As grandes crises sĆ£o sempre enormes oportunidades de negócio para alguns. As necessidades urgentes e substanciais, de produtos ou serviƧos, conduzem a enormes investimentos. Ao mesmo tempo o escrutĆnio tende a enfraquecer.
Essa combinação poderÔ ser extremamente perigosa pois o incentivo para aceder a dinheiros públicos aumenta e a responsabilização da sua correta utilização diminui.
Em algumas situaƧƵes, como guerras ou crises sanitĆ”rias, alĆ©m do prejuĆzo financeiro imediato, as consequĆŖncias sĆ£o potencialmente mais profundas em termos de saĆŗde pĆŗblica. Por um lado, devido aos efeitos a mĆ©dio-longo prazo da previsĆvel deterioração dos recursos, que Ć© acentuada por uma mĆ” gestĆ£o, por outro, pelas decisƵes enviesadas por interesses financeiros, ou outros, que nĆ£o os das populaƧƵes.
Relatório Gripe A
Na anterior pandemia, pandemia H1N1 em 2009, vƔrios problemas tinham sido detetados. A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (PACE) alertou para erros graves.
De acordo com o documento da PACE, que data de 2010, a forma como a Organização Mundial de SaĆŗde (OMS), as agĆŖncias de saĆŗde europeias e governos nacionais geriram esta pandemia conduziu a um ādesperdĆcio de grandes somas de dinheiro pĆŗblico, e Ć imposição de um clima de medo injustificado sobre os riscos de saĆŗde que os europeus enfrentariamā.
Os parlamentares identificaram ainda āgraves deficiĆŖnciasā na transparĆŖncia das tomadas de decisĆ£o sobre o surto, que acabaram por gerar preocupaƧƵes sobre a influĆŖncia da indĆŗstria farmacĆŖutica nas decisƵes tomadas.
A Assembleia deixou uma sĆ©rie de recomendaƧƵes urgentes que sublinham a importĆ¢ncia de uma maior transparĆŖncia e governação na saĆŗde pĆŗblica, e salvaguardas contra aquilo a que chamou de āinfluĆŖncias indevidas por interesses instaladosā.
Seria pois fundamental assegurarmos que esse perigo fosse mitigado de vƔrias formas.
Uma das formas seria a de evitar levar para a praça pública especialistas para opinarem sobre Ôreas onde existem conflitos de interesses, pessoais ou financeiros. Os próprios também os deveriam revelar, ou até, pedir escusa de abordar alguns desses temas.
Nada disto se passa. Podemos mesmo afirmar que acontece exatamente o contrÔrio. Não só não hÔ o cuidado na seleção dos especialistas, como são insistentemente escolhidos alguns com interesse direto, ou indireto, sobre o que falam.
Não só não é habitual a revelação de conflitos de interesse ou pedidos de escusa de falar sobre certos temas, como por norma são convidados para falar sobre essas mesmas Ôreas. Muitas vezes, são eles próprios a puxar a conversa para o tema.
Dois exemplos flagrantes
Os exemplos sĆ£o muitos. Vamos exemplificar com dois casos evidentes, que nĆ£o colocando em causa a seriedade pessoal, ilustram uma situação de grave falta de transparĆŖncia e de evidentes conflitos de interesse nĆ£o revelados. Abrangem, para alĆ©m dos próprios, agentes económicos, a comunicação social e o poder polĆtico.
Uma das figuras que mais Ć© solicitada para aparecer na opiniĆ£o pĆŗblica desde o inĆcio da pandemia Ć© o pneumologista e coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos MĆ©dicos, Filipe Froes.
O médico é autor de artigos e participante em simpósios patrocinados por uma das principais empresas comercializadoras de vacinas e declarou (e bem) receber honorÔrios dessa farmacêutica.
No entanto, em termos públicos não existem referências conhecidas sobre essa situação.
AlĆ©m do tema da vacinação ser dos mais abordados, tem algumas afirmaƧƵes no mĆnimo polĆ©micas como:
āTemos que ter uma noção muito clara: estas vacinas foram aprovadas pela mesma maneira e pelas mesmas entidades que aprovam todos os outros medicamentos que usamos. PĆ“r em causa o processo das vacinas significa que colocamos em causa a seguranƧa de todas as outras vacinas e medicamentos que usamos habitualmente.ā- Filipe Froes. āO maior efeito adverso desta vacina Ć© nĆ£o a tomarmosā | HealthNews.
Isto, apesar da Agência Europeia do Medicamento explicar que foi concedida à vacina da Pfizer uma autorização condicional de introdução no mercado, reconhecendo um maior risco devido a dados menos abrangentes.
āEste medicamento recebeu uma autorização condicional de introdução no mercado. Esta foi concedida no interesse da saĆŗde pĆŗblica porque o medicamento responde a uma necessidade mĆ©dica nĆ£o satisfeita e o benefĆcio da disponibilidade imediata compensa o risco de dados menos abrangentes do que o normalmente exigido.
Outro exemplo é o do médico veterinÔrio, investigador e doutorado em virologia, Pedro Simas que sempre teve uma atitude otimista quanto à pandemia:
āUma vez este vĆrus tornando-se endĆ©mico vai ser um vĆrus normal de constipação, provoca uma constipação, esqueƧam os cuidados, nĆ£o Ć© preciso andar com mĆ”scara, nĆ£o Ć© preciso andar com este pĆ¢nico. Nada disto vai acontecer torna-se um vĆrus completamente normalā.
TVI, 16 de Maio, 2020 min 10:30
Em Julho de 2020 Ć© noticiada uma mĆ”scara portuguesa capaz de āinativar o vĆrusā. De nome MOxAd-Tech, resultou da parceria entre a fabricante Adalberto, a retalhista de moda MO da Sonae Fashion, o iMM, o centro tecnológico CITEVE, e a Universidade do Minho.
Pedro Simas deu a cara pelos testes e apareceu em vÔrios órgãos de comunicação social a promovê-las:
āDe forma simplificada, estes testes consistem na anĆ”lise do tecido após o contacto com uma solução que contĆ©m uma determinada quantidade de vĆrus, cuja viabilidade se mede ao longo do tempo. Os testes Ć mĆ”scara MOxAdtech revelaram uma inativação eficaz do SARS-CoV-2 mesmo após 50 lavagens, onde se observou uma redução viral de 99% ao fim de uma hora de contacto com o vĆrus, de acordo com os parĆ¢metros de testes indicados na norma internacional ISO18184:2019ā. Citado pelo DN a 25Ā JulhoĀ 2020.

Expresso- Economia. 25 de Julho de 2020
Independentemente das limitações óbvias do estudo e do carÔter comercial do produto, as suas consequências prÔticas para o conhecimento da eficÔcia das mÔscaras (em geral) na diminuição das infeções na comunidade são praticamente nulas.
Estudos RCTs (os Ćŗnicos capazes de determinar relaƧƵes causais) e revisƵes sistemĆ”ticas (com RCTs) tĆŖm consistentemente apontado para efeitos residuais ou nulos das mĆ”scaras (em relação a vĆrus respiratórios), mesmo em condiƧƵes de utilização mais adequadas do que as usuais entre a população. O Ćŗnico RCT com mĆ”scaras de pano sugere mesmo um possĆvel aumento da contaminação.
O RCT realizado durante a pandemia, com mÔscaras cirúrgicas de alta qualidade e elevada disponibilidade de renovação não encontrou diferenças significativas de infeção por Sars-CoV-2 entre utilizadores e não utilizadores.
O própria OMS, embora aconselhe a utilização em situações especiais reconhece que:
Ā āHĆ” uma qualidade geral moderada de evidĆŖncia de que as mĆ”scaras faciais nĆ£o tĆŖm um efeito substancial na transmissĆ£o do vĆrus influenza.ā
E que:
āDados os custos e a eficĆ”cia incerta, as mĆ”scaras faciais sĆ£o condicionalmente recomendadas apenas em epidemias graves ou pandemias de influenza para a proteção da população em geral.ā ā OMS- Medidas de saĆŗde pĆŗblica nĆ£o farmacológicas para mitigar o risco e o impacto da gripe epidĆ©mica e pandĆ©mica (pĆ”g. 26 e 28).
No seu guia interno, refere explicitamente este vĆrus:
āNo momento, hĆ” apenas evidĆŖncias cientĆficas limitadas e inconsistentes para apoiar a eficĆ”cia do uso de mĆ”scaras por pessoas saudĆ”veis na comunidade para prevenir a infeção por vĆrus respiratórios, incluindo SARS-CoV-2.ā ā OMS- Guia interino, Dezembro 2020, pĆ”g. 8)
No entanto, o cientista que tem sido dos mais solicitados pela comunicação social, tem afirmado coisas como:
ā ⦠HĆ” as ferramentas cientĆficas e da saĆŗde que sĆ£o importantes mas a mĆ”scara Ć© o mais importante.ā TVI, 6 de Setembro de 2020
Foi mesmo chamado a pronunciar-se sobre a proposta de lei para tornar o uso de mÔscara obrigatório. Na sua apreciação pode-se ler, por exemplo:


Também não são conhecidas declarações publicas de conflito de interesse.
Ideias finais
Entre outras coisas, a declaração de interesses parece ter sido uma prĆ”tica ultrapassada em perĆodo de pandemia.
A comunicação social demitiu-se de os investigar e de os expor. Pelo contrÔrio, ignorou-os e chama com frequência responsÔveis com interesses diretos nas matérias abordadas, em especial, quando corroboram as suas próprias narrativas.
O poder polĆtico deveria procurar especialistas sem interesses diretos ou, no mĆnimo, apenas os que os revelassem. TambĆ©m era essencial considerar as indicaƧƵes das agĆŖncias internacionais de saĆŗde ou, em alguns casos, a evidĆŖncia de elevada qualidade (RCTS e revisƵes sistemĆ”ticas) que Ć© clara sobre algumas matĆ©rias .
No entanto, pelo contrĆ”rio, recorre a āperitosā, o nĆvel mais baixo da evidĆŖncia cientifica, com frequentes conflitos de interesse e que nĆ£o apresentam, muitas vezes, evidĆŖncia de qualidade para suportar essas āopiniƵesā.
Deste modo nĆ£o estĆ£o garantidas as mĆnimas salvaguardas da defesa dos interesses pĆŗblicos e da transparĆŖncia das instituiƧƵes. Ficamos (ainda mais) refĆ©ns de interesses instalados (ou em instalação) que inevitavelmente veem como uma oportunidade o enfraquecimento dos mecanismos de escrutĆnio.
A crenƧa cega em figuras de autoridade (muitas vezes falsa autoridade), a supressĆ£o de visƵes contraditórias e a diminuição do sentido crĆtico das populaƧƵes em perĆodos de fragilidade psicológica tornam o atual cenĆ”rio ainda mais preocupante.
Estas situações, tendo sempre existido, nunca contaram com tão grande, e perigosa, complacência da sociedade em geral.
Ć imperioso aumentar o escrutĆnio antes que, com o pretexto da proteção urgente do ābem comumā, estejamos cada vez mais subjugados a interesses de muito poucos.