Geórgia, um país disputado por vÔrias potências

ByCristina Mestre

19 de Dezembro, 2024

A Geórgia, um país do CÔucaso, de maioria cristã ortodoxa e ex-república soviética, com fronteiras com a Rússia, Turquia, Arménia e Azerbaijão, tem estado em foco nas notícias e também na disputa entre grandes potências. 

Nas Ćŗltimas duas dĆ©cadas, o paĆ­s aproximou-se dos paĆ­ses ocidentais, procurando a adesĆ£o Ć  NATO e Ć  UniĆ£o Europeia e beneficiando de importante financiamento por parte dos EUA e UE. Em 2006, o Parlamento georgiano aprovou o projeto de lei que previa a integração da Geórgia na NATO. Em 2008, ocorreu a guerra russo-georgiana, tambĆ©m chamada Guerra dos Cinco Dias, que resultou na separação de duas provĆ­ncias georgianas.  

Em marƧo de 2022, o paĆ­s formalizou o pedido de adesĆ£o Ć  UE, tendo obtido o estatuto de paĆ­s candidato Ć  adesĆ£o em dezembro de 2023, mas o processo acaba de ser suspenso.  

As mudanƧas na polĆ­tica interna e externa da Geórgia comeƧaram após o inĆ­cio da guerra na UcrĆ¢nia. O partido Sonho Georgiano, que voltou a ganhar as eleiƧƵes legislativas em 26 de Outubro passado com 53% dos votos (partido ao qual a atual presidente georgiana Salome Zurabishvili chama ironicamente ā€œSonho Russoā€ por esta forƧa polĆ­tica se ter ultimamente aproximado da RĆŗssia) adotou no Ćŗltimo ano uma sĆ©rie de leis que a oposição considera repressivas.  

Entre elas estĆ” a lei contra os movimentos LGBT e, especialmente, a chamada lei contra a influĆŖncia estrangeira, que declara ativistas, intelectuais e ONGs ā€œagentes estrangeirosā€ caso recebam mais de 20% de financiamento dos EUA e UE ou estejam sob influĆŖncia ocidental, uma lei similar Ć  que estĆ” em vigor na RĆŗssia. Ɖ conhecido que na Geórgia funcionam inĆŗmeras ONGs ligadas Ć  defesa dos direitos humanos, das minorias e contra a corrupção. Muitas delas, como a Transparency International Geórgia, recebem financiamento do exterior, em particular da UniĆ£o Europeia, da AgĆŖncia Sueca de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento ou da AgĆŖncia dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional.  

Ainda antes das Ćŗltimas eleiƧƵes legislativas, Zurab Japaridze, da CoalizĆ£o para a MudanƧa (oposição), acusava o partido no poder de abandonar a linha de integração europeia, afirmando:  

ā€œSe o partido Sonho Georgiano conseguir formar um novo Parlamento e obter legitimação, isso levarĆ” ao isolamento internacional do paĆ­s. O partido nĆ£o vai manter a imprensa que Ć© crĆ­tica, a sociedade civil independente e os verdadeiros partidos de oposição, como aconteceu na RĆŗssia nos Ćŗltimos anos.ā€Ā 

O partido no poder centrou a sua Ćŗltima campanha eleitoral na necessidade de evitar uma nova guerra com a RĆŗssia, apontando o exemplo da UcrĆ¢nia. JĆ” segundo a oposição, o partido ā€œintimidou os georgianos, levando-os a acreditar que, se as pessoas nĆ£o votassem nele, o paĆ­s enfrentaria a guerra e o caosā€.  

A presidente da Geórgia, Salome Zurabishvili, diplomata francesa durante quase 30 anos e ex-embaixadora da FranƧa na capital georgiana, nĆ£o reconhece os resultados das Ćŗltimas eleiƧƵes, considerando-os ilegĆ­timos.  

Curiosamente, mesmo depois de 2004, quando Salome Zurabishvili obteve a cidadania georgiana e foi nomeada ministra dos Negócios Estrangeiros da Geórgia, continuou a receber um salĆ”rio de quase 15.000 euros/mĆŖs do governo francĆŖs a tĆ­tulo de ā€œassistĆŖncia tĆ©cnicaā€.   

Atualmente, o país estÔ dividido entre os partidÔrios do partido governante e a oposição, representada por vÔrias forças políticas, das quais 5 obtiveram representação parlamentar. 

  Durante o processo de aprovação da lei contra a influĆŖncia estrangeira, a oposição saiu em massa Ć s ruas, protestando contra a nova legislação. O mesmo aconteceu após as Ćŗltimas eleiƧƵes parlamentares, que teriam sido falsificadas, segundo a oposição. As manifestaƧƵes resultaram em protestos violentos, com muitos feridos entre os manifestantes e a PolĆ­cia. Foram detidas vĆ”rias centenas de pessoas, incluindo alguns lĆ­deres da oposição.  

Posição da UniĆ£o Europeia  

O Parlamento Europeu aprovou recentemente uma resolução que critica o partido no poder, o Sonho Georgiano, ā€œpelo declĆ­nio democrĆ”tico do paĆ­sā€, citando graves violaƧƵes eleitorais como a intimidação de eleitores, manipulação dos votos, interferĆŖncia com os observadores e os meios de comunicação social, e a manipulação das mĆ”quinas de voto eletrónico.Ā 

A presidente do PE, Roberta Metsola, declarou no passado dia 17, na sequĆŖncia das manifestaƧƵes em Tbilissi:  

ā€œO Parlamento Europeu manifesta a sua solidariedade para com o povo georgiano, que hĆ” quinze dias sai pacĆ­fica e pacientemente para as ruas de Tbilissi e de todo o paĆ­s, apelando a um futuro europeu, agitando bandeiras da UE enquanto Ć© atacado com canhƵes de Ć”gua. Apelo ao povo georgiano – estamos a ver-vos, estamos a ouvir-vos e estamos convosco. O Parlamento condena a repressĆ£o da oposição georgiana e o uso da forƧa contra manifestantes pacĆ­ficos. Estas aƧƵes sĆ£o incompatĆ­veis com o caminho da Geórgia para a UEā€.Ā 

Posição de Moscovo 

Moscovo, por sua vez, tambĆ©m comentou os protestos na Geórgia: ā€œHĆ” tentativas de influenciar a situação no paĆ­s e repetir os acontecimentos do Maidan em 2013 na UcrĆ¢niaā€, disse Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin. Segundo ele, hĆ” ā€œtodos os sinais de uma tentativa de implementar uma revolução laranjaā€.Ā 

Em 28 de Outubro, assim que ganhou as eleições, o primeiro-ministro georgiano, Irakli Kobakhidze, anunciou a suspensão do processo de adesão do seu país à União Europeia. 

ā€œA tentativa de organizar um novo Maidan na Geórgia nĆ£o foi bem-sucedida e nunca se concretizarĆ”ā€, disse ele em 14 de Dezembro.Ā 

Segundo ele, as autoridades conseguiram suprimir completamente e ā€œneutralizar os recursos violentosā€ da oposição georgiana.Ā 

ā€œAlguns polĆ­ticos e burocratas europeus usaram a questĆ£o do estatuto de candidato Ć  adesĆ£o Ć  UE para tentar organizar uma revolução no paĆ­s. A abertura de negociaƧƵes estĆ” a ser utilizada hoje como um instrumento de chantagem sobre o nosso paĆ­s e para dividir a sociedade, tal como era utilizado o estatuto de candidato Ć  adesĆ£o. Trata-se tambĆ©m de um fenómeno totalmente artificialā€, acusou o primeiro-ministro.Ā 

Um paĆ­s, dois presidentesĀ 

O novo presidente, Mikhail Kavelashvili, foi eleito no dia 14 deste mĆŖs, num processo muito ā€œsui generisā€.  

Pela primeira vez na Geórgia, o presidente foi escolhido não pela população por sufrÔgio universal, mas por um colégio eleitoral composto por 300 membros, incluindo 150 deputados do parlamento georgiano. Ele era o único candidato, uma situação que faz lembrar os tempos da URSS. Isto porque a oposição boicotou a eleição. O presidente eleito, com poderes bastante limitados, é considerado anti-ocidental. 

Após a posse do novo chefe de Estado, que deverĆ” acontecer em 29 de dezembro deste ano, a atual presidente do paĆ­s, Salome Zurabishvili, terĆ” que deixar o cargo, algo que ela jĆ” recusou fazer, uma vez que nĆ£o reconhece a legitimidade do novo Parlamento e, consequentemente, do novo presidente.  

Após a eleição presidencial, os EUA anunciaram que iriam impor sanƧƵes Ć  Geórgia ā€œpor o paĆ­s minar a democraciaā€. Os caminhos da Geórgia e da UniĆ£o Europeia tambĆ©m parecem estar a afastar-se.  

Na última terça-feira, 17 de Dezembro, o primeiro-ministro da Geórgia descreveu como anti-georgiana a decisão tomada no dia anterior pelos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE de introduzir um regime de vistos para os titulares de passaportes diplomÔticos georgianos. 

ā€œEsta decisĆ£o pode ser avaliada como um passo anti-georgiano, que mina a confianƧa da sociedade georgiana nas estruturas europeias. Esperamos que a prĆ”tica de chantagem sobre a Geórgia por parte de certas forƧas da UE termineā€, afirmou Kobakhidze numa conferĆŖncia de imprensa.Ā 

Kobakhidze agradeceu aos ministros dos Negócios Estrangeiros da Hungria, EslovĆ”quia, ItĆ”lia, Espanha e RomĆ©nia por ā€œdefenderem os interesses do povo georgianoā€ na reuniĆ£o.Ā 

O que esperar do futuro?Ā 

  

Julgamos que os Ćŗltimos acontecimentos na Geórgia sĆ£o parte de um processo gradual de diminuição da influĆŖncia do bloco ocidental e de reconstrução da Ć”rea de influĆŖncia da RĆŗssia. Tal como na RomĆ©nia, as forƧas crĆ­ticas do sistema liberal ocidental vĆ£o ganhando forƧa. A guerra na UcrĆ¢nia tem servido de ā€œlembreteā€ para os paĆ­ses que, na vizinhanƧa da RĆŗssia, queriam trilhar o mesmo caminho de integração europeia e viram no que resultou.Ā 

De um ponto de vista pragmĆ”tico, o Sonho Georgiano tem razĆ£o: naquela zona geogrĆ”fica, Ć© melhor ser aliado da RĆŗssia do que ser adversĆ”rio. Tudo Ć© melhor que uma guerra. AtĆ© porque economicamente tem algumas vantagens.  

Mas existe outro lado da moeda: tal escolha implica um movimento gradual no sentido de um Estado autoritĆ”rio. JĆ” vemos isso nas Ćŗltimas leis adoptadas na Geórgia, que restringem as liberdades alcanƧadas nas Ćŗltimas dĆ©cadas (liberdade de imprensa, liberdade de manifestação, etc.)  

Por exemplo, o primeiro-ministro da Geórgia, Irakli Kobakhidze, nĆ£o excluiu a possibilidade de as autoridades recorrerem ao Tribunal Constitucional para que os partidos da oposição sejam considerados ilegais.  

Talvez os georgianos sacrifiquem a liberdade e a democracia em prol da estabilidade e da prosperidade. Se o fizerem, a escolha serĆ” deles.  

Cristina Mestre

Psicóloga e tradutora 

Licenciada em Neuropsicologia pela Universidade de Moscovo (MSU), nos Ćŗltimos anos tem trabalhado principalmente como tradutora e editora em agĆŖncias de notĆ­cias da Europa de Leste.