A Geórgia, um paĆs do CĆ”ucaso, de maioria cristĆ£ ortodoxa e ex-repĆŗblica soviĆ©tica, com fronteiras com a RĆŗssia, Turquia, ArmĆ©nia e AzerbaijĆ£o, tem estado em foco nas notĆcias e tambĆ©m na disputa entre grandes potĆŖncias.Ā
Nas Ćŗltimas duas dĆ©cadas, o paĆs aproximou-se dos paĆses ocidentais, procurando a adesĆ£o Ć NATO e Ć UniĆ£o Europeia e beneficiando de importante financiamento por parte dos EUA e UE. Em 2006, o Parlamento georgiano aprovou o projeto de lei que previa a integração da Geórgia na NATO. Em 2008, ocorreu a guerra russo-georgiana, tambĆ©m chamada Guerra dos Cinco Dias, que resultou na separação de duas provĆncias georgianas.āÆĀ
Em marƧo de 2022, o paĆs formalizou o pedido de adesĆ£o Ć UE, tendo obtido o estatuto de paĆs candidato Ć adesĆ£o em dezembro de 2023, mas o processo acaba de ser suspenso.āÆĀ
As mudanƧas na polĆtica interna e externa da Geórgia comeƧaram após o inĆcio da guerra na UcrĆ¢nia. O partido Sonho Georgiano, que voltou a ganhar as eleiƧƵes legislativas em 26 de Outubro passado com 53% dos votos (partido ao qual a atual presidente georgiana Salome Zurabishvili chama ironicamente āSonho Russoā por esta forƧa polĆtica se ter ultimamente aproximado da RĆŗssia) adotou no Ćŗltimo ano uma sĆ©rie de leis que a oposição considera repressivas.āÆĀ
Entre elas estĆ” a lei contra os movimentos LGBT e, especialmente, a chamada lei contra a influĆŖncia estrangeira, que declara ativistas, intelectuais e ONGs āagentes estrangeirosā caso recebam mais de 20% de financiamento dos EUA e UE ou estejam sob influĆŖncia ocidental, uma lei similar Ć que estĆ” em vigor na RĆŗssia. Ć conhecido que na Geórgia funcionam inĆŗmeras ONGs ligadas Ć defesa dos direitos humanos, das minorias e contra a corrupção. Muitas delas, como a Transparency International Geórgia, recebem financiamento do exterior, em particular da UniĆ£o Europeia, da AgĆŖncia Sueca de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento ou da AgĆŖncia dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional.āÆĀ
Ainda antes das Ćŗltimas eleiƧƵes legislativas, Zurab Japaridze, da CoalizĆ£o para a MudanƧa (oposição), acusava o partido no poder de abandonar a linha de integração europeia, afirmando:āÆĀ
āSe o partido Sonho Georgiano conseguir formar um novo Parlamento e obter legitimação, isso levarĆ” ao isolamento internacional do paĆs. O partido nĆ£o vai manter a imprensa que Ć© crĆtica, a sociedade civil independente e os verdadeiros partidos de oposição, como aconteceu na RĆŗssia nos Ćŗltimos anos.āĀ
O partido no poder centrou a sua Ćŗltima campanha eleitoral na necessidade de evitar uma nova guerra com a RĆŗssia, apontando o exemplo da UcrĆ¢nia. JĆ” segundo a oposição, o partido āintimidou os georgianos, levando-os a acreditar que, se as pessoas nĆ£o votassem nele, o paĆs enfrentaria a guerra e o caosā.āÆĀ
A presidente da Geórgia, Salome Zurabishvili, diplomata francesa durante quase 30 anos e ex-embaixadora da FranƧa na capital georgiana, nĆ£o reconhece os resultados das Ćŗltimas eleiƧƵes, considerando-os ilegĆtimos.āÆĀ
Curiosamente, mesmo depois de 2004, quando Salome Zurabishvili obteve a cidadania georgiana e foi nomeada ministra dos Negócios Estrangeiros da Geórgia, continuou a receber um salĆ”rio de quase 15.000 euros/mĆŖs do governo francĆŖs a tĆtulo de āassistĆŖncia tĆ©cnicaā.āÆāÆĀ
Atualmente, o paĆs estĆ” dividido entre os partidĆ”rios do partido governante e a oposição, representada por vĆ”rias forƧas polĆticas, das quais 5 obtiveram representação parlamentar.Ā
⯠Durante o processo de aprovação da lei contra a influĆŖncia estrangeira, a oposição saiu em massa Ć s ruas, protestando contra a nova legislação. O mesmo aconteceu após as Ćŗltimas eleiƧƵes parlamentares, que teriam sido falsificadas, segundo a oposição. As manifestaƧƵes resultaram em protestos violentos, com muitos feridos entre os manifestantes e a PolĆcia. Foram detidas vĆ”rias centenas de pessoas, incluindo alguns lĆderes da oposição.āÆĀ
Posição da UniĆ£o EuropeiaāÆĀ
O Parlamento Europeu aprovou recentemente uma resolução que critica o partido no poder, o Sonho Georgiano, āpelo declĆnio democrĆ”tico do paĆsā, citando graves violaƧƵes eleitorais como a intimidação de eleitores, manipulação dos votos, interferĆŖncia com os observadores e os meios de comunicação social, e a manipulação das mĆ”quinas de voto eletrónico.Ā
A presidente do PE, Roberta Metsola, declarou no passado dia 17, na sequĆŖncia das manifestaƧƵes em Tbilissi:āÆĀ
āO Parlamento Europeu manifesta a sua solidariedade para com o povo georgiano, que hĆ” quinze dias sai pacĆfica e pacientemente para as ruas de Tbilissi e de todo o paĆs, apelando a um futuro europeu, agitando bandeiras da UE enquanto Ć© atacado com canhƵes de Ć”gua. Apelo ao povo georgiano ā estamos a ver-vos, estamos a ouvir-vos e estamos convosco. O Parlamento condena a repressĆ£o da oposição georgiana e o uso da forƧa contra manifestantes pacĆficos. Estas aƧƵes sĆ£o incompatĆveis com o caminho da Geórgia para a UEā.Ā
Posição de MoscovoĀ
Moscovo, por sua vez, tambĆ©m comentou os protestos na Geórgia: āHĆ” tentativas de influenciar a situação no paĆs e repetir os acontecimentos do Maidan em 2013 na UcrĆ¢niaā, disse Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin. Segundo ele, hĆ” ātodos os sinais de uma tentativa de implementar uma revolução laranjaā.Ā
Em 28 de Outubro, assim que ganhou as eleiƧƵes, o primeiro-ministro georgiano, Irakli Kobakhidze, anunciou a suspensĆ£o do processo de adesĆ£o do seu paĆs Ć UniĆ£o Europeia.Ā
āA tentativa de organizar um novo Maidan na Geórgia nĆ£o foi bem-sucedida e nunca se concretizarĆ”ā, disse ele em 14 de Dezembro.Ā
Segundo ele, as autoridades conseguiram suprimir completamente e āneutralizar os recursos violentosā da oposição georgiana.Ā
āAlguns polĆticos e burocratas europeus usaram a questĆ£o do estatuto de candidato Ć adesĆ£o Ć UE para tentar organizar uma revolução no paĆs. A abertura de negociaƧƵes estĆ” a ser utilizada hoje como um instrumento de chantagem sobre o nosso paĆs e para dividir a sociedade, tal como era utilizado o estatuto de candidato Ć adesĆ£o. Trata-se tambĆ©m de um fenómeno totalmente artificialā, acusou o primeiro-ministro.Ā
Um paĆs, dois presidentesĀ
O novo presidente, Mikhail Kavelashvili, foi eleito no dia 14 deste mĆŖs, num processo muito āsui generisā.āÆĀ
Pela primeira vez na Geórgia, o presidente foi escolhido nĆ£o pela população por sufrĆ”gio universal, mas por um colĆ©gio eleitoral composto por 300 membros, incluindo 150 deputados do parlamento georgiano. Ele era o Ćŗnico candidato, uma situação que faz lembrar os tempos da URSS. Isto porque a oposição boicotou a eleição. O presidente eleito, com poderes bastante limitados, Ć© considerado anti-ocidental.Ā
Após a posse do novo chefe de Estado, que deverĆ” acontecer em 29 de dezembro deste ano, a atual presidente do paĆs, Salome Zurabishvili, terĆ” que deixar o cargo, algo que ela jĆ” recusou fazer, uma vez que nĆ£o reconhece a legitimidade do novo Parlamento e, consequentemente, do novo presidente.āÆĀ
Após a eleição presidencial, os EUA anunciaram que iriam impor sanƧƵes Ć Geórgia āpor o paĆs minar a democraciaā. Os caminhos da Geórgia e da UniĆ£o Europeia tambĆ©m parecem estar a afastar-se.āÆĀ
Na Ćŗltima terƧa-feira, 17 de Dezembro, o primeiro-ministro da Geórgia descreveu como anti-georgiana a decisĆ£o tomada no dia anterior pelos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE de introduzir um regime de vistos para os titulares de passaportes diplomĆ”ticos georgianos.Ā
āEsta decisĆ£o pode ser avaliada como um passo anti-georgiano, que mina a confianƧa da sociedade georgiana nas estruturas europeias. Esperamos que a prĆ”tica de chantagem sobre a Geórgia por parte de certas forƧas da UE termineā, afirmou Kobakhidze numa conferĆŖncia de imprensa.Ā
Kobakhidze agradeceu aos ministros dos Negócios Estrangeiros da Hungria, EslovĆ”quia, ItĆ”lia, Espanha e RomĆ©nia por ādefenderem os interesses do povo georgianoā na reuniĆ£o.Ā
O que esperar do futuro?Ā
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Julgamos que os Ćŗltimos acontecimentos na Geórgia sĆ£o parte de um processo gradual de diminuição da influĆŖncia do bloco ocidental e de reconstrução da Ć”rea de influĆŖncia da RĆŗssia. Tal como na RomĆ©nia, as forƧas crĆticas do sistema liberal ocidental vĆ£o ganhando forƧa. A guerra na UcrĆ¢nia tem servido de ālembreteā para os paĆses que, na vizinhanƧa da RĆŗssia, queriam trilhar o mesmo caminho de integração europeia e viram no que resultou.Ā
De um ponto de vista pragmĆ”tico, o Sonho Georgiano tem razĆ£o: naquela zona geogrĆ”fica, Ć© melhor ser aliado da RĆŗssia do que ser adversĆ”rio. Tudo Ć© melhor que uma guerra. AtĆ© porque economicamente tem algumas vantagens.āÆĀ
Mas existe outro lado da moeda: tal escolha implica um movimento gradual no sentido de um Estado autoritĆ”rio. JĆ” vemos isso nas Ćŗltimas leis adoptadas na Geórgia, que restringem as liberdades alcanƧadas nas Ćŗltimas dĆ©cadas (liberdade de imprensa, liberdade de manifestação, etc.)āÆĀ
Por exemplo, o primeiro-ministro da Geórgia, Irakli Kobakhidze, nĆ£o excluiu a possibilidade de as autoridades recorrerem ao Tribunal Constitucional para que os partidos da oposição sejam considerados ilegais.āÆĀ
Talvez os georgianos sacrifiquem a liberdade e a democracia em prol da estabilidade e da prosperidade. Se o fizerem, a escolha serĆ” deles.āÆĀ
Cristina Mestre
Psicóloga e tradutoraĀ
Licenciada em Neuropsicologia pela Universidade de Moscovo (MSU), nos Ćŗltimos anos tem trabalhado principalmente como tradutora e editora em agĆŖncias de notĆcias da Europa de Leste.āÆ