Conflitos de interesse em tempos de pandemia

ByNuno Machado

16 de Maio, 2021 ,

As grandes crises são sempre enormes oportunidades de negócio para alguns. As necessidades urgentes e substanciais, de produtos ou serviços, conduzem a enormes investimentos. Ao mesmo tempo o escrutínio tende a enfraquecer.

Essa combinação poderÔ ser extremamente perigosa pois o incentivo para aceder a dinheiros públicos aumenta e a responsabilização da sua correta utilização diminui.

Em algumas situações, como guerras ou crises sanitÔrias, além do prejuízo financeiro imediato, as consequências são potencialmente mais profundas em termos de saúde pública. Por um lado, devido aos efeitos a médio-longo prazo da previsível deterioração dos recursos, que é acentuada por uma mÔ gestão, por outro, pelas decisões enviesadas por interesses financeiros, ou outros, que não os das populações.

Relatório Gripe A

Na anterior pandemia, pandemia H1N1 em 2009, vƔrios problemas tinham sido detetados. A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (PACE) alertou para erros graves.

De acordo com o documento da PACE, que data de 2010, a forma como a Organização Mundial de SaĆŗde (OMS), as agĆŖncias de saĆŗde europeias e governos nacionais geriram esta pandemia conduziu a um ā€œdesperdĆ­cio de grandes somas de dinheiro pĆŗblico, e Ć  imposição de um clima de medo injustificado sobre os riscos de saĆŗde que os europeus enfrentariamā€œ.

Os parlamentares identificaram ainda ā€œgraves deficiĆŖnciasā€ na transparĆŖncia das tomadas de decisĆ£o sobre o surto, que acabaram por gerar preocupaƧƵes sobre a influĆŖncia da indĆŗstria farmacĆŖutica nas decisƵes tomadas.

A Assembleia deixou uma sĆ©rie de recomendaƧƵes urgentes que sublinham a importĆ¢ncia de uma maior transparĆŖncia e governação na saĆŗde pĆŗblica, e salvaguardas contra aquilo a que chamou de ā€œinfluĆŖncias indevidas por interesses instaladosā€œ.

Seria pois fundamental assegurarmos que esse perigo fosse mitigado de vƔrias formas.

Uma das formas seria a de evitar levar para a praça pública especialistas para opinarem sobre Ôreas onde existem conflitos de interesses, pessoais ou financeiros. Os próprios também os deveriam revelar, ou até, pedir escusa de abordar alguns desses temas.

Nada disto se passa. Podemos mesmo afirmar que acontece exatamente o contrÔrio. Não só não hÔ o cuidado na seleção dos especialistas, como são insistentemente escolhidos alguns com interesse direto, ou indireto, sobre o que falam.

Não só não é habitual a revelação de conflitos de interesse ou pedidos de escusa de falar sobre certos temas, como por norma são convidados para falar sobre essas mesmas Ôreas. Muitas vezes, são eles próprios a puxar a conversa para o tema.

Dois exemplos flagrantes

Os exemplos são muitos. Vamos exemplificar com dois casos evidentes, que não colocando em causa a seriedade pessoal, ilustram uma situação de grave falta de transparência e de evidentes conflitos de interesse não revelados. Abrangem, para além dos próprios, agentes económicos, a comunicação social e o poder político.

Uma das figuras que mais é solicitada para aparecer na opinião pública desde o início da pandemia é o pneumologista e coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, Filipe Froes.

O médico é autor de artigos e participante em simpósios patrocinados por uma das principais empresas comercializadoras de vacinas e declarou (e bem) receber honorÔrios dessa farmacêutica.

No entanto, em termos públicos não existem referências conhecidas sobre essa situação.

Além do tema da vacinação ser dos mais abordados, tem algumas afirmações no mínimo polémicas como:

ā€œTemos que ter uma noção muito clara: estas vacinas foram aprovadas pela mesma maneira e pelas mesmas entidades que aprovam todos os outros medicamentos que usamos. PĆ“r em causa o processo das vacinas significa que colocamos em causa a seguranƧa de todas as outras vacinas e medicamentos que usamos habitualmente.ā€- Filipe Froes. ā€œO maior efeito adverso desta vacina Ć© nĆ£o a tomarmosā€ | HealthNews.

Isto, apesar da Agência Europeia do Medicamento explicar que foi concedida à vacina da Pfizer uma autorização condicional de introdução no mercado, reconhecendo um maior risco devido a dados menos abrangentes.

ā€œEste medicamento recebeu uma autorização condicional de introdução no mercado. Esta foi concedida no interesse da saĆŗde pĆŗblica porque o medicamento responde a uma necessidade mĆ©dica nĆ£o satisfeita e o benefĆ­cio da disponibilidade imediata compensa o risco de dados menos abrangentes do que o normalmente exigido.

Outro exemplo Ʃ o do mƩdico veterinƔrio, investigador e doutorado em virologia, Pedro Simas que sempre teve uma atitude otimista quanto Ơ pandemia:

ā€œUma vez este vĆ­rus tornando-se endĆ©mico vai ser um vĆ­rus normal de constipação, provoca uma constipação, esqueƧam os cuidados, nĆ£o Ć© preciso andar com mĆ”scara, nĆ£o Ć© preciso andar com este pĆ¢nico. Nada disto vai acontecer torna-se um vĆ­rus completamente normalā€.

TVI, 16 de Maio, 2020 min 10:30

Em Julho de 2020 Ć© noticiada uma mĆ”scara portuguesa capaz de ā€œinativar o vĆ­rusā€. De nome MOxAd-Tech, resultou da parceria entre a fabricante Adalberto, a retalhista de moda MO da Sonae Fashion, o iMM, o centro tecnológico CITEVE, e a Universidade do Minho.

Pedro Simas deu a cara pelos testes e apareceu em vÔrios órgãos de comunicação social a promovê-las:

ā€œDe forma simplificada, estes testes consistem na anĆ”lise do tecido após o contacto com uma solução que contĆ©m uma determinada quantidade de vĆ­rus, cuja viabilidade se mede ao longo do tempo. Os testes Ć  mĆ”scara MOxAdtech revelaram uma inativação eficaz do SARS-CoV-2 mesmo após 50 lavagens, onde se observou uma redução viral de 99% ao fim de uma hora de contacto com o vĆ­rus, de acordo com os parĆ¢metros de testes indicados na norma internacional ISO18184:2019ā€. Citado pelo DN a 25Ā JulhoĀ 2020.


Expresso- Economia. 25 de Julho de 2020

Independentemente das limitações óbvias do estudo e do carÔter comercial do produto, as suas consequências prÔticas para o conhecimento da eficÔcia das mÔscaras (em geral) na diminuição das infeções na comunidade são praticamente nulas.

Estudos RCTs (os únicos capazes de determinar relações causais) e revisões sistemÔticas (com RCTs) têm consistentemente apontado para efeitos residuais ou nulos das mÔscaras (em relação a vírus respiratórios), mesmo em condições de utilização mais adequadas do que as usuais entre a população. O único RCT com mÔscaras de pano sugere mesmo um possível aumento da contaminação.

O RCT realizado durante a pandemia, com mÔscaras cirúrgicas de alta qualidade e elevada disponibilidade de renovação não encontrou diferenças significativas de infeção por Sars-CoV-2 entre utilizadores e não utilizadores.

O própria OMS, embora aconselhe a utilização em situações especiais reconhece que:

Ā ā€œHĆ” uma qualidade geral moderada de evidĆŖncia de que as mĆ”scaras faciais nĆ£o tĆŖm um efeito substancial na transmissĆ£o do vĆ­rus influenza.ā€

E que:

ā€œDados os custos e a eficĆ”cia incerta, as mĆ”scaras faciais sĆ£o condicionalmente recomendadas apenas em epidemias graves ou pandemias de influenza para a proteção da população em geral.ā€ – OMS- Medidas de saĆŗde pĆŗblica nĆ£o farmacológicas para mitigar o risco e o impacto da gripe epidĆ©mica e pandĆ©mica (pĆ”g. 26 e 28).

No seu guia interno, refere explicitamente este vĆ­rus:

ā€œNo momento, hĆ” apenas evidĆŖncias cientĆ­ficas limitadas e inconsistentes para apoiar a eficĆ”cia do uso de mĆ”scaras por pessoas saudĆ”veis na comunidade para prevenir a infeção por vĆ­rus respiratórios, incluindo SARS-CoV-2.ā€œ – OMS- Guia interino, Dezembro 2020, pĆ”g. 8)

No entanto, o cientista que tem sido dos mais solicitados pela comunicação social, tem afirmado coisas como:

ā€œ … HĆ” as ferramentas cientĆ­ficas e da saĆŗde que sĆ£o importantes mas a mĆ”scara Ć© o mais importante.ā€ TVI, 6 de Setembro de 2020

Foi mesmo chamado a pronunciar-se sobre a proposta de lei para tornar o uso de mÔscara obrigatório. Na sua apreciação pode-se ler, por exemplo:

Proposta de Lei 62/XIV/2

Também não são conhecidas declarações publicas de conflito de interesse.

Ideias finais

Entre outras coisas, a declaração de interesses parece ter sido uma prÔtica ultrapassada em período de pandemia.

A comunicação social demitiu-se de os investigar e de os expor. Pelo contrÔrio, ignorou-os e chama com frequência responsÔveis com interesses diretos nas matérias abordadas, em especial, quando corroboram as suas próprias narrativas.

O poder político deveria procurar especialistas sem interesses diretos ou, no mínimo, apenas os que os revelassem. Também era essencial considerar as indicações das agências internacionais de saúde ou, em alguns casos, a evidência de elevada qualidade (RCTS e revisões sistemÔticas) que é clara sobre algumas matérias .

No entanto, pelo contrĆ”rio, recorre a ā€œperitosā€, o nĆ­vel mais baixo da evidĆŖncia cientifica, com frequentes conflitos de interesse e que nĆ£o apresentam, muitas vezes, evidĆŖncia de qualidade para suportar essas ā€œopiniƵesā€.

Deste modo não estão garantidas as mínimas salvaguardas da defesa dos interesses públicos e da transparência das instituições. Ficamos (ainda mais) reféns de interesses instalados (ou em instalação) que inevitavelmente veem como uma oportunidade o enfraquecimento dos mecanismos de escrutínio.

A crença cega em figuras de autoridade (muitas vezes falsa autoridade), a supressão de visões contraditórias e a diminuição do sentido crítico das populações em períodos de fragilidade psicológica tornam o atual cenÔrio ainda mais preocupante.

Estas situações, tendo sempre existido, nunca contaram com tão grande, e perigosa, complacência da sociedade em geral.

Ɖ imperioso aumentar o escrutĆ­nio antes que, com o pretexto da proteção urgente do ā€œbem comumā€, estejamos cada vez mais subjugados a interesses de muito poucos.