Pelo Natal, convidei um casal de Amigos, que conheci em Kathmandu, a visitarem-me em Portugal. Ele Ć© inglĆŖs e professor, ela Ć© nepalesa e estilista de moda. EstĆ£o casados hĆ” cerca de 2 anos e residem presentemente em Inglaterra. Tudo ficou acordado para o final de marƧo, durante as fĆ©rias escolares do marido, entre 23 de marƧo e 7 de abril. NĆ£o Ć© a sua primeira vez em Portugal, pois hĆ” dois anos estiveram cĆ” um perĆodo bem maior, tendo conhecido toda a minha FamĆlia e inĆŗmeros Amigos.
Com tempo, comeƧaram a tratar dos vistos a 12 de fevereiro. Logo aĆ tiveram a primeira surpresa: algo que tinha sido simples e rĆ”pido antes, exigia agora um visto Schengen para a minha amiga que, apesar de ser legalmente casada, se encontra em Inglaterra com um visto matrimonial, teria de ter um visto especĆfico para poder sair da GrĆ£-Bretanha e entrar em Portugal. Problemas adicionais surgiram quando tentaram agendar um atendimento para tratar desse visto. NĆ£o existiam datas disponĆveis e comeƧou a espera. Os preƧos dos bilhetes de aviĆ£o iam subindo e o escritório para tratar dos vistos nĆ£o disponibilizava datas.
Ć muito importante salientar aqui que, apesar de Portugal possuir representação diplomĆ”tica em Londres desde, pelo menos, 1748, o serviƧo de vistos da Embaixada Portuguesa no Reino Unido se encontra atualmente subcontratado a uma multinacional deste setor de atividade, a VFS Global, uma empresa criada em 2001 pelo indiano Zubin Karkaria, que possui sede em Bombaim e Ć© lĆder no mercado mundial deste tipo de serviƧos.
Falo em mercado mundial pois Ć© disso que se trata, uma vez que todos os Estados-Membros da UniĆ£o Europeia possuem este tipo de serviƧo desde 2010, após a publicação do Regulamento (CE) nĀŗ 810/2009 (ou Código de Vistos), nomeadamente do seu artigo 43Āŗ (Cooperação com Prestadores de ServiƧos Externos) que refere logo no nĀŗ 1 āOs Estados Membros devem procurar cooperar com um prestador de serviƧos externo, em conjunto com um ou mais Estados-Membros, sem prejuĆzo das regras aplicĆ”veis Ć contratação pĆŗblica e Ć concorrĆŖnciaā
TambĆ©m o artigo 45Āŗ do mesmo Código (Cooperação dos Estados-Membros com IntermediĆ”rios Comerciais) refere no nĀŗ 1 que āOs Estados-Membros podem cooperar com intermediĆ”rios comerciais para a receção de pedidos, exceto no que se refere Ć recolha de identificadores biomĆ©tricosā. Por outro lado, no artigo 9Āŗ do Código (Regras PrĆ”ticas de Apresentação do Pedido), o nĀŗ 4 refere que āOs pedidos podem ser apresentados ao consulado pelo requerente ou pelos intermediĆ”rios comerciais acreditados a que se refere o nĀŗ 1 do artigo 45Āŗā.
Tudo isto parece estranho, suspeito e de uma promiscuidade elevada. Mas devemos ter em conta que, por via da cooperação entre Estados Membros prevista no referido Código, qualquer cidadĆ£o nĆ£o comunitĆ”rio pode āescolherā o Estado Membro onde pedir o visto, pedir a um seu āagente comercialā para tratar de toda a documentação, que a irĆ” apresentar a um prestador de serviƧos da respetiva embaixada, para que esta emita um visto (verĆ” o titular?). Depois, basta entrar legalmente pelo Estado Membro que āescolheuā e, jĆ” dentro da UniĆ£o Europeia, viajar tambĆ©m legalmente para o Estado Membro para onde lhe interessa ir.
Tudo isto ocorre num momento em que tanta gente fala de imigração ilegal, de trĆ”fico humano, de fundamentalismo religioso, atĆ© de terrorismo. Num ambiente geoestratĆ©gico como o atual, a UniĆ£o Europeia continua exposta a este nĆvel, provavelmente para āpouparā nos custos com pessoal em cada embaixada, abrindo legalmente as portas a todos os āaproveitamentosā (pensei bastante para escrever uma palavra suave e conciliatória) que podem surgir com este modelo organizacional. Por outro lado, a ComissĆ£o Europeia contempla, em 2024, um orƧamento de 190 biliƵes de euros para a Frontex, a polĆcia europeia das fronteiras, quando afinal tudo se torna simples e fĆ”cil ao utilizar os mecanismos legais.
Mas voltemos aos meus Amigos. Finalmente, a tal entrevista para obtenção de visto foi desbloqueada hĆ” 3 dias e ocorreu metade ontem e metade hoje. Mas porquĆŖ Ć s metades? Ontem de manhĆ£ a minha Amiga apanhou um transporte pĆŗblico e percorreu os 140 kms que separa a cidade onde reside daquela onde se situa o escritório da VFS Global. Nada de especial, quando num paĆs bem mais pequeno como Portugal inĆŗmeros imigrantes tiveram de percorrer 400 kms ou mais para conseguirem a tĆ£o desejada entrevista.
Ao chegar, o tal tratamento digno e respeitoso previsto no Código dos Vistos tinha ficado no papel. Foi atendida por um empregado de origem indiana e, como se sabe, os indianos nĆ£o gostam de nepaleses. Por isso, nem estranhei quando ela me solicitou por whatsapp uma cópia do meu passaporte. Enviei-a de imediato pelo mesmo canal para ela, logo a seguida, o voltar a pedir mas desta vez por mail. Nem tentei argumentar, dizendo que a cópia Ć© a mesma vĆ” por Whatsapp ou por mail, ou mais que tudo, referindo que na sua primeira visita nunca me tinha pedido cópia do meu passaporte. Vi que estava a ser āapertadaā, enviei e acabou. Ao final do dia, enviou-me uma mensagem referindo que teria de lĆ” voltar hoje. Nem respondi, pois vi que jĆ” estaria suficientemente aborrecida. Hoje, ao final do dia, falĆ”mos entĆ£o por Whatsapp, e foi bizarro de mais. Apesar de ter levado consigo uma cópia autenticada da sua certidĆ£o de casamento, o zelador funcionĆ”rio exigiu ver o original. Mais ainda, exigiu que hoje lĆ” fosse jĆ” com os bilhetes de aviĆ£o comprados, isto sem ter ainda o visto e, portanto, com a possibilidade do mesmo poder vir a ser recusado. Tudo sempre com maus modos.
Este tratamento sub-humano, ao qual os imigrantes estĆ£o habituados, tem vindo a aumentar significativamente nos Ćŗltimos 3-4 anos. Se Ć©s ucraniano, tens as portas escancaradas e a passadeira vermelha. Todos os outros sĆ£o terroristas, parasitas, traficantes, sabe-se lĆ” que mais. Escrevo estas linhas e vĆŖm-me Ć cabeƧa as palavras de um Bom Amigo, embaixador jubilado, que hĆ” semanas deu uma palestra no meu Clube RotĆ”rio, tendo terminado a dizer que se prevĆŖ um movimento de migrantes e refugiados, de Ćfrica para a Europa, nos próximos anos, de 50 a 100 milhƵes de pessoas. Por mais que aumentem o orƧamento da Frontex, que os Estados Membros endureƧam as polĆticas de imigração, que os populistas europeus faƧam da luta contra a imigração um dos seus estandartes, um movimento desta natureza Ć© incontrolĆ”vel, sobretudo quando o suporte legal para a emissĆ£o de vistos continuar a ser o acima descrito.
Os meus Amigos ainda não sabem se vêm visitar-me. Têm bilhetes mas não têm visto, nem sabem se virão a ter. Entretanto, a estadia foi encurtada, pois no dia 8 de abril o meu Amigo retoma as aulas. Tudo isto para passarem uns dias de férias comigo. Ele hÔ Amizades sólidas como o aço.

JosƩ Alberto Pereira
PhD, Wagner Watch Project, Observatório Segurança & Defesa SEDES