Era um visto, se faz favor

ByJose Pereira

14 de MarƧo, 2024

Pelo Natal, convidei um casal de Amigos, que conheci em Kathmandu, a visitarem-me em Portugal. Ele é inglês e professor, ela é nepalesa e estilista de moda. Estão casados hÔ cerca de 2 anos e residem presentemente em Inglaterra. Tudo ficou acordado para o final de março, durante as férias escolares do marido, entre 23 de março e 7 de abril. Não é a sua primeira vez em Portugal, pois hÔ dois anos estiveram cÔ um período bem maior, tendo conhecido toda a minha Família e inúmeros Amigos.

Com tempo, começaram a tratar dos vistos a 12 de fevereiro. Logo aí tiveram a primeira surpresa: algo que tinha sido simples e rÔpido antes, exigia agora um visto Schengen para a minha amiga que, apesar de ser legalmente casada, se encontra em Inglaterra com um visto matrimonial, teria de ter um visto específico para poder sair da Grã-Bretanha e entrar em Portugal. Problemas adicionais surgiram quando tentaram agendar um atendimento para tratar desse visto. Não existiam datas disponíveis e começou a espera. Os preços dos bilhetes de avião iam subindo e o escritório para tratar dos vistos não disponibilizava datas.

Ɖ muito importante salientar aqui que, apesar de Portugal possuir representação diplomĆ”tica em Londres desde, pelo menos, 1748, o serviƧo de vistos da Embaixada Portuguesa no Reino Unido se encontra atualmente subcontratado a uma multinacional deste setor de atividade, a VFS Global, uma empresa criada em 2001 pelo indiano Zubin Karkaria, que possui sede em Bombaim e Ć© lĆ­der no mercado mundial deste tipo de serviƧos.

Falo em mercado mundial pois Ć© disso que se trata, uma vez que todos os Estados-Membros da UniĆ£o Europeia possuem este tipo de serviƧo desde 2010, após a publicação do Regulamento (CE) nĀŗ 810/2009 (ou Código de Vistos), nomeadamente do seu artigo 43Āŗ (Cooperação com Prestadores de ServiƧos Externos) que refere logo no nĀŗ 1 ā€œOs Estados Membros devem procurar cooperar com um prestador de serviƧos externo, em conjunto com um ou mais Estados-Membros, sem prejuĆ­zo das regras aplicĆ”veis Ć  contratação pĆŗblica e Ć  concorrĆŖnciaā€

TambĆ©m o artigo 45Āŗ do mesmo Código (Cooperação dos Estados-Membros com IntermediĆ”rios Comerciais) refere no nĀŗ 1 que ā€œOs Estados-Membros podem cooperar com intermediĆ”rios comerciais para a receção de pedidos, exceto no que se refere Ć  recolha de identificadores biomĆ©tricosā€. Por outro lado, no artigo 9Āŗ do Código (Regras PrĆ”ticas de Apresentação do Pedido), o nĀŗ 4 refere que ā€œOs pedidos podem ser apresentados ao consulado pelo requerente ou pelos intermediĆ”rios comerciais acreditados a que se refere o nĀŗ 1 do artigo 45Āŗā€.

Tudo isto parece estranho, suspeito e de uma promiscuidade elevada. Mas devemos ter em conta que, por via da cooperação entre Estados Membros prevista no referido Código, qualquer cidadĆ£o nĆ£o comunitĆ”rio pode ā€œescolherā€ o Estado Membro onde pedir o visto, pedir a um seu ā€œagente comercialā€ para tratar de toda a documentação, que a irĆ” apresentar a um prestador de serviƧos da respetiva embaixada, para que esta emita um visto (verĆ” o titular?). Depois, basta entrar legalmente pelo Estado Membro que ā€œescolheuā€ e, jĆ” dentro da UniĆ£o Europeia, viajar tambĆ©m legalmente para o Estado Membro para onde lhe interessa ir.

Tudo isto ocorre num momento em que tanta gente fala de imigração ilegal, de trĆ”fico humano, de fundamentalismo religioso, atĆ© de terrorismo. Num ambiente geoestratĆ©gico como o atual, a UniĆ£o Europeia continua exposta a este nĆ­vel, provavelmente para ā€œpouparā€ nos custos com pessoal em cada embaixada, abrindo legalmente as portas a todos os ā€œaproveitamentosā€ (pensei bastante para escrever uma palavra suave e conciliatória) que podem surgir com este modelo organizacional. Por outro lado, a ComissĆ£o Europeia contempla, em 2024, um orƧamento de 190 biliƵes de euros para a Frontex, a polĆ­cia europeia das fronteiras, quando afinal tudo se torna simples e fĆ”cil ao utilizar os mecanismos legais.

Mas voltemos aos meus Amigos. Finalmente, a tal entrevista para obtenção de visto foi desbloqueada hÔ 3 dias e ocorreu metade ontem e metade hoje. Mas porquê às metades? Ontem de manhã a minha Amiga apanhou um transporte público e percorreu os 140 kms que separa a cidade onde reside daquela onde se situa o escritório da VFS Global. Nada de especial, quando num país bem mais pequeno como Portugal inúmeros imigrantes tiveram de percorrer 400 kms ou mais para conseguirem a tão desejada entrevista.

Ao chegar, o tal tratamento digno e respeitoso previsto no Código dos Vistos tinha ficado no papel. Foi atendida por um empregado de origem indiana e, como se sabe, os indianos nĆ£o gostam de nepaleses. Por isso, nem estranhei quando ela me solicitou por whatsapp uma cópia do meu passaporte. Enviei-a de imediato pelo mesmo canal para ela, logo a seguida, o voltar a pedir mas desta vez por mail. Nem tentei argumentar, dizendo que a cópia Ć© a mesma vĆ” por Whatsapp ou por mail, ou mais que tudo, referindo que na sua primeira visita nunca me tinha pedido cópia do meu passaporte. Vi que estava a ser ā€œapertadaā€, enviei e acabou. Ao final do dia, enviou-me uma mensagem referindo que teria de lĆ” voltar hoje. Nem respondi, pois vi que jĆ” estaria suficientemente aborrecida. Hoje, ao final do dia, falĆ”mos entĆ£o por Whatsapp, e foi bizarro de mais. Apesar de ter levado consigo uma cópia autenticada da sua certidĆ£o de casamento, o zelador funcionĆ”rio exigiu ver o original. Mais ainda, exigiu que hoje lĆ” fosse jĆ” com os bilhetes de aviĆ£o comprados, isto sem ter ainda o visto e, portanto, com a possibilidade do mesmo poder vir a ser recusado. Tudo sempre com maus modos.

Este tratamento sub-humano, ao qual os imigrantes estão habituados, tem vindo a aumentar significativamente nos últimos 3-4 anos. Se és ucraniano, tens as portas escancaradas e a passadeira vermelha. Todos os outros são terroristas, parasitas, traficantes, sabe-se lÔ que mais. Escrevo estas linhas e vêm-me à cabeça as palavras de um Bom Amigo, embaixador jubilado, que hÔ semanas deu uma palestra no meu Clube RotÔrio, tendo terminado a dizer que se prevê um movimento de migrantes e refugiados, de África para a Europa, nos próximos anos, de 50 a 100 milhões de pessoas. Por mais que aumentem o orçamento da Frontex, que os Estados Membros endureçam as políticas de imigração, que os populistas europeus façam da luta contra a imigração um dos seus estandartes, um movimento desta natureza é incontrolÔvel, sobretudo quando o suporte legal para a emissão de vistos continuar a ser o acima descrito.

Os meus Amigos ainda não sabem se vêm visitar-me. Têm bilhetes mas não têm visto, nem sabem se virão a ter. Entretanto, a estadia foi encurtada, pois no dia 8 de abril o meu Amigo retoma as aulas. Tudo isto para passarem uns dias de férias comigo. Ele hÔ Amizades sólidas como o aço.

JosƩ Alberto Pereira

PhD, Wagner Watch Project, Observatório Segurança & Defesa SEDES