana e Johnson agora é favorável à entrada da Ucrânia na União Europeia. Meros interesses e jogadas oportunistas de poder. Nada de moral, nem de luta pela liberdade.
A China
O fim da URSS pareceu dar vantagem aos Estados Unidos e à China. Os EUA elegeram então a China como inimigo principal e o Pacífico como a sua zona vital. Esta mudança de inimigo principal e de zona vital não podia, contudo, ser feita descurando a frente Ocidental (Europa).
O alargamento da UE e da NATO aos países saídos da órbita da URSS, caso das repúblicas bálticas, da Polónia, Hungria, República Checa, Roménia, Bulgária, dos que resultaram do desmembramento da Jugoslávia e a reunificação alemã serviram esse propósito. A instalação de bases militares americanas (ditas NATO) à volta da Rússia foi evidente. Mas a manobra de cerco à Rússia teria a sua pedra de fecho decisivo com a tomada da Ucrânia, o maior país e o território que dá acesso direto a Moscovo.
Desde o início do século a Ucrânia foi palco de várias manobras de desestabilização que tiveram um ponto culminante em 2014 com as convulsões da Praça de Maidan, eleições fraudulentas, golpes mais ou menos explícitos conduzidos pelos Estados Unidos. A Rússia entendeu agora que estava em condições de parar os Estados Unidos, antes de estes absorverem a Ucrânia através da UE e da NATO.
Em primeiro lugar a Rússia conta com o apoio da China, a quem interessa que os EUA tenham de se dispersar por duas frentes, uma na Europa e outra no Pacífico, a quem interessa, por isso, uma Rússia forte. Por outro lado, a Rússia contava com a forte e complexa teia de relações comerciais com a União Europeia e com a sua dependência do gás e da ligação na área do aeroespacial para evitar grande contestação à sua operação de retoma do controlo da Ucrânia (uma análise que saiu errada). Contava ainda com as dificuldades de Biden na frente interna americana, com as próximas eleições, os conflitos étnicos e a monstruosa dívida que limitam o bem-estar das populações.
Com estes dados, a Rússia jogou a sua cartada e tomou a iniciativa de atacar a Ucrânia e repor as fronteiras dos Estados Unidos onde elas estavam em 2014.
A desistência da União Europeia
O Terceiro Mundo e o Movimento dos Não-alinhados dos anos 60 e 70 do século passado falharam a sua tentativa de desempenhar um papel de relevo na definição de políticas mundiais, acabando os seus elementos integrados na ordem imposta pelas superpotências. O conflito na Ucrânia revelou a mesma falência da União Europeia.
Os líderes europeus têm afirmado que este conflito revelou união, o falar a uma só voz, é verdade, mas é falso que tenha demonstrado força. Pelo contrário, demonstrou a submissão da União Europeia aos Estados Unidos e, com essa submissão, perdeu autonomia para agir, para escolher parceiros, para servir de ponte entre contendores, para impor os seus interesses, para intervir em áreas tão importantes como o domínio do espaço, das novas tecnologias, as energias, ou as políticas ambientais, por exemplo. A UE passou a ser um apêndice dos EUA, uma extensão. Um estado vassalo.
Fuck the EU
A expressão foi proferida por Vitoria Nuland (filha de um médico ucraniano, atual Subsecretária de Estado para os Assuntos Políticos), enquanto quadro superior do Departamento de Estado no tempo da administração Obama – Biden, envolvida nesse tempo (2014) diretamente na formação dos primeiros governos do regime ucraniano numa conversa com o então embaixador norte-americano em Kiev, Geoffrey E. Pyatt, agora em Atenas. Um escândalo diplomático entre «aliados» que demonstra a consideração dos EUA pela União Europeia neste como noutros processos políticos e que Bruxelas, fiel à sua subserviência em relação a Washington, reduziu a um não-acontecimento. Acresce que Biden tem uma forte ligação à Ucrânia, utilizando o filho Hunter Biden como testa de ferro nos negócios de petróleo e gás do país. A Ucrânia é um negócio dos EUA!
O rearmamento da União Europeia
O rearmamento da «Europa», que surge no discurso político dominante como uma necessidade imperiosa na defesa dos «valores europeus» é uma falácia. O rearmamento europeu será feito com tecnologia e meios dos Estados Unidos, para servir os interesses estratégicos destes e animar o complexo militar industrial americano. Os Estados Unidos (e também a Rússia, como se vê) não permitirão que a Europa seja uma potência nuclear credível, nem uma potência espacial credível, nem uma potência naval credível. Sem domínio nuclear, sem o espaço e sem os mares, sem ciência e sem vontade de afirmação não há poder militar credível. Há despesa!
A guerra com a sua procissão de mortos, destruição e sofrimento apenas terminará quando a Rússia atingir os seus objetivos e responder ao desafio que lhe foi lançado pelos Estados Unidos. Os europeus e os ucranianos serão os grandes vencidos. Serão eles, seremos nós, os sujeitos aos grandes poderes, os indefesos, a pagar os custos da guerra e da fraqueza dos dirigentes.
O populismo
A fraqueza da União Europeia, os custos da guerra, com a inevitável degradação de segurança e de condições de vida na Europa resultantes das vagas de refugiados e do aumento do custo dos bens essenciais, constituem a tempestade perfeita para o desenvolvimento de movimentos populistas e fascizantes, que já se manifestam. Será mais uma das consequências das opções dos dirigentes europeus, da sua unanimidade, do seu oportunismo e da sua curteza de vistas, da sua pequenez.
O butim desta guerra – quem ficará com ele?
O butim de guerra é o conjunto dos bens que são retirados aos inimigos na sequência de um ataque ou conflito. O day after desta guerra responderá à pergunta que dificulta ainda mais uma resolução do conflito: quem vai fazer fortuna com a reconstrução da Ucrânia? O vencedor ficará com o resultado do saque, com o butim, como ficou com as obras no Iraque. Os oligarcas da paz e do saque da Ucrânia serão americanos ou russos? Esta é a questão!
Carlos de Matos Gomes
Coronel do Exército reformado, autor e coautor de vários livros sobre a Guerra Colonial